Direito à cidade: esse crescente movimento social poderá conquistar as autoridades municipais?

Das manifestações da Praça Taksim e Nuit Debout à ocupação de bancos em Barcelona e workshops de mulheres em Delhi, a pressão para cidades mais inclusivas é crescente. A ONU se prepara para a Habitat III, os governos irão ouvir?

Fonte: The Guardian

"O espaço público é um gerador de cidades democráticas". Manifestantes do Nuit Debout,  na Place de la République, em Paris. Foto: Christian Hartmann / Reuters

 

Tradução livre

Em uma manhã cinza e chuvosa de abril, dezenas de homens e mulheres saíram da Universidade de Barcelona e ocuparam uma franquia do banco CatalunyaCaixa, segurando cartazes de protesto, vestindo camisetas com slogans e entoando “nós nunca seremos derrotados!”.

Em uma questão de minutos, o chão estava tomado de papéis e as paredes de cartazes e adesivos. A sala foi carregada com a ira e alegria dos manifestantes. Funcionários do banco sentaram tímidos em um canto, enquanto os manifestantes continuaram a cantar e gritar; a polícia ficou do outro lado da rua assistindo.

Os manifestantes eram parte do La PAH - Plataforma de Afetados pela Hipoteca – um movimento de base que ficou famoso quando sua antiga porta-voz, Ada Colau, foi eleita prefeita de Barcelona. A campanha da PAH é contra o despejo de locatários e a penhora de hipotecas que varreram a Espanha após a crise financeira.

O grupo reivindica o impedimento de milhares de despejos, e a ação no dia 5 de abril foi parte de sua mais nova campanha, contra a firma de investimento bancário Blackstone Group, o qual de acordo com a PAH comprou 90 mil ativos hipotecários da CatalunyaCaixa e começou a tentar despejar pessoas. “Nós ocupamos bancos frequentemente, talvez uma vez por semana”, disse o membro da PAH, Santi Mas de Xaxàs. “Em Barcelona, interesses privados e especuladores – ambos nacionais e internacionais – estão empurrando pessoas para fora. Os bancos estão sendo protegidos enquanto os direitos das pessoas são violados. Nós lutamos contra tudo isso, e pelo direito à moradia decente”.

Esses despejos – feitos largamente em nome da regeneração do setor privado – são meramente uma parte de um todo mais amplo, no qual cidades estão se tornando cada vez mais excludentes. O protesto do grupo no banco coincidiu deliberadamente com o último “encontro temático” realizado na Universidade de Barcelona das Nações Unidas Habitat III, que debateu o futuro do espaço público e habitação.  O encontro integra a etapa preparatória para a conferência principal, que será realizada no mês de outubro, em Quito (Peru). Muita coisa mudou desde a Habitat II, em 1996, e o evento desse ano – encarregado de promover uma “nova agenda urbana” – visa alinhar políticas urbanas mundiais com os maiores desafios colocados às cidades e seus habitantes.

É chegado um momento crítico. Grupos de base espanhóis como a PAH e o movimento “corrala” de pessoas vivendo em prédios abandonados estão se unindo a inúmeros outros ao redor do mundo, como o Focus E15, mães resistem a despejos ocupando o Carpenter Estate em Stratford, leste de Londres, todos demandando mais ou menos a mesma coisa: uma cidade mais justa e democrática em face da especulação imobiliária desenfreada e privatização do espaço público.

O alerta durante o encontro da Habitat III reflete esse desejo por inclusão: todas as pessoas deveriam ter o mesmo acesso a serviços públicos, moradia, espaços públicos; todos deveriam ser capazes de participar na formulação de espaços que incluam todos. “Especulação está tornando espaços públicos em espaços de disputa e gerando desigualdades”, disse a prefeita de Barcelona, Ada Colau, no encontro da Habitat III. “Distâncias entre os cidadãos estão se alargando. Espaços públicos deveriam ser para o bem público.”

Conforme a conversa continua dentro dos encontros da ONU-Habitat, as ações prosseguem no território em cidades ao redor do mundo. O que os manifestantes querem é seu “direito à cidade”, como notavelmente defendido pelo geógrafo britânico David Harvey, que o definiu como “o exercício de um poder coletivo para reformular o processo de urbanização”. Agora, segundo Harvey explica, esse “direito” é restrito principalmente a uma pequena elite econômica e política que molda as cidades a partir de seus próprios interesses.

Alguns governos municipais estão acordando para a ideia, no entanto. São Paulo possui uma Coordenação de Direito à Cidade, estabelecida como parte de sua relativamente nova Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC), que visa criar políticas públicas para uma cidade mais inclusiva e participativa. Isso talvez não seja surpreendente no Brasil, um país onde a lei Estatuto da Cidade, aprovada em 2001, consagrou o direito à cidade na forma de uma nova ordem jurídico-urbana para ofertar acesso à terra e equidade nos maiores centros metropolitanos do Brasil. A lei busca priorizar a função social do território urbano, em detrimento de sua função comercial.

