História e restauro da igreja mais antiga de São Paulo

A CAPELA DE SÃO MIGUEL
Dra. Roseli Santaella Stella*

 
Fundação do bairro - 1560
O bairro de São Miguel foi fundado pelo padre José de Anchieta, em 1560, ao reencontrar nas terras de Ururaí um grupo de índios guaianaz chefiados por Piquerobi, irmão de Tibiriçá. Estes indígenas haviam abandonado as imediações do colégio jesuíta de São Paulo, quando no mesmo ano, os moradores da vila de Santo André da Borda do Campo foram transferidos para os campos de Piratininga. Para retomar os trabalhos evangélicos com os nativos ergueu-se uma igrejinha muito simples como marco da presença cristã na aldeia que recebeu o nome de São Miguel, arcanjo de devoção de Anchieta, e também padroeiro de sua terra natal, La Laguna, em Tenerife, na Espanha. A partir de então, a aldeia ficou conhecida como São Miguel de Ururaí, nome dado ao Tietê nesta parte do seu trajeto.

A defesa de São Paulo
O caráter guerreiro dos índios chefiados por Piquerobi e a posição estratégica da aldeia, situada à margem esquerda do Tietê, foram suficientes para que São Miguel ganhasse importância no sistema defensivo organizado pelos jesuítas para a defesa do colégio de São Paulo de Piratininga contra as investidas de inimigos. Entre eles estavam os Tamoios, confederados com os franceses no Rio de Janeiro. A posição geográfica ainda propiciava reunir em um grande núcleo vários índios espalhados pela região, facilitando o trabalho dos poucos missionários que saiam do “Pátio do Colégio” para atender aos índios nas distantes aldeias. Também não havia fortalezas no planalto para promover a defesa, e a igreja transformava-se em uma espécie de fortificação diante de ataques inimigos. Em 1622, São Miguel ganhou novo templo religioso que substitui a pequena igreja, que era bastante grande se comparada ao templo que havia no colégio de São Paulo, o que demonstra a relevância adquirida por São Miguel já nos seus primórdios. Tanto que, em 1623, os índios aldeados em Itaquaquecetuba foram transferidos para São Miguel, indicando que as ações jesuítas obedeciam a um plano aglutinador e defensivo, no qual a antiga aldeia de São Miguel desempenhou um importante papel na vila de São Paulo e na capitania de São Vicente.

A nova igreja - 1622
O padre João Álvares e o sertanista Fernão Munhoz são considerados os responsáveis pela construção da nova igreja de São Miguel. As obras foram concluídas em 18 de julho de 1622, segundo consta da inscrição no batente superior da porta principal.
Em 1691, a igreja de São Miguel sofreu os primeiros reparos. Alguns anos depois passou por reformas promovidas pelos franciscanos, que pouco acrescentaram às suas formas e grandiosidade originais.
Com os franciscanos, o pé direito da nave foi elevado de quatro para seis metros, e duas janelas foram abertas acima do telhado fronteiro com um óculo central. A construção das paredes é de taipa de pilão e a parte superior que foi acrescentada é de adobe. A igreja ainda ganhou altares laterais e escoramento interno de madeira, além de certos elementos decorativos em dourado, vermelho e azul no altar principal, na sacristia e na capela lateral, a qual lhe foi acrescida. Uma das intervenções sofridas pela capela no final do século XVIII, foi orientada pelo franciscano frei Mariano da Conceição Veloso, natural de Mariana, cidade que guarda exemplares do barroco mineiro. Graças a sua formação e ao seu meio, a igreja não foi descaracterizada em sua forma original e ganhou elementos decorativos com luz e cores mais vibrantes ainda existentes nos altares laterais e nichos encontrados na sacristia. Os franciscanos permaneceram em São Miguel de 1693 até 1803, onde possuíam um convento atrás da igreja. A construção serviu de pensão até 1941, depois foi reformada para residência e existiu até a década de 1970 quando a demoliram.
A igreja de São Miguel foi tombada pelo Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) em 1938, sendo que o seu diretor, o arquiteto Luis Saia, dirigiu pessoalmente o seu restauro, entre 1939 e 1940. Depois disso, a igreja tem recebido pequenos reparos e no momento, um projeto de restauração, além de solucionar problemas estruturais, deverá transformar a velha igreja em um dinâmico espaço cultural.

