Adeus, favela Zacki Narchi!

Secretaria de Habitação e Subprefeitura Santana/Tucuruvi fazem a demolição dos últimos barracos da favela Zaki Narchi.
Técnicos comemoram o fim de uma das favelas mais problemáticas da cidade, localizada em uma área de alto risco onde viveram cerca de 2.500 pessoas. Em nove anos de existência, foram cinco incêndios, várias interdições e protestos que resultaram em confrontos com a PM.


“A senhora não sabe o que é isso! Para uma mãe, mesmo que a filha seja um problema é muito difícil. Tinha oito guardas pra dar um jeito e levar ela pra lá. Ela está com mais de cem quilos!”. Maria Aparecida Oliveira, 63 anos, conta a remoção de sua filha dias atrás, com problemas mentais, cuja resistência em abandonar sua casa obrigou a Prefeitura a recorrer à GCM para levá-la do barraco que seria demolido em mais uma etapa da operação de erradicação da Favela Zaki Narchi, zona norte de São Paulo, para o Hospital do Mandaqui. A penúltima operação foi realizada em novembro de 2005, com 140 remoções. Cecília Nammur, assistente social e diretora de Habi Norte, ouve com atenção. Com tato, encaminha a conversa para a conclusão de que foi melhor para mãe e filha. Afinal, a filha receberá tratamento psiquiátrico e ela poderá visitá-la. Aparecida assente, ao que Cecília dá prosseguimento às instruções para que ela entenda as opções destinadas aos moradores em processo de remoção. Não sem antes concluir, como que para manter sua reserva de integridade: “Eu já morei bem, trabalhei em muitas empresas, já tive minha casa”. Corpo franzino, de pele muito clara e olhos azuis, Aparecida, hoje aposentada, veio muito novinha de Piracaia, interior de São Paulo. Pelo celular, Cecília contorna problemas burocráticos com técnicos de Habi para evitar atraso no pagamento da Verba de Atendimento Habitacional. Ela sabe que muitos daqueles moradores em fase de remoção estão desde cedo nos corredores da Secretaria de Habitação à espera do dinheiro. Todos os pagamentos devem ser efetuados até 14h00, para que não haja um acirramento da situação com a chegada dos tratores. Em casos como este, a confiança na relação com o poder público é crucial. Igualmente crucial é fazê-los entender a necessidade de apresentar todos os documentos exigidos para que recebam o dinheiro.
O trabalho que precede essa fase é o congelamento da área, no qual todos os barracos são numerados e é feito o cadastramento das famílias, como forma de controlar a invasão do lugar por novos favelados que se apresentam como moradores para receber o dinheiro, tão logo sabem que a Prefeitura vai agir. Cecília delega algumas funções à sua equipe, Elaine Cristina da Costa, arquiteta, Márcia Siqueira e Jeane dos Santos, assistentes sociais. Em Habi Norte, ao todo são 18 profissionais, entre assistentes sociais, engenheiros, arquitetos e administrativos.
Conhecida e respeitada ao longo de 25 anos de trabalho, a maior parte na favela, a assistente social conversa com os moradores, alertando-os para a iminência da remoção, enquanto um e outro retiram fogão, cama, utensílios a serem poupados. Em meio ao vozerio de crianças, discussões e barulhos de animais domésticos a equipe esgueira-se por passagens estreitas, por baixo de fiação clandestina e por cima de mangueiras no chão que fazem a distribuição de água para os barracos. Em uma viela na descida do morro, dois barracos se equilibram no apoio mútuo das partes superiores de suas madeiras formando uma passagem em forma de pirâmide.
Surgida em 1995, em um terreno de cerca de 20.000 m², de propriedade da Prefeitura, em 1996 houve a primeira intervenção, com a remoção de 160 famílias para os conjuntos do Cingapura, do outro lado da avenida. Em pouco tempo, o espaço deixado por aquelas famílias já abrigava novos núcleos. Adolescentes grávidas, parentes, laços familiares ou simplesmente de sobrevivência davam continuidade às novas formações, tornando a ocupar o mesmo terreno com novos barracos.
