Artigo: Um sistema contra a tortura

O Brasil avança na garantia dos direitos humanos fundamentais

Rogério Sottili

A recente sanção da presidenta Dilma Rousseff ao projeto de lei que estabelece o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura marca mais uma conquista de uma trajetória iniciada em 2009 com o lançamento do Terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3).

O PNDH-3 foi elaborado em um amplo processo democrático liderado pelo ex-ministro de Direitos Humanos Paulo Vannuchi. Ainda que tenha sofrido críticas na época do seu lançamento, pela ousadia de suas diretrizes, o programa tem contabilizado uma série de vitórias nos últimos anos e avançou firmemente na promoção e defesa dos direitos humanos no Brasil.

O exemplo do Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, com os respectivos Comitê e Mecanismo Preventivo Nacional, é emblemático. O objetivo é impedir torturas, maus-tratos e tratamentos degradantes a indivíduos privados de liberdade em delegacias, presídios, hospitais, asilos, centros de tratamento psiquiátrico e de reabilitação de drogas, entre outros locais. Em um passado nem tão distante, marcado por regimes autoritários e violações das liberdades, crimes desse tipo deixaram profundas sequelas que ainda tentamos remediar. É para evitar o retorno de violações semelhantes que o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura foi instituído.

O sistema tem o potencial de ser um importante instrumento no combate à violência contra os direitos humanos por enfrentar a cultura de violação enraizada em nosso país. Ao permitir que representantes da sociedade civil entrem em qualquer lugar onde possa haver tortura, sem aviso prévio, damos um passo fundamental. Conseguimos driblar as visitas agendadas que normalmente resultam em ambientes maquiados, não condizentes com a realidade vivida por quem está no local. E importante agora garantir com responsabilidade a nomeação dos integrantes da sociedade civil que cumprirão essa importante tarefa.

De todo modo, o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura compõe a gama de políticas de promoção dos direitos humanos no País. Articulada com outras ações, muitas delas oriundas do que foi construído no PNDH-3, o Brasil avança e constrói uma nação moderna sob o ponto de vista dos direitos humanos. O reconhecimento do Supremo Tribunal Federal da união homoafetiva é um deles. Quando foi lançado, em 2009, o programa previa apoiar projeto de lei que dispusesse sobre a união civil entre indivíduos do mesmo sexo e a garantia da adoção por esses casais. O tribunal fez valer também outras conquistas previstas no PNDH-3, entre elas a interrupção da gravidez de fetos anencéfalos. Ambas diretrizes constam no Eixo Orientador III: Universalizar Direitos em um Contexto de Desigualdade.

Se em alguns temas o responsável por garantir os direitos humanos foi o STF, em outros o Poder Legislativo fez - e continua a fazer - sua parte. O Congresso Nacional aprovou o primeiro projeto de lei originado especificamente a partir das diretrizes do PNDH-3: a criação da Comissão Nacional da Verdade, ato emblemático e de grande repercussão na sociedade brasileira. A Diretriz 23 não deixa dúvidas: "Reconhecimento da memória e da verdade como Direito Humano da cidadania e dever do Estado".

Mesmo com todas as dificuldades de percurso inerentes à questão, é inegável que a instalação da Comissão Nacional da Verdade é um marco na vida política do Brasil e um reencontro do País com sua história e seu povo. Sua instalação disseminou a constituição de inúmeras outras Comissões da Verdade - somente em São Paulo há mais de dez. Tal proliferação possibilita ao Brasil viver um momento único, de contar a história como aconteceu, com todas as informações que os cidadãos têm direito de acessar, possibilitando, enfim, caminharmos rumo à reconciliação nacional.

A abrangência da temática dos direitos humanos vai muito além daquilo que alguns ainda imaginam, ao permanecerem reféns de conceitos estigmatizantes e conservadores. Um bom exemplo sobre o papel dos direitos humanos é a conquista da erradicação do sub-registro civil de nascimento. Algo aparentemente simples e corriqueiro, mas engrandecedor e fundamental entre as garantias básicas de cidadania, o assunto, discutido e abordado no PNDH-3, é hoje, felizmente, um problema superado no Brasil.

Os desafios ainda são muitos. Um exemplo é a Proposta de Emenda Constitucional de combate ao trabalho escravo, aprovada na Câmara dos Deputados e agora sob análise do Senado Federal. A PEC prevê, entre outras medidas, a desapropriação, sem indenização, de fazendas onde sejam encontrados trabalhadores em situação análoga ao trabalho escravo. Para os próximos meses, há também a expectativa de o governo federal enviar ao Congresso o projeto de lei que estabelece a Política Nacional de Prevenção e Mediação de Conflitos Fundiários e Urbanos. Ambos os temas estão contemplados no PNDH-3, este último no âmbito dos modelos alternativos de solução de conflitos: "Fomentar a mediação e conciliação, estimulando a resolução de conflitos por meios autocompositivos, voltados para a maior pacificação social e menor judicialização".

Os direitos humanos são construídos numa perspectiva histórica, em um caminho longo que não aceita retrocessos. E nesse contexto de avanços e conquistas que a recente sanção do Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura se insere como uma inestimável vitória dos direitos humanos no Brasil. Uma vitória emblemática e que a todos deve orgulhar, sem, contudo, nos esquecermos de que ainda há muito a ser conquistado.

 

Publicado na edição 764 da 'Carta Capital'