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Quinta-feira, 9 de Março de 2017 | Horário: 16:56

De salto alto: na trilha da luta contra o preconceito

Paula é o nome social da nossa entrevistada que trabalha no CAPS AD II Capela do Socorro. Transgênero, ela completa 39 anos de idade no Dia Internacional da Mulher e fala da sua trajetória de vida contra o preconceito, a discriminação e pelo respeito à liberdade de gênero.Encarando a entrevista como um presente, ela espera que sua história inspire outras trans e ajude a abrir portas para elas no mercado de trabalho.

Entrevista: Tatiana Ferreira
Texto final: Cármen Ludovice
Fotos: Edson Hatakeyama

“Se a pessoa se identifica como mulher, ela deve ser tratada no feminino”. É assim que Paula Legno, transexual e trabalhadora do SUS, começa a delimitar o tema sobre liberdade de gênero e igualdade direitos.

 Paula de jaleco branco. Ao fundo um corredor externo com toldos verdes.

 

Inserida no mercado de trabalho como articuladora do Centro de Cidadania LGBT, zona sul, em Santo Amaro, atuou posteriormente como técnica de enfermagem no Caps Álcool e Drogas (AD) II Capela do Socorro. Paula diz ter sofrido menos preconceito e intolerância que a maioria da população LGBT, principalmente em função da aceitação e acolhimento que teve e ainda tem da sua família de origem. Mas reconhece que há muito ainda a ser feito contra a transfobia, a intolerância e a violência – temas infelizmente ainda recorrentes nos dias de hoje.

Pesquisas indicam que só no ano de 2015 os assassinatos de trans no Brasil tiveram um aumento de 42% – isso sem considerar a notória subnotificação desse tipo de crime no país, que mais mata travestis e transexuais no mundo.

A revelação

Desde cedo Paula se percebeu diferente. Entrou em conflito psicológico, brigou consigo mesma, recorreu à ajuda divina. “Quantas vezes, aos doze, treze anos, eu olhava para o céu e dizia: – “Deus, eu não sou isso, eu não quero ser isso, mas é algo muito mais forte que a gente”, emenda.

Para ela, muitas vezes as pessoas entram no armário para satisfazer a vontade da família, dos pais, da sociedade, porque é muito difícil ser trans, muito dolorido. “Não é opção, afinal, quem gosta de ser maltratado e agredido verbalmente e até fisicamente”, questiona, lembrando que foi motivo de chacota quando criança, na escola. E garante que não se deixava abater por isso, por ser “muito determinada”.

Na época da descoberta da sua transexualidade, ainda não havia o termo transexual, a denominação era travesti. “Era muito difícil encontrar travestis andando pelas ruas durante o dia, então a gente não tinha nem referência, nem orientação de como agir, etc.”

Embora as informações sobre as questões ligadas à sexualidade estejam mais acessíveis atualmente, ela acha que ainda não são suficientes: “não só para a pessoa que está se descobrindo, como também para a população em geral”, pondera.

Para quem é leigo na matéria, o termo transexual se refere às pessoas – homens ou mulheres – que não se identificam com o gênero atribuído a elas no nascimento, e não está necessariamente ligado à cirurgia de redesignação de gênero, a chamada cirurgia de mudança de sexo. Os trans femininos ou masculinos, como preferem ser chamados, podem também recorrer a hormônios, cirurgias de mudança de sexo, alteração de nome civil em registro, entre outros.

A transição

Mais velha de uma família de três irmãos, Paula nasceu e cresceu na região de Santo Amaro, onde morou até os 22 anos. “Com 16 anos comecei a minha transição”, conta. “Até então eu era criada da casa para a escola e da escola para a casa. Daí uma trans mudou-se para a rua onde eu morava e, por meio dela, eu descobri como era o mundo lá fora”, explica.

“Quando falei para a minha mãe sobre fazer minha transição, ela inicialmente não aceitou, talvez pelo impacto da notícia. Então, eu saí de casa e fui morar com umas amigas também trans. Depois de três meses, minha mãe me procurou e pediu para eu voltar pra casa, porque ela queria deitar sua cabeça no travesseiro e saber que o seu filho estava bem”. A partir disso, ela passou a usar somente o meu nome social, aplaude.

