Heroísmo como forma de superação

Fonte: O Estado de S. Paulo

É o que propõe o ator e diretor Vinícius Piedade, que inicia hoje, com H.E.R.Ó.I.S., uma trilogia sobre o feito dos anônimos

Ubiratan Brasil

Um prisioneiro sabe que seus dias estão contados - dentro de uma semana, uma rebelião vai acontecer na penitenciária onde cumpre pena e seus inimigos vão aproveitar a chance para liquidá-lo. De uma certa forma, um herói anônimo. Assim como Rafael, deficiente visual de nascença que vive a angústia de conhecer um novo amor na noite de ano-novo. As pequenas tramas de Cárcere e A Âncora e o Indizível formam o corpo de H.E.R.Ó.I.S., espetáculo com que o ator e diretor Vinícius Piedade inicia sua busca pelo heroísmo dissolvido na rotina das pessoas. A peça estréia hoje, no Porão do Centro Cultural São Paulo.

Piedade vem de uma temporada de quatro anos viajando pelo Brasil com o solo Carta de um Pirata. Ali, ele utilizava a voz de um fora-da-lei para defender justamente os esquecidos pela lei. Passando tanto por teatros convencionais (fez temporada no Cacilda Becker) até por espaços improvisados em prisões, ele conheceu uma disparidade social que só fez aumentar seu inconformismo. 'Fui ao Acre, ao Amapá, ao Espírito Santo, ao Paraná, descobrindo os contextos mais diversos desse país.'

Sim, a apatia não pertence a seu repertório, formado durante o período em que ele e outros selecionados participaram de um curso organizado por Denise Stoklos, no Teatro Sesi, em 2003. Chamado Solos do Brasil, o projeto buscava desenvolver o chamado teatro essencial, aquele que nasce e vive exclusivamente do ator, em um grupo de artistas que já desenvolviam uma atividade semelhante. Piedade era um deles - por falta de recursos financeiros, não freqüentou nenhum curso ou escola de interpretação.

Sua arte foi desenvolvida, então, com apresentações em todos os lugares, fossem teatros devidamente construídos ou palcos improvisados. Piedade teve, com isso, um contato mais íntimo com o teatro essencial, desenvolvendo técnicas de mímica e expressão corporal. Conheceu também diferentes tipos de público.

Um dos que mais o impressionaram foram os encarcerados de Vitória, no Espírito Santo. Foram quatro visitas em que conquistou a confiança dos presidiários, homens e mulheres. Foi também a oportunidade de conhecer o trabalho de Saulo Ribeiro, que também passara pela cadeia - não como preso, mas como professor da escola prisional. Durante mais de um ano, ele passou os dias no presídio e à noite em casa, uma espécie de regime semi-aberto às avessas, como ele próprio diz.

Com isso, ele adquiriu experiência suficiente para escrever Cárcere. 'Não procurei retratar um presidiário padrão', comenta Ribeiro, no texto que consta no programa da peça. 'Fugi (sempre que possível) da linguagem de cadeia, a fim de deixar o texto mais compreensível.' Para ele, Ovo, o presidiário condenado pelos colegas, representa um herói, pois persiste na vida, mesmo quando tudo leva à morte.

Em Vitória, Vinícius Piedade conheceu também a cronista e poeta Aline Yasmin, para quem fez o convite de escrever um texto de teatro. O resultado é A Âncora e o Indizível, no qual trata da relação do deficiente visual com os outros. Para ela, Rafael é também um herói. 'Ele nos ensina que ver não é exatamente a condição do olhar, mas de perceber o que existe a sua volta, no quanto pode ser visto', comenta Aline, no programa da peça.

A união dos dois textos, que são apresentados quase simultaneamente (apenas uma pequena pausa marca a divisão entre eles), permite a Vinícius Piedade mostrar o heroísmo como forma de superação. 'O espetáculo é o primeiro de uma trilogia que vai tratar do verdadeiro herói, não aquele que voa ou anda pelas paredes', afirma ele, que se apresenta ao lado do pianista Manuel Pessôa.

Ele ainda não desistiu de montar um velho projeto, um solo inspirado na figura de Papillon, personagem real que conseguiu fugir de uma prisão antifugas. Outro herói.

Serviço

H.E.R.Ó.I.S. 80 min. 12 anos. Centro Cultural São Paulo -Porão (100 lug.). R. Vergueiro, 1.000, 3383-3400. 3.ª a 5.ª,21 h. R$ 15. Até 20/3