“Nós sabemos que a sociedade está demandando novas formas de participação”, disse Esther Madeleine Leblanc, coordenadora-adjunta da iniciativa em São Paulo. “O Direito à Cidade é importante para assegurar os direitos humanos e deve ser realizado com maior participação social, garantindo uma administração democrática da cidade. Nós queremos uma cidade na qual o espaço público seja central na interação social entre todos os cidadãos: uma cidade feita para as pessoas.”

Manifestantes se reúnem na Praça Taksim, em Istambul, para protestar contra o desenvolvimento de Gezi Park. Foto: ZUMA / Rex Features

É no espaço público – nas ruas, nos bairros, nos parques – que o direito à cidade é mais frequentemente expressado e demandado. Os protestos na Praça Taksim em Istambul, a ocupação do Parque Zuccotti, em Nova York, a revolução dos guarda-chuvas nas cidades de Hong Kong e agora o movimento Nuit Debout e os protestos na Praça da República em Paris: o espaço público é a esfera ameaçada na qual os cidadãos podem reivindicar mudanças. E esses movimentos têm dado maior visibilidade às questões que envolvem o espaço público.

Uma preocupação chave é dar a todos os grupos uma voz para definir o tipo de cidade que eles querem ver. O programa urbano Because I Am a Girl, por exemplo, deseja melhorar a segurança para meninas adolescentes em cidades, envolvendo-as em workshops e atividades onde possam se expressar e mapear os espaços públicos e as linhas de transporte onde elas se sentem inseguras e sugerir melhorias. Ao mesmo tempo, o programa capacidade para uma participação significativa em desenvolvimento urbano e governança: meninas são encorajadas a reavaliar políticas existentes e discutir como transformá-las. O programa atualmente é ativo em cinco cidades: Delhi, Hanói, Kampala, Cairo e Lima.

“Nós precisamos de uma multiplicidade de perspectivas em participação para assegurar que estamos construindo cidades inclusivas e tolerantes com coesão social”, diz Kathryn Travers, diretora do Women in Cities Internacional, que tem parceria com o Plano Internacional e a ONU-Habitat em seu programa. Permitindo a essas meninas direito à voz para construir um espaço público melhor é crítico em um contexto onde mulheres ao redor do mundo continuam a enfrentar o assédio e a violência no espaço urbano: dentre as meninas que participaram do programa, 24% delas disseram que nunca se sentem seguras em espaços públicos. “É crucial que mulheres e meninas sejam consultadas”, diz Travers. Desigualdade de gênero nas cidades levam à exclusão em espaços públicos. Em algumas cidades, mais de 90% de mulheres experienciam assédio sexual diariamente no espaço público.”

Enquanto o programa urbano Because I am a Girl só pode fazer recomendações de políticas públicas, outros órgãos sociais estão se movendo em direção a um maior envolvimento público em mudanças urbanas. Pla Estel, uma iniciativa de Barcelona, está trabalhando com o governo da cidade em um “processo de participação jovem” que trabalha para entender as necessidades de jovens no espaço público e repercuti-las nos planejamentos urbanos. Em Madri, o Conselho fez um compromisso com 109 projetos de regeneração de bairros com participação de residentes locais.

Raquel del Rio, integrante da equipe de desenvolvimento urbano sustentável de Madri, explicou quando nos encontramos em Barcelona, que o Conselho da Cidade está ajudando pessoas em lugares carentes a fim de fazer melhorias em relação à habitação e espaço público, providenciando acesso a fundos e outros recursos. Assembleias maiores estão sendo organizadas com todos os distritos de Madri para estabelecer quais melhorias as pessoas desejam ver. E houve um envolvimento público massivo na revitalização da Praça da Espanha no centro da cidade: mais de 30.000 ideias de cidadãos foram reunidas e, neste ano, o público irá votar em qual tema desejam levar adiante. É o projeto com maior participação social que já ocorreu em Madri.

O objetivo, em outras palavras, é de tornar as agências bancárias uma coisa do passado. Mais e mais, o melhor envolvimento dos cidadãos no desenvolvimento urbano foi recomendado no encontro da Habitat III como a chave para alcançar cidades mais inclusivas. “Nós precisamos de um processo mais significativo, transparente e participativo”, diz Puvendra Akkiah, representante da cidade de Durban. “Não há viabilidade de espaços públicos sem comunidades, e não há viabilidade de comunidades sem espaço público: o espaço público é o gerador de cidades democráticas”. Mas até esses espaços se tornarem mais acessíveis, habitações mais inclusivas e as cidades administradas mais democraticamente, essas ocupações e protestos provavelmente continuarão inabaláveis.


Guardian Cities integra o Projeto de Jornalismo da Habitat III