Documentário sobre histórias de Copa é produzido por ex-acolhidos do CA Barra Funda II

Cícero e Uallace, atualmente orientadores socioeducativos, são parte da equipe técnica do projeto que virou exemplo para outros Centros de Acolhida

Elton, Gilberto, Luiz e Uallace estão se abraçando, um do lado do outro, em frente aos vários banners. No fundo, há uma bandeira do Brasil que está pendurada em uma parede e dois atendidos conversando

Texto: Matheus Nascimento

Fotos: Guilherme Guidetti

“A sociedade nos vê como algo desprezível, como a escória. Fede, muda de calçada. O mau cheiro causa ânsia. Então, tem todo esse processo que eu passei”. A frase que impacta é dita por quem hoje se sente um vencedor. O cearense Cícero Teixeira, 50, passou por todas as dificuldades que uma pessoa em situação de rua, a quem ele se refere com bom humor como “residente de calçada”, pode passar.

Cícero levava uma vida normal. Casado e com duas filhas gêmeas, Dalva e Dágila, trabalhou em rádios por 15 anos. Sua vida virou de ponta-cabeça quando veio o divórcio. Sem rumo e desnorteado, ele foi para as ruas, até que um dia parou no Centro de Acolhida (CA) Barra Funda II, na zona central da cidade. Nesse processo, conheceu Uallace Carvalho, 36, também acolhido no serviço.

Ao contrário de Cícero, Uallace ficou nas calçadas por apenas alguns meses, em 2020. A vida dele começou a sair dos trilhos desde quando sofreu um acidente doméstico. Ele morava em Paraty, no Rio de Janeiro, quando decidiu vir para São Paulo em busca de emprego. Até que conseguiu uma casa no bairro do Jabaquara, mas o alto custo de vida fez com que as finanças dele acabassem em pouco tempo.

A pandemia de Covid-19 veio para dificultar a procura por vagas e a ida para as calçadas da cidade foi inevitável. "Eu estava engessado, sem poder andar, totalmente dependente dos outros", lembra. Ele foi contra a ideia de ficar na casa da companheira ou de outras pessoas que poderiam ajudá-lo. Saiu do aluguel e tentou uma vaga no CA Barra Funda II, sendo acolhido definitivamente em novembro de 2020.

Nessa fase da vida de Cícero e Uallace, surgiu o professor Gilberto Tiago, 60, um dos orientadores socioeducativos do serviço. Ele foi uma das pessoas que mais ajudaram Uallace a se integrar com os acolhidos mais antigos do local, inclusive o Cícero, e a compartilhar os conhecimentos de tecnologia que tem com todos por lá através da oficina de audiovisual. Oficinas, inclusive, eram frequentes no Barra II. Elton Almeida, 40, gerente do serviço em 2009, sempre foi aberto à inclusão das mais diferentes atividades no serviço.

“O nosso objetivo era que isso fosse mais real, mais visível, que o ambiente tivesse muitas atividades. Nelas a gente quebra essa relação hierárquica que normalmente existe”, diz. Além da oficina de audiovisual, Uallace e Cícero, no tempo que estiveram lá, também participaram de oficinas de xadrez, leitura, informática, violão, hebraico e das sessões do Cine Pipoca realizadas às sextas-feiras. Elton, além de executar as atividades administrativas, frequentemente participa das atividades com os acolhidos.

Gilberto realiza o trabalho com essas oficinas há bastante tempo e tem experiência no relacionamento diário com os acolhidos. Com o tempo, enxergou em Cícero e Uallace um potencial diferente. O trabalho realizado na TV Barra II (outro projeto do serviço) e a oficina de audiovisual, aliado ao empenho da dupla, foi o gatilho perfeito para a produção de um produto audiovisual muito especial.

Um projeto que marcou vidas

O documentário sobre a história das seleções masculinas do Brasil em Copas relacionada às lembranças de vida dos acolhidos durante esse período foi uma ideia de Gilberto com a colaboração de Luiz Atibaia, oficineiro de audiovisual da unidade. O objetivo das oficinas é permitir que os acolhidos tenham um olhar diferenciado da perspectiva de quem passou por diferentes Copas. "A casa abraçou [o projeto], o Elton abraçou, os educadores se envolveram para ajudar a gente", explica Gilberto sobre o projeto.

Cícero, bastante experiente no rádio, voltou a exercer a função de locutor com essa oportunidade. Já Uallace se identificou com a produção e edição dos vídeos do projeto de documentários. “O Seu Gilberto falou: ‘Vamos fazer um plano de vida para você. Aproveita que você está recuperando seu pé’. E logo em seguida veio o Atibaia com a oficina de audiovisual e o Washington com a de informática”, relembra Uallace. Ele começou a aprender a mexer em uma lousa digital e, daí em diante, não parou mais de trabalhar nos vídeos.

