M'Boi Mirim, onde a população decidiu reduzir a violência

A carência de ações públicas levou a comunidade a se organizar de forma reivindicatória em uma das regiões mais violentas de São Paulo, que chegou a ser considerada a mais violenta do mundo

O Jardim Ângela, no extremo sul da capital paulista e um dos dois distritos que compõem a área da Subprefeitura do M’Boi Mirim, ficou famoso no ano 2000, quando foi apontado pela Organização das Nações Unidas (ONU) como o lugar mais violento do mundo. O título era resultado de uma taxa anual de 116,23 assassinatos para cada 100 mil habitantes, índice que subia para 200 por 100 mil quando calculado apenas sobre a população masculina entre 15 e 25 anos de idade, de acordo com o Mapa da Exclusão Social, organizado pelo Núcleo de Pesquisas em Seguridade Social da PUC de São Paulo e Programa de Pesquisas em Geoprocessamento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE).

Tudo parecia, então, contribuir para deprimir a auto-estima da população local: em 2002, trabalhando com dados de 2000, o mesmo Mapa da Exclusão Social revelava que 19,8% dos chefes de família moradores do distrito não tinham renda e apenas 1% tinha curso superior. E as más notícias não paravam aí: o Jardim Ângela chegou a ostentar, nos anos 90, a triste posição de líder em mortalidade materna e um aumento de 40% da mortalidade infantil entre os anos de 1994 e 1999, quando a média estava caindo em toda a cidade. As desventuras continuavam com a constatação de que o vizinho Jardim São Luiz, o outro distrito da Subprefeitura M´Boi Mirim, acompanhava o Jardim Ângela como segundo colocado em todas as suas tristes estatísticas.

Pois foi nessa aparente terra de ninguém que a professora de costura Odete Maria Antônia Marques, de 64 anos, decidiu exercitar os seus dotes de animadora comunitária. Criadora e coordenadora, há 12 anos, dos grupos de convivência para a terceira idade dos jardins São Joaquim e Kagohara, duas do aglomerado de 37 pequenas vilas que compõem o distrito do Jardim Ângela, ela descobriu em seus vizinhos na região uma inesperada riqueza. E não foi a única. A carência de ações públicas levou a comunidade a se organizar de forma altamente reivindicatória, diversos projetos foram desenvolvidos buscando tirar as crianças e os jovens das ruas, afastando-os das drogas e da violência – e alguns resultados já vêm aparecendo: o número de homicídios, embora ainda muito alto, caiu quase à metade.

Depois de avaliar os problemas e suas causas, foi criado em agosto de 1996 o Fórum em Defesa da Vida, que teve como princípio incentivar as igrejas e entidades da região a criar ações pela superação da violência, "para que a vida fosse preservada e respeitada”, lembra o padre Jaime Crowe, da Paróquia de Santos Mártires, um irlandês de 60 anos que chegou ao Brasil em 1969 e desde então tem se dedicado a lutar pela melhoria da vida de seus paroquianos. Como padre Jaime, de certa forma todos são “estrangeiros” em M´Boi Mirim.

Crowe chegou ao Jardim Ângela em 1986, quando a região passava por seu último processo de ocupação. O primeiro foi em 1607, quando foram instalados o Engenho de Nossa Senhora da Assunção de Ibirapuera e uma sociedade para extração de minério de ferro, a primeira da América do Sul, à beira do rio Pinheiros, próximo à aldeia indígena do M´Boi Mirim, que na língua nativa significa rio das cobras pequenas. A área onde hoje fica o Jardim São Luiz era então conhecida como Ibirapuera e funcionava como uma espécie de posto avançado, para identificar e retardar prováveis ataques dos índios ao povoado principal, fundado pelos jesuítas no Páteo do Colégio.

A experiência com a extração de minério de ferro durou apenas cerca de 20 anos e foi abandonada pois o material produzido não foi considerado de boa qualidade. Depois disso a área da antiga aldeia dos índios guaianases ficou praticamente esquecida durante 200 anos, servindo apenas como ponto de passagem para os viajantes em direção ao Embu e Itapecerica da Serra. Foi só em 1829 que se deu o segundo processo de ocupação do M´Boi Mirim, com a chegada de um grupo de 129 imigrantes alemães, trazidos por D. Pedro I, para colonizar aquelas terras. Três anos depois a região de Santo Amaro, que incluía a antiga aldeia do M´Boi Mirim, foi elevada à categoria de município.