Paula acredita que sua história de vida seja um pouco diferente da história da maioria das pessoas transexuais, por ser aceita, acolhida e respeitada por sua família. Por isso, a auxiliar de enfermagem, que também é agente voluntária de prevenção do CTA – Centro de Testagem e Aconselhamento Santo Amaro há quatro anos, reconhece o sofrimento da população LGBT que, em geral, segundo ela, “nem mesmo no seio da própria família encontra abrigo, carinho, aconchego”.

A participação voluntária

Na época da inauguração do CTA Santo Amaro – que realiza diagnóstico e prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, e oferece testes para HIV, sífilis e hepatites B e C, gratuitos e sigilosos –, eles primeiramente foram atrás das travestis para serem as primeiras pacientes, porque era muito impactante abordar os heterossexuais para participar de um equipamento referência nesse tipo de assunto. “Assim”, orgulha-se ela, “fui uma das primeiras”.

Então, quando surgiu a oportunidade de ser uma agente de prevenção, ela embarcou de cabeça. “Ministramos oficinas sobre DSTs (Doenças Sexualmente Transmissíveis) em escolas, empresas, enfim, onde solicitam”, informa. “Temos uma unidade móvel que visita lugares onde há grande concentração da população LGBT e também onde solicitem nossa presença. Na testagem itinerante, o horário é mais flexível e dá para eu conciliar com o meu trabalho no Caps Capela”.

Um mar de rosas

Com 16 anos, e achando que tudo era um mar de rosas, começou a se prostituir. Nessa época, estava cursando o primeiro ano do segundo grau e decidiu abandonar os estudos e ficou afastada da escola até os 32 anos de idade. Nesse intervalo, morou na Itália durante oito anos, “trabalhando nas ruas”, como ela mesma define.

Quando voltou para o Brasil, decidiu nunca mais ser profissional do sexo e retomar os estudos. Comecei a fazer o curso de auxiliar de enfermagem, em 1998. Mas tive de parar, na época, por falta de condições financeiras. E também por ainda não ter concluído o ensino médio, “por ter ido conhecer o mundo”. “Mas como já havia me identificado com a área, talvez por acreditar que os gays são mais aceitos nessa profissão, comecei a fazer supletivo e, paralelamente, o curso de técnico de enfermagem. Ralava muito. De manhã, enfermagem; à tarde tinha de me virar para ganhar meu dinheiro e à noite ir para a escola fazer o EJA – Educação de Jovens e Adultos. Foi um período muito difícil, mas como estava com o objetivo de mudar de vida, consegui terminar”, orgulha-se.

Os dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais revelam que cerca de 90% dos travestis e trans estão na prostituição porque não conseguem uma oportunidade. “Por já ter passado por isso, acredito que a maioria das meninas que hoje estão nessa vida sabem que ali não há um futuro. Então, elas tentam voltar atrás, se capacitar em alguma coisa para ingressar no mercado de trabalho. Aí veem os nãos, todas as dificuldades, fazendo com que elas decidam permanecer no mercado do sexo. É muito difícil, por isso acredito que elas nem mais esperança têm. Eu nunca desisti, pois sabia que um dia ia acontecer. E torço pelo dia em que mais e mais trans possam ser professoras, médicas, dentistas, etc.”

Paula afere pressão de paciente no CAPS - AD Capelo do Socorro

Inserção profissional

Até surgirem o Centro de Cidadania e o CAPS no horizonte profissional de Paula, ela nunca havia tido uma oportunidade de inserção no mercado de trabalho. O único lugar que lhe abriu as portas foi uma cooperativa de saúde. “Participei de vários processos seletivos, passei nas provas, mas quando me apresentava com o meu nome civil, toda aquela simpatia, toda aquela educação desapareciam rapidamente. Na verdade, havia todo um preconceito velado, traduzido nas falas de quem me atendia: a vaga já foi preenchida, não há vaga no momento”.

O caminho percorrido para chegar até aqui foi longo e árido. Dos 16 aos 32 anos, foi profissional do sexo, depois fez um curso de terapeuta corporal, mas não gostou. Terminou os estudos, tentou processos seletivos e nada, a não ser essa cooperativa a que se referiu acima.