A favela foi arrasada por sucessivos incêndios, o primeiro deles ocorreu em 1996. Depois vieram os casos de 1999, 2000 e 2002, o pior deles, no qual mais de 200 barracos arderam em chamas deixando mais de mil moradores desabrigados. A Subprefeitura de Santana/Tucuruvi, em conjunto com a Secretaria Municipal de Habitação, GCM e Corpo de Bombeiros evitaram o pior. Não houve vítimas e os moradores foram encaminhados para abrigos da Prefeitura e atendidos com cestas básicas, colchões e donativos da própria comunidade. A realidade, em fatos como esses, geralmente vai além dos clichês exibidos à exaustão pelos programas que têm em tragédias assim seu filão de audiência. As ações podem ser díspares, desde casos de extrema solidariedade por meio do trabalho voluntário a pregações violentas contra miseráveis.
O último incêndio, em 12 de agosto deste ano, destruiu 80 barracos e deixou mais de 350 pessoas na rua. Novamente, secretarias estadual e municipal da Habitação e a Coordenadoria da Ação Social agiram com rapidez. Alguns foram para apartamentos da CDHU no Itaim Paulista, outros foram alojados em um abrigo provisório montado em um clube municipal, outros buscaram as casas de seus familiares. Para conter o incêndio e salvar vidas, o drama, de perto, era vivido por 95 homens do Corpo de Bombeiros, 34 viaturas trabalhando, das quais 24 caminhões-pipa. São várias as histórias e poucos sabem de casos de salvamentos como o dos irmãos gêmeos. Presos em cima do teto de uma loja, depois de terem voltado para pegar os uniformes de futebol, não conseguiam mais descer. Foram momentos tensos até que um bombeiro, sempre anônimo, esticando a escada até eles resgatou-os dentro de um cesto. Depois deste episódio, a população fez dois protestos bloqueando a avenida com pneus queimados, fato que provocou caos local com represália da PM, que fez prisões e respondeu com bombas.Neste ano, as favelas da capital registraram 83 incêndios, o dobro do ano passado, por motivos já bastante conhecidos.Também é fato que já existe disseminada nessas comunidades uma cultura de meios ilegais para burlar o poder público. O falso cadastramento é um exemplo, o uso da verba para fins escusos, outro, e há até casos de incêndios provocados com objetivo de arrancar a verba da Prefeitura. Com população diversificada, onde se encontram também moradores com boa formação e intrigantes histórias de vida, nas favelas também vivem aqueles que fazem das mais distintas formas de crime suas profissões.
Cecília Nammur tem organizado seguidas remoções com sua equipe, desde que a Secretaria de Habitação decretou a remoção de toda a favela, cumprindo Ação Civil do Ministério Público. Para tanto, desde agosto foi elaborado um cronograma de ações preparatórias que compreendiam o levantamento da área restante, demarcação dos barracos, cadastramento das famílias, reuniões com os moradores para apresentação da proposta e definição de suas opções e atendimento individual das famílias. O plano da Secretaria, em parceria com o Estado, apresenta soluções como o auxílio para pagamento de aluguel aos que aguardam os apartamentos da CDHU (340 unidades habitacionais serão entregues entre janeiro e fevereiro de 2006), mudança para o conjunto City Jaraguá, da Prefeitura, ou ainda a doação de uma verba para que usem da forma que melhor lhes parecer, como, por exemplo, retornar aos seus lugares de origem. Antiga área de várzea, usada para extração de terra e posteriormente utilizada como depósito de lixo e entulho, dando-lhe uma topografia de morro, o terreno, onde há o córrego Carandiru, hoje um esgoto fétido, jamais poderia ser usado para moradia, com tantas inadequações, a começar por sua estrutura geológica instável e o alto teor de poluentes químicos.
Todos em Habi Norte estão ansiosos para comemorar o fim da favela onde moravam cerca de 2.500 pessoas. Na volta do trabalho, em conversa sobre esse longo processo de convívio muitas vezes duro e outras afetuoso, Cecília lembra em especial um episódio em que a animosidade dos moradores, em uma ação de remoção, cresceu a ponto de hostilizar e ameaçar com o enfrentamento os técnicos da Prefeitura, ela à frente de todos. Por um breve momento, o cenário, dividido entre favelados de um lado e técnicos e máquinas de outro esteve próximo da conflagração. Talvez a firmeza, a confiança e a história daqueles que trabalham por vocação tenha dissipado o desespero, cedendo o espaço para o trabalho.