Em pouco tempo toda a bata e a marmelada e grande parte da farinha de mandioca, milho, carne, madeira, areia e pedras aparelhadas para uso em construção consumida em São Paulo vinha do novo município. Foi isso que levou à inauguração, em 1886, da primeira ligação de bondes movidos à vapor entre as duas cidades.

No início do século 20, com a inauguração da usina hidrelétrica de Santana do Paranaíba e as constantes secas, a The São Paulo Tramway, Light & Power decidiu represar o rio Guarapiranga, afluente do Pinheiros, para regularizar a vazão do Tietê nos meses de seca. Em 1926 com a inauguração de uma nova represa, a Billings, o conjunto de dois lagos passou a atrair um novo tipo de pessoas, especialmente a área onde hoje fica o Jardim Ângela, que ficou conhecida como a Riviera Paulista, devido à beleza de suas margens.

Eram principalmente alemães e italianos, que vinham para cá nos finais de semana, para praticar caça, pesca e esportes aquáticos”, lembra Enrico Contrucci, proprietário da Cantina Venetta fundada em 1964.

Quando a Cantina Venetta foi inaugurada, porém, a região do M´Boi Mirim já iniciara seu processo de degradação. Ele começara ainda nos anos 50, quando ocorreu o desmembramento dos antigos sítios e chácaras em lotes, para abrigar os operários que chegavam de todas as partes para trabalhar nas fábricas que se instalavam em Santo Amaro.

"É comum até hoje encontrarmos famílias e amigos, que vieram da mesma região, morando lado a lado”, diz a bibliotecária e pesquisadora da história da região Míria de Moraes. No final da década de 60, a ocupação se tornou predatória. Estimulados por grileiros, empresários, incorporadores e até políticos desonestos, uma mistura de vilas, favelas e um grande número de loteamentos clandestinos tomou conta da região, incluindo as áreas de preservação de mananciais. Depois, com o fim do chamado “milagre brasileiro”, as condições de vida passaram a se deteriorar e a região passou a abrigar principalmente trabalhadores desempregados e pessoas expulsas de outros bairros pelos altos preços dos aluguéis, muitos deles vivendo em condições precárias, sem água, luz ou saneamento.

Os números são expressivos. Criada em 2003, a Subprefeitura do M´Boi Mirim tem área de 62,1Km² – equivalente à do município de Osasco – e 145 mil domicílios onde vivem 532 mil pessoas. Em número de habitantes, se fosse um município autônomo, o M´Boi Mirim seria a 34ª maior cidade do país, mas 26% de seus moradores habitam as 272 favelas da região ou em 34 áreas de risco, muitas delas dentro da zona de proteção a mananciais nas margens da represa de Guarapiranga – área de proteção ambiental por ser responsável pelo abastecimento de água de 30% da população de 10 milhões de paulistanos. Como era previsível, vicejando nesse caldo de cultura, a violência explodiu ainda na segunda metade dos anos 70.

A reação da comunidade começou já no início dos anos 80. Em 1981 surgiu o Serviço Social Bom Jesus - SSBJ, que hoje reúne cerca de 200 profissionais e 100 voluntários desenvolvendo atividades junto à comunidade, com parcerias com o espaço Criança Esperança, a Unicef/Unesco e o Instituto Sou da Paz em torno de 20 programas que atendem cerca de 5.000 pessoas, de crianças a idosos, oferecendo opções de lazer, cultura, esporte, acesso à informática e cursos profissionalizantes.

Depois vieram o Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (CEDECA) e a Casa Sofia, coordenada há 18 anos pelo padre Jaime. O primeiro atende 250 jovens em oficinas de panificação, informática básica e avançada, enquanto a Casa Sofia oferece atendimento a mulheres vítimas da violência através de orientação psicológica, jurídica e social.