A voz ecoando na periferia: “A cultura permite sermos atores principais, mas também observadores, criadores e criaturas”

Míriam Selma, arte-educadora, conta para o SMC Em Foco como o teatro é um instrumento de luta

Em 29 de dezembro de 1967, no pequeno distrito de Caldas do Jorro, a 250 km de Salvador, a capital da Bahia, um peão de comitiva e uma cuidadora do lar se casaram e decidiram compartilhar não só a vida, mas seus sonhos na cidade de São Paulo. Escolhendo a zona oeste como nova morada, o casal passou a partilhar um quintal, a luta para sobreviver na cidade grande e um único banheiro, localizado do lado de fora de casa com os familiares e os quatro filhos, Antônio, Paulo, Lilian nascidos na Bahia e a casula Míriam Selma, que nascerá na década de 70, em São Paulo. Com um dom artístico, a filha dos baianos veio ao mundo para fomentar a cultura e os direitos das mulheres. Míriam Selma é arte-educadora, artista, militante, sonhadora, assim como os seus pais, e a personagem principal desta reportagem especial produzida pela Secretaria Municipal de Cultura.

Ativista sob influência dos pais e das ruas da zona oeste, Míriam Selma, uma mulher periférica e preta de cabelos cacheados e castanhos. Companheira da artista Mônica Rodrigues e mãe das lindas meninas, Zahara, Malika e Kieza, por meio da adoção, a militante luta pelos os direitos das mulheres e o combate ao machismo por meio da arte e das oficinas de teatro oferecidas gratuitamente, na Casa de Cultura do Butantã, há mais de 23 anos.

Amante da cultura e das artes cénicas, Míriam percebeu, ainda pequena, que iria ser artista. “Eu descobri aos 5 anos que o palhaço não nascia com cara pintada e decidi que iria ser uma palhaça e artista”, conta. Diagnosticada com dislexia, a arte-educadora não se amedrontou e, após oito anos de tomar a sua decisão, já vendia quadros e participava de aulas infantis de teatro no Butantã, região onde nasceu e foi criada.

O amor pela arte e a cultura aumentaram e aos 25 anos, ao lado de dois amigos Tony Moreno e Débora Carolyne, criou o Grupo Teatral Negro Sim, iniciativa que aborda temas antirracistas em peças teatrais. Neste mesmo período, a artista passou a ministrar aulas para o projeto Paulo Freire, nas escolas municipais de ensino, com o incentivo de uma amiga professora.

Em 2000, três anos depois, Míriam passou a ser oficineira de teatro na Casa de Cultura Butantã. “Eu ministrei muitas aulas marcantes e uma delas foi para crianças surdas, mudas, e/ou com déficit intelectual”, recorda a artista. “A oficina que mudou minha vida foi a dos olhos vendados. Eu tive um aluno com deficiência visual que sempre ficava afastado dos demais da turma, então tampei os olhos dos alunos que frequentavam a oficina, em torno de 90, durante uma aula, para que pudessem perceber as dificuldades e as barreiras vivenciadas pelos cegos. A ideia ainda permitia criar uma consciência do coletivo, do particular que envolve o todo”, completa.

Atuando como arte-educadora, artista e fomentando o teatro na região do Butantã, Míriam recebeu o título de Delegada da Cultura de São Paulo, na Conferência Municipal de Cultura, pela sociedade civil, em 2013. No mesmo ano, fundou ao lado de 15 mulheres o Coletivo Levante Mulher, após uma aluna ser assassinada pelo namorado e outras duas serem violentadas por 18 homens. “Quando criamos o objetivo era falar dos terríveis impactos do machismo em nossas vidas, sobretudo na vida das mulheres pretas periféricas. Levamos muitos espetáculos e intervenções artísticas para as ruas de São Paulo, outras cidades e estados do país”, relembra a militante dos direitos das mulheres.

Elevando mulheres e lutando contra o machismo por meio da arte, Míriam utilizou suas experiências com as ações artísticas e culturais para criar o seu próprio polo cultural, o espaço no qual todos pudessem se permitir sonhar e ser quem são. O local escolhido para tornar o desejo de Miriam em realidade foi a sua própria casa, localizada no extremo oeste da cidade. “Aqui na Casinha, podemos ter um envolvimento mais direto com a comunidade e perceber melhor as demandas. E a partir desse olhar, criamos as ações”, conta a militante. Atualmente, A Casinha - Lugar onde os sonhos nascem, é a sede Grupo Teatral Negro Sim e do Coletivo Levante Mulher e o espaço que oferece oficinas culturais, atividades artísticas, shows e espetáculos teatrais. Além de rodas de conversas e debates.

 

Desde o momento que começou a ser oficineira, Miriam já teve mais de 1 mil alunas que cursaram artes cênicas de forma gratuita. As oficinas de teatro permitiram não só o fomento da cultura, mas a amplificação da voz das pessoas negras e periféricas. “A cultura permite sermos atores principais, mas também observadores, criadores e criaturas. Através desse movimento podemos ver o cotidiano estampado numa obra como Guernica de Picasso, podemos observar o corpo livre da bailarina Isadora Duncan defender a Revolução Russa, podemos ouvir a voz dos flagelados e das vítimas da fome e nesse compasso nos colocar de pé contra as mazelas sociais”, destaca a artista.

Por Caroline Freitas

Serviço:
Casa de Cultura Butantã
Endereço: Av. Junta Mizumoto, 13, Jardim Peri Peri
Telefone: 3742-6218/ 3744-4369
Horário de funcionamento: 3ª a sábado das 9h às 21h, domingo das 09h às 20h. Horários sujeitos a alteração.

A Casinha - Lugar onde os sonhos nascem
Endereço: Rua Pixinguinha, 259, Jardim Cláudia
Telefone: (11) 97308-7362
Horário de funcionamento: Segunda a sexta das 07h às 10h e sábado das 09h30 a 17h.