Duas leis: divisão ou diversidade?

Fonte: O Estado De São Paulo

Mobilização se acirra e revela contradições internas e diferenças de visão sobre mecanismos de apoio

Beth Néspoli

Se o movimento da classe teatral ganhou os holofotes nas últimas semanas, ele não começou ontem. Representante da APTR, Andréa Alves enfatiza que a discussão teve início há cerca de cinco anos, nas câmaras setoriais. 'Em outubro de 2005 conseguimos, numa audiência pública, incluir o teatro na Comissão de Educação e Cultura. Abrimos essa porta', diz. O anteprojeto de lei do Redemoinho também é de 2005 e já rendeu reportagem no Estado ao ser apresentado no 2º encontro da rede, realizado em Belo Horizonte, no Grupo Galpão.

Por que a disputa parece mais acirrada agora? Em parte pelas diferenças de propostas nos anteprojetos (leia abaixo), em parte pela própria mobilização da classe teatral. No dia 27 de março, dia do teatro, manifestações foram feitas em 11 cidades de diferentes Estados, planejadas pelo movimento Redemoinho em parceria com a Cooperativa Paulista de Teatro. Na próxima quinta-feira, o conselho do Redemoinho, formado por diretores de São Paulo, Porto Alegre, Natal, Belo Horizonte e Salvador, tem encontro marcado com o secretário executivo do MinC, Juca Ferreira, para discutir o anteprojeto de Lei de Fomento. Em maio haverá outra reunião na comissão do Senado para debater a Lei do Teatro. 'Com certeza o movimento está mais maduro, propõe projetos, coloca o teatro em pauta e isso é um avanço', diz Andréa.

Mas não unificado. São contradições que se repetem ao longo da História. Se há debate, livre, democrático, as diferenças aparecem. Algumas radicais como se pode constatar pela leitura dos artigos da página ao lado. Por outro lado, se há maturidade, o debate resulta frutífero. 'No Brasil, é erro comum a confusão entre distribuição de verba e política cultural. Sempre se discute o primeiro. Enquanto não houver esse entendimento, a discussão não avança', já argumentava Eduardo Tolentino, do Grupo Tapa, em reportagem do Caderno 2 de 11 de março de 2005, sobre a concentração de renda na captação feita por meio da Lei Rouanet. As reportagens também se repetem agora.

É ponto importante - a lei de incentivo é apenas um mecanismo de financiamento. Que serve, bem ou mal, a uma parcela da produção artística. Para além dos grupos organizados e dos artistas cuja simples presença no Senado repercute na mídia, há uma maioria silenciosa lutando para produzir e aprimorar a arte teatral em todo o País. Para levar O Avental ao festival de Curitiba, o grupo baiano Teatro de Bastidores fez uma via-crúcis por órgãos públicos e, ao final, contou sobretudo com seu público. 'Teve até um espectador que pagou uma das passagens', diz a produtora Graça Regina Souto Silva. Viajaram sem cenário, que recompraram em Curitiba (R$ 270) e lá deixaram. 'Nosso projeto foi aprovado na Rouanet, mas não captou.' Um caso, entre muitos. E era um espetáculo de autor premiado, Marcos Barbosa.

'Só vai mudar quando as escolas levarem seus alunos ao teatro e ao cinema', diz Andréa. 'Ainda há executivos da área de Marketing que não têm noção do que é teatro.' Com qual freqüência empresários, médicos, engenheiros ou políticos vão ao teatro? Talvez uma pesquisa séria de público revelasse que sua ausência nas salas não é mera questão de poder aquisitivo. Uma cena teatral forte e diversa pede mapeamento, políticas públicas planejadas para desenvolver a atividade em toda a sua amplitude, inclusive na formação, no sentido mais profundo, de público.

Se há consenso nesse ponto, não há sobre quais mecanismos dariam conta dessa amplitude. Ney Piacentini, presidente da Cooperativa Paulista de Teatro, enfatiza: 'É preciso conhecer para criticar. A lei federal que propomos, por exemplo, não é só para manutenção de grupos, mas para produção de espetáculos e circulação. O que considero importante pôr em discussão é que fundo público tem de ter destinação pública. Lei de incentivo, da forma como está, é loucura brasileira, não existe em país nenhum.'

'O atual debate é bom porque pode servir para afiar o diagnóstico, única chance de se chegar a boas soluções. Reações acirradas costumam ser provocadas por diagnósticos precários', diz o consultor cultural João Leiva Filho. 'Um dos problemas é que o funcionamento da lei piorou', diz o produtor Claudio Fontana. 'Antes a análise de um projeto levava no máximo dois meses, agora leva seis. Teoricamente, a criação de uma secretaria não é uma boa idéia, mas se na prática melhorar o atendimento eu aprovo', argumenta.

'Um dos problemas da Lei Rouanet é ser única', diz o presidente da Funarte Celso Frateschi. 'Cerca de 90% do que é aprovado não capta, é trabalho perdido', diz. Claudio Fontana sugere que a dedução possa ser feita também sobre o lucro presumido - e não só sobre lucro real - o que facilitaria a captação e o investimento, nas pequenas empresas. 'O Ministério da Cultura tem consciência de que mudanças vêm sendo solicitadas há cinco anos. Mas não se constrói política cultural com uma cartada. É preciso maturação. Acho que chegamos a esse ponto', diz Celso Frateschi.

Recentes críticas de Frateschi à Lei Rouanet, segundo ele responsável pelo encurtamento das temporadas, provocaram uma reação em cadeia. 'Estou convencido de que ainda vou convencer os produtores teatrais de que estou a favor deles', diz ele. 'Do jeito que está a Lei Rouanet não lhes serve.'

Produtores apontam a meia-entrada obrigatória para estudantes e idosos como uma das causas dos altos custos de produção. Onera e não atinge quem deveria. 'Não é por ser estudante ou idoso que há carência financeira', diz Beatriz Segall. 'Sem contar que qualquer curso e até pizzaria dá carteira de estudante.' Fontana aponta ainda os altos aluguéis das salas de espetáculo.

Celso Frateschi considera forte entrave no funcionamento da Rouanet o perfil dos captadores e a concentração de renda (leia quadro nesta página). 'Não vou falar pelos outros, mas pela própria Funarte. Os prêmios Miriam Muniz, de teatro, e Klauss Vianna, de dança, foram realizados com captação pela Lei Rouanet. Como um produtor independente vai concorrer com Estados e com prefeituras?' Uma lei geral para as artes vem sendo gestada no Ministério da Cultura. 'No máximo em dois meses será posta em discussão com a classe', diz Frateschi. Ele acredita que embora não seja uma lei específica para o teatro, vá servir entre outras coisas para desonerar a Lei Rouanet. 'E terá especificidades que respeitam as diferenças de necessidades entre as áreas.'

Mais uma etapa dessa discussão certamente se dará no dia 5, quando Frateschi participa de um debate, aberto ao público, no Centro Cultural São Paulo, para discutir Políticas Públicas para o Teatro.