Morador da Vila dos Idosos vence prêmio promovido pela CET

O sobrenome é uma referência na literatura mundial. Mas quem é Décio Diniz Drummond? Nascido no Rio de Janeiro, hoje com 82 anos, é morador da Vila dos Idosos, empreendimento da Secretaria Municipal de Habitação (Sehab) no bairro do Pari, vencedor do I Prêmio CET de Educação no Trânsito, promovido pela Companhia de Engenharia de Tráfego, na categoria Terceira Idade, e, podem acreditar, sobrinho de Carlos Drummond de Andrade, um dos maiores escritores brasileiros ao lado de João Guimarães Rosa e Machado de Assis, entre outros. Mas ele vai logo avisando. “Não gosto de ser tratado como um parente, parece que ficamos reduzidos a isso quando sabem da minha ligação com Carlos. Procuro preservar minha identidade, sou o Décio”, afirma.

A qualidade e as informações da crônica enviada (ver abaixo), cujo tema versava sobre “uma história do trânsito na sua infância”, já dão algumas dicas sobre esse senhor de temperamento forte, sincero, excêntrico. “Fiz de tudo em minha vida. Sou filho único e era um terror quando criança. Por isso meus pais me puseram no Colégio São Bento, um internato no centro de São Paulo. Mas desde cedo a veia artística da família pulsava em mim. Livros, teatro, cinema, tudo o que provocava reflexões me fascinava e fascina até hoje”, diz Décio que é formado em Filosofia e Letras e um poliglota, já que domina quatro idiomas.

E foi exatamente uma combinação recheada de arte – o filme “Duas Vidas”, com a atriz americana Irene Dunne, e o livro “Em Busca do Tempo Perdido”, do francês Marcel Proust –, que serviu de inspiração para a criação do texto premiado. “A memória é como um emaranhado de fios. É preciso buscar a ponta do novelo, para ir puxando a história do fundo das lembranças. E a cena do atropelamento de Irene foi traumática para mim, na época tinha apenas 11 anos. Acredito que consegui elaborar o que os organizadores esperavam. Um enredo interessante, com uma lição de comportamento no trânsito”.

O CONCURSO

A notícia sobre a conquista do primeiro lugar foi dada por Jordana Rocha, pedagoga que trabalha na Vila dos Idosos, e que também foi responsável, junto com sua colega de trabalho Daniela Miranda, assistente social, pela descoberta do concurso e pela inscrição de Décio e mais outros nove moradores. “Estava no ônibus quando vi o cartaz. Foi tudo muito corrido, já que estava perto do prazo final. Mobilizei algumas pessoas pelo perfil delas, e quase todas toparam participar. Depois ficamos na expectativa e quando vi que o Décio tinha vencido, fiquei muito feliz e ele também”, diz Jordana.

Décio Drummond, filho do irmão mais velho de Carlos (eram dez no total), é viúvo, tem uma filha que mora na Itália e três netos. Ele mesmo já morou no país da bota, além de Estados Unidos e Paraguai. “Saí corrido daqui, em 1968. Trabalhava na Faculdade de Filosofia e fomos todos considerados subversivos, comunistas. Fugi antes que me prendessem”. Voltou nos anos 1980 para ser ator de teatro, professor de literatura e crítico de arte, porém curiosamente nunca produziu um livro. “Sou inquieto, não teria paciência para produzir algo que necessita de muita elaboração. Poesias? Não suportaria a comparação com meu tio”. Na Vila, divide seu tempo entre leituras, ginástica, DVDs, e a culinária, paixão antiga. Como Proust, adora as madeleines, doce a base de chocolate e que é um dos temperos de sua crônica.

Perguntado sobre o futuro, respondeu com um sorriso nos lábios. “Não tenho mais futuro, só o meu passado. Mas para quem achar isso tenebroso, aviso. Adoro a vida, cheguei na minha idade vivendo tudo intensamente. Agora o que vier é lucro. Até o computador que vou ganhar como prêmio, e nem gosto de computadores, contabilizo como lucro”, finaliza.

