Prefeitura lança programa para alterar logradouros que homenageiam violadores de direitos humanos

Programa Ruas de Memória pretende mobilizar a sociedade para participar do processo, refletindo sobre o legado autoritário ainda hoje existente

Fotos: Fabio Arantes / Secom

A Prefeitura de São Paulo lançou nesta quinta-feira (13/8), o programa Ruas de Memória, que tem como objetivo promover a alteração dos nomes de ruas, pontes, viadutos, praças e demais logradouros públicos que homenageiam pessoas vinculadas à repressão do regime militar.

Durante o ato, a Prefeitura enviou à Câmara de Vereadores dois Projetos de Lei: um propondo impedir que sejam feitas novas nomeações referentes a violadores de direitos humanos, e outro que propõe a alteração do nome do Viaduto 31 de Março, localizado no distrito da Sé, para Viaduto Therezinha Zerbini, grande referência na luta das mulheres pela anistia. O nome "31 de Março" foi instituído por decreto no ano de 1969, em homenagem ao golpe de 1964, que instalou o regime militar no país.

"Esse projeto visa celebrar a vida daqueles que se dedicaram à democracia e que lutaram pelas liberdades individuais no nosso país, substituindo o nome daquelas ruas associadas ao período de arbítrio, ao período da violência que reinou no nosso país durante mais de 20 anos. É um resgate importante, uma reafirmação do compromisso de São Paulo com os valores democráticos. E tudo isso será feito em comum acordo com a comunidade", disse o prefeito Fernando Haddad.

“Tenho certeza que esse programa vai servir de inspiração para prefeituras do Brasil inteiro. A luta pela liberdade e pela democracia não tem fim. E sobre a liberdade, sempre vão pairar riscos”, completou Haddad, enfatizando o viés pedagógico e educacional que o processo de mudança proporcionará, principalmente para as gerações que não viveram a ditadura.

Segundo o levantamento realizado pela coordenação de Direito à Memória e à Verdade (DMV) da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC), há na cidade pelo menos 38 logradouros associados à ditadura, sendo que destes, 22 são diretamente vinculados à repressão, envolvendo nomes de ditadores, torturadores e chefes dos serviços de segurança que serviram à repressão.

 

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Por meio do programa “Ruas de Memória”, moradores de vias que carregam esses nomes poderão se mobilizar pela alteração, com apoio da SMDHC. Os novos nomes serão definidos com a participação de membros da comunidade local, fomentando o diálogo sobre a violência de Estado e os impactos do legado autoritário nos dias atuais.

A primeira mobilização ocorreu em maio deste ano, na rua Golbery do Couto e Silva, no Grajaú, com intervenções artísticas de coletivos e saraus da zona sul. A ação resultou em um projeto de lei participativo, atualmente em tramitação na Câmara, que propõe a substituição do nome do general, que foi chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI) durante a ditadura, pelo do padre Giuseppe Pegoraro, sugestão acolhida pelos moradores em reconhecimento às contribuições prestadas pelo religioso ao bairro. A orientação do programa é de que sejam homenageadas pessoas de referência na área de direitos humanos e que tenham relevância para as populações dos territórios.

O secretário municipal de Direitos Humanos e Cidadania, Eduardo Suplicy, ressaltou a extrema importância e o significado do ato. Assim como o prefeito, Suplicy também destacou a relevância dos valores democráticos. “Precisamos promover todas as ações para avançar, garantir e aperfeiçoar a democracia”, disse.

Para o ministro-chefe da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, Pepe Vargas, o programa Ruas de Memória faz mais do que uma reparação simbólica das vítimas da ditadura. “Estamos fazendo uma dupla reparação, porque a proposta enseja também a concepção democrática, não só pelo trâmite das propostas do Legislativo municipal, mas porque envolve as comunidades na discussão da definição das novas denominações que devem ser feitas", avaliou.

Responsável por apresentar o programa durante a solenidade, a coordenadora de Direito à Memória e à Verdade, Carla Borges, afirmou que para além das vítimas diretas do Estado durante a ditadura militar, o Ruas de Memória é uma entrega para toda a cidade “que de uma forma ou de outra também sofreu com a repressão e até hoje vê as marcas desse legado autoritário espalhadas pelas ruas. O programa é uma maneira de a gestão dizer que não tolera nome de torturadores estampados na cidade”.

O programa “Ruas de Memória” segue a linha de recomendações do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) e a recomendação 29 do Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), publicado em 2014. O programa parte da compreensão de que, além das graves violações a direitos individuais e coletivos, a ditadura militar também interferiu opressivamente no espaço público, a fim de conter possíveis focos de resistência, proibindo reuniões e manifestações políticas. Na mesma linha, logradouros e equipamentos públicos foram nomeados em homenagem a agentes oficiais e civis que apoiaram a política autoritária e que cometeram crimes de lesa-humanidade, enaltecendo símbolos da repressão e fomentando valores antidemocráticos como referências às novas gerações que circulam diariamente na cidade.

“A gente acredita que para além da mudança do nome da rua, é importante que esses locais voltem a ser o local do encontro, local onde as pessoas possam dialogar e exercitar a sua cidadania”, destacou Carla Borges, durante a apresentação do programa.

O presidente da Câmara Municipal de São Paulo, vereador Antonio Donato, afirmou que o programa deverá repercutir na casa legislativa da capital. "Esse debate já existiu na Câmara por iniciativa de vereadores, mas quando o Executivo entra e pauta essa discussão, ela ganha outra qualidade. É importante que a gente enfrente o debate, pois só assim derrotaremos forças obscurantistas. E este é um debate fundamental, porque diz respeito a valores profundos para quem quer construir uma nação democrática. A exemplo de outros países que saíram de períodos ditatoriais e fizeram esse processo de [troca de] nomes, este é um processo de muito simbolismo e de valorização do debate democrático", disse.

Homenagem a Therezinha Zerbini

Therezinha de Godoy Zerbini nasceu em São Paulo, no dia 16 de abril de 1928. Foi ativista de direitos humanos, fundadora e líder do Movimento Feminino pela Anistia (MFPA), criado em 1975 e que é considerado um dos marcos da luta pela redemocratização e pela promulgação da Lei da Anistia. Therezinha foi casada com o general Euryale de Jesus Zerbini, um dos poucos generais a assumir posição legalista, contrária ao golpe de 1964. Ele teve os direitos políticos cassados e foi reformado do Exército por causa de sua decisão. Therezinha foi indiciada em dezembro de 1969, após conseguir um sítio de um amigo em Ibiúna (SP) para a realização de um congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE). Enquadrada na Lei de Segurança Nacional, foi presa em fevereiro de 1970 e ficou detida por oito meses – seis deles no presídio Tiradentes, na capital paulista. Após o regime militar, Therezinha ajudou na refundação do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e, depois, a fundar o Partido Democrático Trabalhista (PDT), ao lado de Leonel Brizola. Ela morreu em 14 de março deste ano, aos 87 anos. Em maio do ano passado, a ativista foi homenageada pela Prefeitura, ainda em vida.