Uallace conseguiu concluir os estudos enquanto era acolhido e lembrou que nunca teve muita intimidade com computador antes de participar da produção dos vídeos. Os outros acolhidos que começaram a participar também tiveram dificuldades, mas no final o aprendizado de todos foi bem maior. Os resultados foram uma exposição e um produto audiovisual de 70 minutos, que traz imagens históricas da Copa do Mundo e reflexões acerca dos altos e baixos vividos pelas seleções, relacionando com as mesmas situações na vida. O documentário, apresentado para os acolhidos do Barra Funda II, foi um sucesso.

“Quando passou o gol do Bebeto em 1994, aquele do ‘Embala Nenê’, um acolhido falou, mostrando o braço: ‘Meu Deus, eu estou me arrepiando. Eu estava assistindo em casa, com a minha família’. Então essa frase já foi o suficiente para ver que conseguimos impressionar”, comenta Gilberto. Já Uallace destaca que o debate entre os idosos acolhidos em outro serviço foi diferente. “Lá eles comentavam que aquilo era jogo, ali eles jogavam por paixão”.

A continuação do ciclo

A participação de Cícero e Uallace no projeto foi marcante, principalmente porque foram eles que influenciaram outros acolhidos a se aventurarem no processo de produção dos documentários.

Elton percebeu que a produção deles no Barra Funda II poderia dar frutos com outros acolhidos se as oficinas supervisionadas por Gilberto e Atibaia continuassem. No final de 2020, os quatro se reuniram para discutir o futuro do projeto e também deles, que estavam encerrando o ciclo no Centro de Acolhida. Optaram em tornar os dois orientadores socioeducativos em outros serviços da rede socioassistencial.

Dessa forma, Uallace foi para o CAE (Centro de Acolhida Especial) para idosos ‘Sé’, enquanto Cícero foi trabalhar no CA Alcântara Machado. “O Elton conseguiu nos dar essa oportunidade, dentro da rede de apoio, e fui trabalhar como educador. Vesti a camisa com o pessoal com muito amor”, afirmou Cícero sobre o apoio que ele e o amigo receberam no Barra Funda II e nos serviços que foram atuar profissionalmente. O trabalho deles como orientadores socioeducativos nos dois serviços colaboraram para a autonomia e, além disso, o documentário produzido repercute até hoje.

Vários porta-banners estão enfileirados de forma paralela na diagonal em frente a uma parede do Centro de Acolhida (CA) Barra Funda II, formando parte da exposição sobre a história da seleção. No banner em destaque há várias fotos das conquistas e de jogadores das Copas do Mundo conquistadas pela seleção brasileira em um fundo verde e amarelo.

“Lá no Alcântara Machado [Centro de Acolhida] eles gostaram do projeto. O jogo do Brasil foi no dia seguinte da exposição e sensibilizou não só os técnicos que ali estavam. Muitos deles foram tocados, lembraram de algum momento da vida e eu achei isso interessante. Foi assim que aconteceu comigo. Eu digo para os acolhidos: alguém resgatou isso dentro de mim e isso serviu de combustível para que hoje possa estar aqui com vocês. Essa oficina tem essa energia”, disse Cícero.

Pelo período de um ano, ele levou essas ideias para outros Centros de Acolhida. “Quem sabe a gente consegue ressocializar um atendido como Cícero aqui dentro, um Uallace aqui dentro”, disse confiante. O professor Gilberto, braço direito de Elton, Cícero e Uallace na articulação das oficinas, acompanha passo a passo o resgate da autoestima dos acolhidos.

"Me encantei com as oficinas, e aí veio aquele momento de me identificar como professor, coisa que eu tinha perdido anteriormente. Foi aqui que eu resgatei o orgulho e o amor de ser professor", disse. Ele também lembra que essa atitude de apoio mútuo foi o principal combustível para que os ex-acolhidos seguissem em frente junto com ele trabalhando no projeto no Barra Funda II.

Por fim, mesmo sendo de gerações diferentes, os sonhos dos dois ex-acolhidos permanecem grandes. Eles querem fazer faculdade: Cícero, atualmente eletricista autônomo, quer fazer faculdade de jornalismo. Já o jovem fluminense quer cursar tecnologia da informação.

“O ciclo não acaba. O que a gente quer agora é ajudá-los a entrar na faculdade. A vida é assim, feita de ciclos, assim como a seleção brasileira. Pelé veio e foi, Garrincha veio e foi, Zico veio e foi, outros vieram agora. Sempre haverão novos jogadores, novos gols, novos campeões, novas frustrações, assim como a vida”, finalizou Elton comentando sobre a essência do documentário sobre os acolhidos e as Copas.