Ficou quatro longos anos procurando emprego até ser informada sobre a abertura do Centro de Cidadania LGBT na Zona Sul. O espaço desenvolve ações permanentes de combate à violência por orientação sexual e/ou identidade de gênero, além de promover a diversidade sexual. Então enviou currículo e se candidatou tanto para a vaga de recepcionista quanto para a de limpeza. Afinal, não queria mais mesmo viver do trabalho das ruas, das esquinas. O centro foi inaugurado no final de março de 2016. “Recebi um e-mail para uma entrevista de emprego. O fato de eu ser da região pesou a favor da contratação. Eles me ofereceram uma vaga na articulação”, vibra. “Esse trabalho muito me ajudou em minha construção profissional e pessoal. Sou muito agradecida a todos da equipe do Centro”.

Mudança de nome

Enquanto trabalhava no Centro, Paula resolveu dar um tempo com a enfermagem até terminar a retificação do seu nome, “para ver se a coisa melhorava”. Nesse meio tempo, a assistente social do CAPS convidou Paula para realizar uma dinâmica de sensibilização de identidade e gênero no CAPS AD Capela do Socorro, que oferece atendimento específico para portadores de transtornos psicológicos, além de diagnósticos e encaminhamentos, quando necessário, para outros serviços especializados. “Quando terminei, fui convidada para participar do processo seletivo para auxiliar de enfermagem, porque esse Caps, que é voltado à inclusão, está recebendo muitos pacientes LGBT, e as equipes não estão ainda bem preparadas para lidar com essa população”.

Contrariando o coro dos contentes, a auxiliar de enfermagem passou no exame e foi contratada em janeiro de 2017. “Estou gostando muito de trabalhar aqui, esse emprego é um presente para mim. “Encontrei pessoas sensíveis e generosas, que me aceitaram e me acolheram muito bem desde o início, vendo em mim uma profissional tão capaz quanto as outras, não a minha identidade de gênero”, agradece.

Avanços do SUS em relação às trans

Para ela, o SUS está interessado em melhorar em relação à população LGBT e avançar nas questões que envolvem a transexualidade. “Participei de uma reunião na SMS, já que o Centro de Cidadania está discutindo a questão da inserção de hormônios para transexuais. Fiquei agradavelmente surpresa e abismada, porque eles não só querem fazer a hormonização, como também desejam oferecer o atendimento integral para as trans. Mas algumas coisas ainda podem melhorar, como por exemplo, as UBS passarem pela dinâmica de sensibilização de identidade e gênero e orientação sexual. Também oferecer leitos para a população trans feminina em locais diferentes das alas masculinas ou separar os espaços com cortinas e biombos, por exemplo, pode ser uma boa pedida”, reivindica.

A esse respeito, o cartunista Laerte Coutinho, que assumiu sua identidade feminina, em 2004, aos 57 anos de idade, causou polêmica e chamou a atenção para o assunto após usar o banheiro feminino de um restaurante e ser repreendido por isso. Outros casos semelhantes aconteceram e continuam a ocorrer nos quatro cantos do país, com a Justiça dando alguns ganhos de causa ao direito de gênero da pessoa ser respeitado, já que a trans feminina se vê como mulher, e banheiros femininos têm espaços individuais que preservam sua privacidade.

Para finalizar, Paula deixa uma mensagem relativa ao Dia Internacional da Mulher: “não podemos parar de lutar e nem deixar que as pessoas nos limitem; e em especial quero dizer para as meninas e os meninos trans que não desistam: a luta é grande, doída, mas vale a pena”.

O SUS E A CIRURGIA DE REDESIGNAÇÃO SEXUAL

Até 1997, as cirurgias de mudança de sexo eram proibidas no Brasil. Desde 2008, o SUS – Sistema Único de Saúde vem realizando cirurgias de redesignação sexual, em cinco hospitais brasileiros: Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás; Hospital das Clínicas de Porto Alegre; Hospital Universitário Pedro Ernesto, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro; Fundação Faculdade de Medicina da USP; Hospital Mário Covas; e Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

 

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