Uma espécie em extinção

Fonte: Jornal Da Tarde

 
Durante um dia todo em uma biblioteca de poesia, o JT viu gente que queria de tudo. Menos poesia

Gilberto Amendola,

“Com essa leitura dinâmica, decerto nem chegarão a me enxergar...”
(Mário Quintana)

A Biblioteca Alceu Amoroso Lima, em Pinheiros (R. Henrique Schaumann, 777), é um lugar projetado para não se ter pressa. Um espaço especializado em poesia para quem quer passar horas em companhia de poetas como Quintana, Drummond, Bandeira. A reportagem do JT topou o desafio de ficar quase um dia inteiro lá. O destino seria morrer de tédio ou de poesia?

A idéia era ser o primeiro a chegar à biblioteca, às 8h. Mas 15 minutos de atraso foram suficientes para perder a pole position. No terceiro andar da Alceu Amoroso Lima, as mesas já estavam ocupadas por cinco aposentados e um homem mais jovem. Os idosos liam os jornais do dia e faziam palavras cruzadas. “Acordo cedinho e venho para a biblioteca. Tem de chegar logo porque as palavras cruzadas são muito disputadas por aqui”, revela o aposentado Lourival Soares, 64 anos.

O único leitor com menos de 60 anos naquela sala estava no finzinho de um livro sobre o poder da mente. Decido deixá-lo em paz - não se interrompe uma leitura no fim - e resolvo puxar conversa com a bibliotecária Eliana Silva, 54. “Vocês têm um acervo de 2.500 livros de poesia, mas não tem ninguém lendo poesia aqui. É sempre assim?”, pergunto. Paciente, Eliana me explica que a biblioteca tem um ritmo próprio. “De manhã, você encontra os leitores de jornal e o pessoal das palavras cruzadas. Depois, chega o pessoal que vai prestar concurso público e vem estudar. Depois do almoço, são os estudantes. Eles fazem lições de casa. Só no meio da tarde é que chega um pessoal mais interessado em poesia.”

A própria Eliana não é assim tão chegada a versos. Ela prefere os livros esotéricos. Por falar no assunto, ela conta uma história da época em que trabalhava na Biblioteca Mário de Andrade - a maior da Cidade, atualmente fechada para reforma. “Um dia um usuário contou que tinha conversado com uma garota lá dentro. Ele pegou o telefone dela e ligou no dia seguinte. Quem atendeu foi a mãe da menina. Ela disse que a filha dela tinha morrido há muito tempo. Foi um fantasma quem conversou com ele.”

Depois de falar sobre fantasmas com a bibliotecária, volto para o pessoal das palavras cruzadas. Surpresa: o homem que estava no finzinho do livro sobre o poder da mente retrocede em sua leitura. Agora, está no meio do livro. Não me agüento. “Você está lendo de trás para frente?”. “Sim, gosto de ler assim mesmo, principalmente os livros que abrem a minha mente”, explica Luiz Roberto de Santos Santana, 45, que acabou de chegar do Sergipe e mora em um abrigo da Prefeitura.

Chega a hora do almoço. Como a bibliotecária me preveniu, começaram a chegar os candidatos aos concursos públicos e estudantes. Eles preferem o segundo andar. Lá, confortáveis pufes coloridos e a ampla visão da Henrique Schaumann são os atrativos. “Vou prestar concurso. Tem dias que passo 5 horas estudando aqui”, diz Andrea Lima, 32. “Gosto de vir para cá porque o silêncio não é absoluto. A gente fica vendo o trânsito da rua. Não se aliena da realidade”, conta a estudante de Sociologia Luiza Wainer, 19. “Eu só venho atrás dos livros que a faculdade pede”, comenta a estudante de Direito, Érika Amorim, 23.

O tempo da reportagem na biblioteca está acabando. Até as 14h, ninguém encostou em um livro de poesia. Quando me dou por vencido, a estudante de Letras Adriana Avelar da Silva, 26, surge com um exemplar do poeta Manoel de Barros. Peço um verso. De memória, ela cita Barros: “Eu escuto a cor dos passarinhos.” Como se abrissem a porteira da poesia, outro estudante apanha sonetos de Shakespeare. “Vou estudar Física, mas me amarro em poesia”, diz Artur Moraes de Souza, 26.

No fim da tarde, um balanço. Foram 7 horas dentro de uma livraria especializada em poesia (embora tenha romances, livros técnicos etc..). Nesse tempo, encontrei apenas dois leitores do gênero. Como diria Mário Quintana, a culpa deve ser dessa tal de leitura dinâmica.