O TEXTO PREMIADO

PASSADO REVISITADO

Voltar no tempo. Fazer o percurso inverso e chegar a infância, de onde extrair um fato marcante envolvendo o trânsito. Tarefa difícil. Mais difícil ainda quando já existem mais de setenta anos como postes sinalizando a estrada.
O escritor Marcel Proust buscava o tempo perdido enquanto degustava as madeleines feitas por sua velha governanta. Sua memória afetiva era instigada pelo sabor das madeleines.

Quanto a mim, não moro em Paris, não possuo a mínima semelhança com o grande escritor, não sou atendido por uma governanta francesa e, se quiser saborear madeleines, preciso eu mesmo ir à cozinha prepará-las.

São poucos os recursos de que disponho para revisitar o passado. Uma das chaves com que costumo abrir a porta da memória é o cinema. Inúmeros filmes estiveram de uma forma ou de outra associados a fatos de minha vida. Um deles - precisamente aquele que inclui uma imagem relacionada com o trânsito e que marcou minha infância de maneira indelével – foi Duas Vidas. Gravei na retina para sempre o rosto de Irene Dunne, transmitindo feliz antecipação ao atravessar a Quinta Avenida em Nova Iorque, uma antecipação que subitamente se transmuda em terror e pânico ao sentir a iminência inevitável do atropelamento.

À saída do cinema eu não conseguia parar de falar da cena do atropelamento, que me impressionara profundamente.

Os sábados, naquela época, eram dias muito especiais para mim, pois era quando meu pai, pela manhã ia me buscar no colégio. Filho único, insubordinado e voluntarioso, precisei ser internado. Puseram-me no Colégio São Bento, de padres alemães que, a muito custo, conseguiram moldar-me no que sou hoje (ainda não decidi se melhor ou pior).

Naquele sábado especial, à tarde, após o tradicional chá da Casa Vienense, fomos ao cinema e, em seguida, jantamos no restaurante Jacinto, o preferido de minha mãe. Naqueles distantes anos trinta o centro de São Paulo era calmo e divertido, pontilhado de luxuosos cinemas, refinadas casas de chá e excelentes restaurantes. Durante o jantar, meu pai não perdeu a oportunidade de ministrar-me uma aula de educação no trânsito, fazendo-me entender que, no filme, a personagem, distraída, atravessava a avenida movimentada, sem olhar para os lados nem procurar o semáforo. Esse tipo de descuido, explicou meu pai, é, sem dúvida, uma das principais causas de atropelamentos.

Aquele filme já foi refeito mais duas vezes: na década de cinqüenta, com Débora Kerr, e na de noventa, com Anette Bening. Porém, é o rosto expressivo de Irene Dunne que trago gravado na retina e que me alerta cada vez que atravesso uma rua no trânsito tumultuado de São Paulo. Não preciso das madeleines de Marcel Proust para estimular-me a memória.

O PRÊMIO

A CET organizou o I Prêmio CET de Educação no Trânsito com o intuito de incentivar a reflexão, a criatividade e a produção de trabalhos voltados para a segurança no trânsito. Foram seis categorias, cada uma com tema distinto.

- Estudante – O que vejo no trânsito no meu trajeto casa/escola (crônica)
- Terceira Idade – Uma história do trânsito na sua infância (crônica)
- Professor – Projeto voltado à educação para o trânsito
- Empresa ou entidade – Projeto de segurança e qualidade de vida no trânsito
- Condutor – Um trânsito melhor (crônica)
- Profissional técnico da área – Pensando em um trânsito melhor (artigo)

Conheça os vencedores acessando www.cetsp.com.br. A entrega dos prêmios foi no dia 23 de setembro. Além de Décio, participaram pela Vila dos Idosos, Agília Loureiro, Jacira Justina, José Dias de Andrade, Milton Gonçalves Caçador, Neide Duque Silva, Olerite dos Santos Soares, Ormezinda Ribeiro Elizo, Raimundo Cosmo Alves e Ruy Ribeiro.