SMC em Foco | Marfísia: meu nome é trabalho

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Para quem gosta do que faz, trabalho é diversão.

Quem diz isso é a nossa colega Marfísia Pereira de Souza LancellotteLque atua junto ao Gabinete do diretor do Departamento dos Museus Municipais, Marcos Cartum, ao qual a entidade é vinculada.

E, para provar que sua afirmação é verdadeira, embora já tenha completado sete décadas de vida dedicada ao serviço público, quer seguir a isonomia com os funcionários federais, executando suas funções até o limite dos 75 anos de idade.

- Assim, vou poder continuar exercendo minha militância cultural por mais cinco anos e estou muito contente porque fui convidada para integrar o Conselho Consultivo do Arquivo Histórico Municipal.

 

Foto de Jeniffer Estevam

Arregaçando as mangas

Trabalho nunca assustou Marfísia. Quando seu marido morreu subitamente, aos 38 anos de idade, deixando-a viúva, com o filho Bruno de sete anos e a filha Mariana, de quatro, não se intimidou: arregaçou as mangas e seguiu batalhando pelo sustento das crianças.

- Aonde quer que eu vá, pensou, vou dar o melhor de mim. Trabalho não pode ser um castigo bíblico, principalmente se você consegue colocação na área onde gosta de atuar, no meu caso a Cultura.

E foi assim, sempre seguindo sua vocação natural, que Marfísia, formada em Biblioteconomia, prestou serviços durante quinze anos no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP); foi Assistente de Curadoria na instalação do Memorial Saint Exupéry, em Florianópolis; deu aulas na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo e, desde 2002, quando entrou por concurso na Prefeitura de São Paulo, trabalhou na Biblioteca Mário de Andrade e agora presta serviço no Museu da Cidade.

- No CEBRAP, conta Marfísia, tive a oportunidade de conviver com intelectuais de primeira linha, como Fernando Henrique Cardoso, Ruth Cardoso, Francisco de Oliveira, Octavio Ianni e Paul Singer, todos perseguidos pela ditadura militar. Em Florianópolis conheci os parentes do escritor Saint Exupéry, que vieram da França para inauguração do Memorial, no local onde o autor de O Pequeno Príncipe, pousava como piloto do Aéropostale, o correio aéreo francês. E, finalmente, aqui na SMC, sempre recebi o apoio de pessoas maravilhosas, como Marco Aurélio Garcia, Celso Frateschi, Walter Pires e dos meus colegas da mesma hierarquia, que muito me ensinaram.

Guerreira até no nome

Marfísia acredita que essa sua disposição para lutar pelo que quer e enfrentar os obstáculos é inata:

- Quando eu nasci, meu pai, seu Altino, um agricultor e cordelista baiano, observando meus olhos vivos e minha agitação corporal, profetizou: esta menina é uma guerreira! E por isso me batizou como Marfísia, nome de uma das protagonistas do poema épico renascentista Orlando Furioso, de Ludovico Ariosto (1474-1533). A trama enfoca a guerra entre cristãos (francos) e mouros (árabes) no tempo de Carlos Magno. Orlando, chefe franco, enlouquece quando sua amada, Angélica, se apaixona e se casa com Medoro, comandante do exército contrário. Marfísia, por sua vez, uma destemida guerreira moura, acaba se convertendo ao cristianismo e passando para o lado dos francos.

Brotense de Macaúbas

Marfísia faz questão de dizer que é uma baiana brotense de Macaúbas radicada em São Paulo, para onde se mudou aos sete anos de idade:

- Tenho muito orgulho da cidade onde nasci, um município baiano, com pouco mais de dez mil habitantes, encravado na microrregião da Chapada Diamantina a 580 km de Salvador. Nascida na segunda metade do século XVIII, Brotas (por causa dos veios d´agua) de Macaúbas (tipo de palmeira abundante na região) começou a se desenvolver com a descoberta, no local, de diamantes, ouro e pedras preciosas. Seu filho mais famoso é o geógrafo Milton Santos, conhecido internacionalmente e foi lá também, no distrito de Ibipetum, que o Capitão Lamarca foi morto pela ditadura militar.

- Outro fato curioso ligado à minha terra é o “milagre da vaquinha” atribuído a Nossa Senhora. O caso é o seguinte: Condoída com o desespero de um criador, que viu sua bezerra cair num buraco, quebrar a pata e ter de ser sacrificada, uma senhora, que surgiu no local, disse-lhe que se ele mandasse construir uma igrejinha, o animal seria salvo. Aceito o pacto, a vaquinha, prestes a virar churrasco, abriu os olhos e, ressuscitada, saiu correndo pela caatinga.

A correria do dia a dia

Na SMC, o dia de Marfisa é corrido:

- Muita gente pensa que o Museu da Cidade é apenas o Solar da Marquesa de Santos, na rua Roberto Simonsen, 136. Na verdade, ali é apenas a sede da entidade, que engloba um conjunto arquitetônico, formado por construções dos séculos 17 ao 20 espalhadas por várias regiões da cidade. Fazem parte dessa rede de casas históricas, além do Solar da Marquesa, o Beco do Pinto, a Casa da Imagem, a Casa do Tatuapé, a Cripta Imperial, a Casa do Grito, a Casa Modernista, o Sítio da Ressaca, a Chácara Lane, a Capela do Morumbi, a Casa do Sertanista, a Casa do Bandeirante e o Sítio Morrinhos.

- Durante todo o dia, seja pelo virtual, por telefone ou presencialmente, eu sou uma espécie de intermediária entre a população, os organizadores e as atividades que se desenvolvem em cada um desses locais, lembrando que, além das casas históricas, o Museu da Cidade ainda tem sob sua responsabilidade o acervo fotográfico do município, o acervo de história oral, o acervo de bens móveis e o acervo documental.

Professora tempo integral

Conhecedora de toda a cidade, Marfísia, mesmo fora do expediente, não se cansa de relatar, a quem estiver com ela, a história de cada local por onde passa.

Foi assim que, uma noite dessas, ao sair de uma ópera do Theatro Municipal, ao constatar que o motorista de táxi que a levava, não conhecia nada dos lugares por onde transitava, foi descrevendo ao homem o histórico do Theatro Municipal, do Centro Cultural São Paulo, do Monumento de Tomie Ohtake em homenagem aos 80 anos da Imigração Japonesa, do Instituto Biológico e da sede do CEBRAP. Ao deixá-la em casa, o taxista, agradecido lhe falou: “Só vou cobrar a corrida porque tenho uma prestação do carro para pagar amanhã, mas, na verdade, eu é que deveria lhe pagar pela aula de história sobre São Paulo que a senhora me deu”.

E é assim que todos os dias, sempre estendendo seu horário de trabalho, cansada, mas contente pela atividade produtiva que exerce, Marfísia, depois de visitar seu netinho Guido, de dois anos de idade, segue para casa, onde é sempre ansiosa e alegremente recebida pelo seu companheiro de lar: o gato Reggie, que sua filha lhe trouxe dos Emirados Árabes, onde morou por alguns anos.

 

Jornalista: Gilberto De Nichile

Fotógrafa: Jeniffer Estevam

Produção: Ivani Yara dos Santos