Mau uso dos recursos é só exceção

Fonte: O Estado De São Paulo

Ao contrário do que é dito na atual discussão, principal agente da Lei Rouanet sempre foi o Estado brasileiro, não o setor privado

João Leiva Filho

A recente discussão em torno da Lei Rouanet ganhou um tom agressivo e maniqueísta, com poucas informações consistentes, algo fundamental para que a sociedade possa entender o que efetivamente aconteceu com a produção cultural nos últimos anos. Curiosamente, o maior engano ocorre em torno do ponto mais criticado: a participação privada.

Ao contrário do que é dito, o principal agente da Lei Rouanet sempre foi o Estado brasileiro. Nunca a iniciativa privada. Isso não é uma opinião, mas um fato que pode ser constatado a partir de dois pontos principais. Em primeiro lugar, é o Estado quem aprova todos os projetos. Todos. Do Cirque du Soleil aos Doutores da Alegria. O patrocínio só existe depois do aval público.

Se o Ministério da Cultura (MinC)pode alegar que não dispõe de todas as ferramentas necessárias para barrar as barbaridades (o que é verdade), não pode dizer que elas não existem. A mesma CIE Brasil, hoje T4F (Time 4 Fun), que aprovou o circo e vários outros projetos até 2006, no ano passado teve quase todos os seus pleitos rejeitados.

Em segundo lugar, o Estado, por meio de estatais federais e estaduais, é o responsável direto pela decisão de investimento de cerca de 40% da verba da Rouanet. Ou seja, do R$ 1 bilhão recebido pela cultura em 2007, cerca de R$ 400 milhões foram investidos sem participação privada. Da aprovação do projeto à decisão de investimento, a responsabilidade foi do poder público.

Os 60% restantes foram definidos pela iniciativa privada a partir da aprovação pública. Se a gestão da lei, que é de responsabilidade do MinC, for feita com qualidade, garantindo a aprovação de projetos relevantes, o bom uso do recurso estará garantido.

Será razoável imaginar que os R$ 400 milhões das estatais foram bem investidos e que o restante foi parar no lixo? Simples demais, não? Seria um atentado ao bom senso e a desqualificação do MinC, que aprovou todas essas ações.

A análise dos relatórios da Lei Rouanet deixa claro que parte das distorções apontadas são reais e precisam ser sanadas. Projetos muito caros, produtores com muitos projetos e eventos a preços incompatíveis com o subsídio estatal não combinam com o espírito da lei.

Os relatórios, porém, podem surpreender. Empresas privadas patrocinam projetos de relevância cultural e interesse público em regiões pobres e a preços acessíveis. Sim, isso acontece e com muito mais freqüência do que as posições preconcebidas deixam ver. E na ponta pública ocorre o mesmo. As estatais não vivem só de nepotismo. Colaboram efetivamente para a construção de políticas públicas.

Precisa ficar claro para a sociedade que o mau uso dos recursos é uma exceção, e não a regra. O investimento na cultura nos últimos anos foi crescente e a verba antes era tão restrita que é difícil encontrar uma área que tenha piorado.

A ação conjunta das leis de incentivo, Sesc, MinC, secretarias estaduais e municipais e iniciativa privada ativou praticamente todas as áreas: dança, teatro, música, artes plásticas, etc. Até mesmo o circo começa a ganhar vitalidade. E num cenário complicado, com a revolução tecnológica invadindo as casas, mudando hábitos e inibindo o lazer externo.

Como no caso da Lei Rouanet, o crescimento veio com algumas distorções, é evidente que os eventuais abusos de produtores e empresas precisam ser contidos. Não há por que perpetuá-los. Da mesma forma, seria uma enorme ingenuidade apostar todas as fichas no dirigismo estatal e no retorno dos balcões. A sociedade já viu esse filme. A moderna gestão pública pressupõe o acompanhamento da sociedade civil, não a sua exclusão.

O MinC deveria colocar em seu site os relatórios que mostram onde cada empresa investiu cada real. Poderia ir além. As empresas, estatais ou privadas, deveriam ser obrigadas a abrir integralmente essas informações. Ajudaria a desmistificar radicalismos de ambos os lados e ampliaria a transparência da lei.

O fundamental agora é termos um bom diagnóstico do que ocorreu com os investimentos nos últimos anos, sem impressões generalistas. Estudos que mostrem onde a lei funcionou e onde efetivamente criou distorções. Só assim vamos conseguir avançar.

Qualquer legislação, de qualquer área, precisa de ajustes ao longo dos anos. Isso é um processo normal, que não precisa ser traumático. Não é possível que a área cultural não consiga evitar uma visão maniqueísta da lei e do mundo e chegar a um ponto de equilíbrio. Justamente a área cultural, que tanto se orgulha de criticar o maniqueísmo alheio…

Os dados mostram, por fim, que vários projetos recebem patrocínio simultâneo de empresas estatais e privadas. Um sinal claro de que podemos construir um país em que poder público, produtores culturais e iniciativa privada consigam se ver como partes de uma única e mesma sociedade.

João Leiva Filho é consultor da área cultural