A cara e a voz do próximo

A assistente social Raquel Suzan Evangelista Alves é defensora do empoderamento feminino e da causa das mulheres negras. Além disso, dedica grande parte da sua vida, para ajudar a transformar a história de pessoas em situação de rua

Raquel com camisa branca, posa para a foto.

 

Por Karina Mendes
Fotos Edson Hatakeyama
Edição Cármen Ludovice

 

“Sempre tive interesse em trabalhar na área da saúde, mas não sabia como isso iria acontecer”, conta Raquel. “Como sempre fui um pouco militante”, continua ela, “talvez a ideia da garantia dos direitos humanos tenha me levado a fazer serviço social”, reflete. Defensora do empoderamento feminino e da causa das mulheres negras, Raquel, 38 anos, é mãe solteira de um menino. Formada em Serviço Social, ela começou a trabalhar no Sistema Único de Saúde (SUS) há cerca de três anos, no Consultório na Rua, através do Centro Social Nossa Senhora do Bom Parto – Bompar, instituição parceira do SUS. (Em tempo, os Consultórios na Rua são formados por equipes multidisciplinares que prestam serviço integral à saúde da população em situação de rua da cidade, indo em busca de quem necessita de atendimento).

Como tudo começou

Após a conclusão do curso, ela ainda não tinha uma ideia muito precisa do que pretendia fazer dentro da sua área de formação. A resposta viria após oito meses de uma busca incansável e insistente por emprego, quando uma ex-colega de trabalho indicou Raquel para substituir, por três meses, uma assistente social do Consultório na Rua, localizado no Centro da cidade. Em seu último dia de trabalho, ela foi convidada para assumir, permanentemente, a vaga de um colega de profissão, da região oeste, no bairro da Lapa, que havia passado em um concurso em outro município, e se mudado. “Acho que eu tinha mesmo de ficar nessa área”, reflete.

Moradores sentados em bancos improvisados sob um chão de terra, prestam atenção nas palavras de Raquel

O que é, o que é

A assistente social define seu trabalho como um projeto de políticas públicas do SUS, que tem por objetivo inserir a pessoa em situação de rua na promoção e prevenção dos cuidados com a saúde, mas afirma que o programa vai muito além disso. “O Consultório na Rua acontece nas Unidades Básicas de Saúde (UBS). Para mim, ele é um facilitador no processo de atendimento em muitos espaços, não apenas no SUS. Em muitos lugares, as pessoas em situação de rua não conseguem entrar e se entram não são atendidas. Nosso trabalho abrange todas as esferas da sociedade, seja promovendo a inserção do indivíduo nos cuidados com a saúde, seja ajudando-o a resgatar sua cidadania plena. Nossa atividade é um trabalho extramuros. É uma missão. Ou você gosta ou não”, pondera.

Nosso papel nisso tudo

Ainda no princípio da carreira, enquanto atuava no Centro, Raquel relatou sentir certo receio em como seria trabalhar com pessoas em situação de rua. Mas, vencido o medo inicial, ela acabou se envolvendo muito com o que faz, além de sentir-se bastante grata por isso: “todo mundo precisa de suporte; nós, por exemplo, temos amigos, família, enfim, uma rede de proteção, mas elas, em geral, são sozinhas. Então, acabamos fazendo esse papel, porque muitas vezes essas pessoas dependem da nossa equipe. De um jeito ou de outro a gente passa a conhecer e a participar da vida delas. É muito gratificante lidar com vidas”, emociona-se.

Divas por um dia

Raquel não imaginava que viria a ser a grande idealizadora de um projeto que hoje faz parte de todos os territórios cuidados pela Bompar. Uma atividade que iria ajudar a transformar as vidas das mulheres em situação de rua, para melhor. O projeto ‘Mulheres em Situação de Rua Também São Divas’ foi concebido pela assistente social e abraçado por toda a sua equipe. O objetivo da ‘diva’, como é carinhosamente chamado, é resgatar a feminilidade da mulher. “Elas acabam ficando muito masculinas na rua, pois correm o risco de serem abusadas. Assim, acabam se camuflando e ficando embrutecidas, para enfrentar essas e outras situações limite, conta.

 Assistentes sociais conversam. Ao fundo uma casa com varal cheio de roupas penduradas.

 

O dia da diva acontece a cada três meses, em diferentes lugares. Sua finalidade é arrecadar doações de roupas, maquiagem, sapatos, bijuterias, acessórios para o cabelo, entre outros itens de beleza feminina, para que ao menos por um dia as mulheres em situação de rua possam se sentir mais bonitas. Realizado com o apoio de diversas pessoas e instituições, Raquel não deixa de frisar a importância de todos para a diva dar certo. “Apresentei a ideia em uma reunião, achando que podia parecer algo meio louco, mas a equipe abraçou a proposta. Esse programa de beleza já trouxe muitos frutos”, orgulha-se.

Entre os frutos colhidos nesses dias ”de diva”, um deles emociona particularmente a assistente social. “Uma usuária de drogas, em situação de rua, que havia sido mãe recentemente, sofria maus-tratos e abuso sexual do companheiro, decidiu mudar de vida, após se sentir bonita e confiante no dia da diva para fazer o que tanto sonhava: estudar pedagogia”. Depois de um tempo, ela voltou à UBS, com o objetivo de também transformar sua história. “Então, arrumamos vaga para ela em um abrigo, que passou a procurar emprego e abandonou as drogas”, comemora Raquel.

Mulheres que somos

“As histórias das mulheres que ajudo são um pouco assemelhadas à minha, porque também fui mãe solteira, sou negra, não tenho parceiro, tive que entrar na Justiça, passei pela Lei Maria da Penha, enfim, tive de vencer e ultrapassar meus próprios limites. É difícil, mas eu consegui. Todas nós podemos”, incentiva.


Entre os sonhos profissionais que a assistente social ainda quer realizar, um deles se destaca. “Meu desejo é dar mais visibilidade para a mulher em situação de rua, e ampliar a discussão sobre como mudar esse estado de coisas, porque ainda não há vagas suficientes para elas nos abrigos. A desigualdade de gêneros também existe nas ruas”, reflete.


Em sua caminhada, Raquel se vê construindo pontes, tecendo redes: “afinal, o meu trabalho não vai só até um determinado lugar, ele extrapola, abrange muita coisa”, finaliza.

Serviço

A equipe do Consultório na Rua da Lapa dá suporte para as unidades: UBS Parque da Lapa, UBS V. Nova Jaguaré, UBS Alto de Pinheiros, UBS Vila Anastácio, UBS Vila Romana, UBS Ipojuca, UBS Vila Anglo, UBS Jardim Vera Cruz, UBS Vila Piauí e UBS Jaguará.