O acervo
A pia batismal e a bancada de comunhão são originais e esculpidas em jacarandá. Esta última, ornamentada por querubins em duas extremidades, expressa a singeleza das mãos que entalhou os rostos de traços finos e alongados, a exemplo das feições européias. A originalidade desta bancada justifica a sua utilização para ilustrar a capa da Revista Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), da Universidade de São Paulo. Também chamam a atenção os totens encontrados na janela e na porta externas da construção original. Estes entalhes não apresentam semelhança com figuras do gênero produzidas por nativos brasileiros, o que indica tratar-se de testemunho da presença em São Miguel, e talvez do único vestígio no Brasil, de índios capturados em regiões andinas por sertanistas que atuavam na América espanhola, como era o caso de Fernão Munhoz. As portas variadas constituem interessante acervo desta igreja, seja pelo seu sistema de abertura sem dobradiças, seja por sua dupla função no caso de uma delas: a de separar o altar da sacristia ao mesmo tempo em que os elementos vazados transformavam o espaço em uma espécie de confessionário.
A Igreja ainda possuiu um elemento arquitetônico que a torna inconfundível: a varanda ou balcão fronteiro e lateral que a cerca em forma de um grande L. O primeiro é aberto na parte superior e sustentado por seis pilares. O segundo é fechado com pilastras em toda a extensão.
O emprego destas varandas divide a opinião de especialistas. Segundo alguns, a utilização de alpendres garantia o frescor das construções, além de constituir abrigo para forasteiros durante as caminhadas. Segundo outros, os alpendres eram a extensão do próprio templo e local de conversão. Unânime, no entanto, é a opinião de que os alpendres eram um recurso utilizado no Brasil nas construções domésticas e também empregado na arquitetura religiosa. Em Roma ainda sobrevivem igrejas usando o mesmo recurso, como a de Santa Maria ed Martyres, consagrada em 609.
Pode-se afirmar que a capela de São Miguel é um dos poucos, e talvez o único, templo religioso no Brasil que conserva integralmente as suas varandas. Já o púlpito, no alto da parede lateral esquerda, inspirou o modelo empregado em uma espécie de sacada, existente na parte externa da capela, sob o amplo beiral que, na falta de calha, evitava que o barro das paredes de taipa fosse levado pelas chuvas.
A igreja de São Miguel, atualmente na condição de capela, é o templo religioso mais antigo da cidade de São Paulo, e uma das construções mais remotas do Estado, sendo superada pelo forte da Barra Grande de Santos e pelo de Bertioga, ambos de meados do século XVI.
De viajantes aos modernistas, além de autores mis contemporâneos, diversos foram os artistas e intelectuais que deram atenção à igreja de São Miguel, entre eles Thomas Ender, Belmonte, Mário de Andrade, Luís Saia, Lúcio Costa, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Carlos Brunetto e Percival Tirapeli, para citar apenas alguns entre outros nomes de destaque.

A restauração em 2005
Desenvolvido pela empresa especializada na preservação da memória e dos bens culturais Formate (que também conduziu o projeto de recuperação da Catedral da Sé), o Projeto de Restauro da Capela de São Miguel Arcanjo resgatará um templo religioso com valores históricos reconhecidos por urbanistas, historiadores, arquitetos e pesquisadores, como Gilberto Freire, Sergio Buarque de Holanda e Lúcio Costa, entre outros.
O restauro da capela deve custar R$ 3 milhões. As principais intervenções serão no sentido de recuperar o piso original, suas imagens religiosas e revisar sua estrutura.
A restauração será patrocinada pela iniciativa privada através da Lei Rouanet.
A previsão é que ela esteja restaurada em até um ano.
Após esta obra, a Praça Padre Aleixo Monteiro Mafra, onde está localizada a capela, também passará por revitalização.

Considerações baseadas em:
AMARAL, Aracy A. A Hispanidade em São Paulo. Edusp/Nobel, São Paulo, 1981.
PATRIMÔNIO CULTURAL PAULISTA- Condephaat Bens Tombados: 1968-1998. (Coord. Kamide, Hiroe Miguita Kamide et alii). São Paulo, Imprensa Oficial do Estado, 1998.
STELLA, Roseli Santaella. “Anchieta e a Fundação de São Miguel de Ururaí”. Anais do Congresso Internacional Anchieta 400 Anos. São Paulo, Comissão do IV Centenário de Anchieta, 1997, p.329-336.
O Domínio Espanhol no Brasil Durante a Monarquia dos Felipes. São Paulo, Unibero/Cenaun, 2000.
VIOTTI, Hélio Abranches, SJ. “Origens de São Miguel”. In: Antonio, Geraldo. Catálogo Comemorativo do 359º Aniversário de São Miguel Paulista.São Paulo, s/ed. 1981, p.2-3.

*Roseli Santaella Stella é Doutora em História pela USP, e membro da Associação Cultural Beato José de Anchieta, proponente do Projeto de Restauro da Capela junto ao IPHAN e Ministério da Cultura.