Grupos de combate à violência doméstica acolhem mulheres usando criatividade, arte e empoderamento

Em meio à campanha Agosto Lilás, Saúde destaca a importância dessas ações para dar visibilidade ao tema

Elas têm entre 20 e 50 anos de idade, sentem vergonha, medo e muitas vezes desconhecem seus direitos. Esse é o perfil da maioria das mulheres recebida nos grupos de apoio e enfrentamento à violência doméstica da rede municipal de saúde.

Um deles é o grupo Crônicas de Marias, que existe desde setembro de 2021 no Centro de Atenção Psicossocial (Caps) Álcool e Drogas II Sapopemba, na zona leste, e já atendeu 55 mulheres até este mês. Hoje, com dez participantes por sessão, que se encontram em média por duas horas uma vez por semana, a unidade usa como ferramenta de cuidado a escrita.

“Conforme nossas ‘Marias’ vão contando suas histórias, nós vamos reescrevendo-as de uma forma diferente, usando poesia, emoção, mitologia e até religião. É uma combinação da realidade delas com algo lúdico. Uma maneira de perceberem suas reais condições de vítimas da violência, muitas vezes não sabida, mas de uma forma mais leve. Nós chamamos de escrevivências”, explica Juliana Aureana Leal, terapeuta ocupacional e uma das técnicas que conduzem o grupo.

Maria é o nome que cada membro do grupo escolhe assim que entra, para preservar sua real identidade. Durante o “rebatismo”, esse nome deve ser composto e levar algum traço da realidade, como fez MGFN*, 62, assistente administrativa, moradora do bairro e conhecida no grupo como Maria Ramona. “Escolhi o segundo nome em homenagem ao meu neto, Ramon. Entrei em março deste ano porque era viciada em álcool. Com a minha idade, não conseguia emprego, cai em depressão, o desespero bateu e comecei a beber. É gratificante estar aqui, percebemos que não estamos sozinhas, uma ajuda a outra. A gente ri, chora e ninguém julga ninguém”, conta Ramona.

Cada história também ganha um nome interessante, como “Quem nunca errou que atire a primeira Pérola”, sobre Maria Pérola, uma das usuárias, ou “Palavras desaparecidas de Aparecida Maria”, que conta a história sobre as coisas que Aparecia Maria não conseguia falar.

O Crônicas de Maria é voltado a mulheres que fazem uso de substâncias psicoativas lícitas ou ilícitas, ou convivem diretamente com quem faz, e que também sofrem de violência doméstica, por meio de Unidades Básicas de Saúde (UBSs) ou Caps II Sapopemba.

Na zona sul da capital, as mulheres contam com o grupo Papo de Mulher, ao meio-dia, uma vez por semana no Caps AD III Jardim São Luís desde novembro de 2019, por onde já passaram 40 mulheres. O público é majoritariamente de mães solos, pretas e que são provedoras do lar, cadastradas na unidade.

As reuniões, que hoje abarcam dez mulheres e um homem trans, têm objetivo terapêutico e foram criadas por meio de um mapeamento do território, muito marcado por violência. De acordo com Luciana Reis Oliveira, assistente social, criadora do projeto, ao passo que o tema violência doméstica é abordado, elas vão percebendo os abusos que sofrem desde crianças e como essa violência passou pela vida sem perceberem. “Um dos casos mais marcantes para mim foi o de uma pessoa que não tinha coragem de assumir sua identidade de gênero, por medo e vergonha. O que essa pessoa trouxe, assim que chegou ao grupo, foram histórias de agressão por se relacionar com mulheres e, com a ajuda do grupo, do acolhimento e tratamento do Caps foi se empoderando, pegando as rédeas da vida e conseguiu se transformar no que sempre foi: o Adriano. Muitas vezes quem participa não consegue falar sobre as histórias, mas registra por meio dos desenhos ou atividades corporais que fazemos e, assim, conseguimos analisar uma a uma”, conta.

Outro grupo que oferece apoio a vítimas de violência é o Mulheres em Luta, que já atendeu 41 mulheres, nos últimos dez meses, e reúne as participantes todas as sextas-feiras, durante uma hora, na UBS Wamberto Dias da Costa, no bairro do Tremembé, zona norte da capital. Focado em mulheres que precisam de suporte psicológico, independentemente do uso de substâncias psicoativas, foi criado após a identificação do aumento de notificações, na unidade, de mulheres submetidas a algum tipo de violência.

Gilzana Rocha Silva, assistente social e uma das profissionais que conduzem o grupo, diz que as reuniões trazem vídeos, músicas, poemas e meditação para promover reflexão e debate. “Em uma das sessões, exibimos um desenho do Pica-Pau, no qual o mote era o excesso de cuidado com o outro personagem, que o deixava confuso e cansado. Muitas se identificaram com ele, como cuidadoras em tempo integral, que deixam de se cuidar para cuidar do outro. No final de todas as reuniões, elas recebem um caderno onde podem expressar o que sentiram naquele dia. Aos poucos elas vão retomando a autonomia e resgatando a autoestima”, pontua.

Segundo Cássia Liberato Ribeiro, assessora técnica da Área Técnica de Atenção Integral à Saúde da Pessoa em Situação de Violência, a campanha Agosto Lilás, que em 2022 completa 16 anos e tem como tema “A mão invisível da violência psicológica”, é mais um meio importante para dar visibilidade ao assunto e ao serviço. “A data joga luz às iniciativas e aos grupos de apoio, que são fundamentais para fortalecerem as mulheres em vulnerabilidade com esclarecimentos sobre seus direitos. Para prevenir é preciso conhecer e reconhecer o que é a violência contra as mulheres, as suas manifestações mais frequentes, consequências e os mecanismos para enfrentá-la. Todos os equipamentos de saúde da rede municipal possuem um Núcleo de Prevenção à Violência (NPV), com equipe multidisciplinar para a articulação do cuidado em saúde e em rede e cooperação intersecretarial para o acolhimento e assistência das necessidades da pessoa em situação de violência”, destaca.

Núcleos de Prevenção à Violência
A Secretaria Municipal da Saúde (SMS) estabeleceu recentemente novas regras para fortalecer as ações dos NPVs, que atuam no enfrentamento do problema e na assistência em saúde às vítimas. Entre janeiro e maio de 2022, a SMS recebeu 9.011 notificações de violência contra a mulher na capital. De acordo com a portaria nº 383/2022, publicada em 28 de junho no Diário Oficial da Cidade de São Paulo, todos os equipamentos de saúde devem reservar um período de ao menos seis horas mensais para que todos os profissionais que compõem esses núcleos possam ter uma discussão elaborada sobre o planejamento de atividades, considerando as especificidades da demanda e da realidade local. Além disso, essas horas também devem ser dedicadas aos encaminhamentos e organização referentes às pessoas acolhidas pelos núcleos.

A SMS mantém instalado em todos os equipamentos de saúde da cidade de São Paulo um núcleo com equipe multiprofissional composto por no mínimo quatro trabalhadores da unidade de saúde, inclusive em locais geridos por entidades via contrato de gestão, termos de parceria, convênios ou acordos de cooperação técnica.

*A participante do grupo Crônicas de Maria preferiu não ser identificada.