No Consultório na Rua, Samira conquistou seu lar

Com o apoio do programa, a ex-moradora de rua conseguiu uma profissão e seu direito à cidadania

Samira em sua colação de grau. Ela usa uma beca preta com uma faixa verde em torno do pescoço e chapéu de formanda. Os cabelos estão soltos e ela esboça um sorriso

Mulher transexual, assistente social e culinarista, Samira relembra com emoção sua trajetória pessoal (Foto: Arquivo Pessoal)

 

Cerca de 24 mil pessoas vivem em situação de rua na capital, segundo o mais recente censo feito pela Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (Smads). Samira Alves Matos já foi uma delas, mas com o apoio do programa Consultório na Rua conquistou um lar, uma profissão e seu direito à cidadania.

Mulher transexual, assistente social e culinarista, hoje com 47 anos de idade, ela relembra com emoção sua trajetória pessoal, os percalços que a levaram à rua e a oportunidade que mudou sua vida, há sete anos.

Nascida em Brasília, mudou para Belém para morar com a avó, aos seis anos de idade, após a morte de sua mãe. Na adolescência se mudou para Manaus para viver com o pai e na mesma época começou a entender sua identidade de gênero. Após algum tempo se abriu com o pai sobre sua transexualidade e ele a expulsou de casa quando ela tinha apenas 15 anos.

Sem o apoio da família, passou a morar nas ruas de Manaus, onde “dormia em edifícios abandonados por achar mais seguro do que me expor na rua”, conta. Em paralelo, iniciou sua transição de gênero, mas enfrentava dificuldades para conseguir uma oportunidade de emprego na cidade, que tinha uma população muito marcada pelo preconceito.

Em meio à prostituição para sobreviver e às dificuldades na transição, em 2001 ela resolveu se mudar para São Paulo para tentar uma vida melhor, mas, como não conseguiu emprego, continuou se prostituindo. De 2003 a 2006, morou na Europa e quando voltou finalizou a transição de gênero.

A mudança de vida
Depois de alguns anos morando nas ruas, Samira sofreu um trauma grave, após um ato de violência, e esse foi o fator decisivo para iniciar a busca por emprego novamente e tentar se reconstruir. Para aumentar suas chances profissionais, em 2009 fez um curso de culinária e outro de telemarketing, mas o preconceito dos empregadores ainda era impeditivo. Ela relata que os restaurantes não aceitavam sua identidade de gênero e pediam que ela se vestisse como homem, usasse o nome masculino entre outras coisas que a feriam emocionalmente e impossibilitavam-na de avançar. Na época, os movimentos LGBTQIA+ ainda não tinham conquistado o direito ao nome social, e por isso, o preconceito era muito mais escancarado e, inclusive, permitido.

Samira conta que esse momento foi o mais desafiador de sua vida, ela enfrentava uma depressão profunda e sofria pela dificuldade de conseguir um emprego formal. Durante esse período ela era assistida por algumas organizações não-governamentais (ONGs) e frequentava o Centro de Referência de Defesa da Diversidade (CRD). Lá conversava com uma assistente social que a aconselhou a tentar uma vaga de agente de saúde no Consultório na Rua. Em julho de 2013 entrou para o programa e conseguiu seu primeiro trabalho com carteira assinada. “Demorou, mas a vida me deu uma oportunidade”, diz Samira, que é muito grata à assistente social que a incentivou a não desistir.

Após desenvolver um bom trabalho como agente de saúde e com o apoio do BomPar - uma das organizações sociais de saúde contratadas pela Secretaria Municipal da Saúde para execução do Consultório na Rua -, ela conquistou, em 2019, sua formação superior em serviço social.

O que mais motiva Samira hoje é poder ajudar o próximo. Ela continua atuando no programa e contribui para que 1.600 pessoas em situação de rua sejam atendidas diariamente na capital. Além disso, é voluntária em ONGs em atuam em prol da diversidade e que a acolheram. Ela valoriza muito as oportunidades que teve e agradece por poder proporcionar a outras pessoas o mesmo que foi feito por ela. “O que mais me motiva é poder multiplicar o que foi feito por mim. Resgatar a cidadania de uma pessoa é gratificante, é um trabalho de honra do qual tenho muito orgulho”, declara.

Samira conta que por ter morado tanto tempo nas ruas, aprecia muito a casa que conquistou e adora aproveitar seu tempo nela. Se sente feliz de ter um lugar só dela. Além de ficar em casa, ela ama cozinhar e se dedicar ao candomblé, religião em que foi iniciada aos 17 anos de idade. Ela diz que queria ser nutricionista, mas se descobriu na profissão atual, como assistente social. "Fiquei tanto tempo sem casa que hoje o mais gratificante é poder passar meu tempo livre no lugar que construí, o meu lar."