Uma Mulher Moderna – Fotografias de Gertrudes Altschul

Mostra com 24 fotografias realizadas nos últimos anos de vida de Gertrudes Altschul (1904-1962), uma das poucas mulheres com produção ativa nas primeiras décadas do Foto Cine Clube Bandeirante.

Uma Mulher Moderna – Fotografias de Gertrudes Altschulde 
de 7 de março a 13 de setembro de 2015 

Isabel Amado

Folhas secas, flores de plástico e de papel, confeccionadas no pequeno atelier que Gertrudes mantinha com o marido – ofício trazido junto com a bagagem da Alemanha numa forma de sobrevivência, foram de fato referências inspiradoras, que ressignificadas através da fotografia, resultam em um trabalho de profundo rigor estético, que incluiu experiências como sobreposições de negativos, construção de pequenos cenários (table top) ou simplesmente tomas diretas que não por isso deixam de buscar a perda do referente.

As folhas solarizadas, as linhas, os contornos dos objetos, indicam uma carga de respeito – carregada de expressão – à forma, e ao que está subentendido nela; o que é real? O que é palpável? Sua obra oferece liberdade total à criação. Assim como para a maioria dos fotógrafos participantes do movimento conhecido como a Escola Paulista, a fotografia não era a principal atividade de Gertrudes, mas foi através dela que a artista extrapolou os conceitos do ofício, aplicou sua experiência do artesanal e se utilizou de um dos instrumentos mais modernos da época, a câmera fotográfica, como recurso de compreensão e ferramenta de transformação do que se pensava ser um caminho para a arte.

Os urubus solarizados aqui se transformam em gaivotas, na intenção de poetizar a crueldade da sobrevivência; os galhos que despontam espremidos do lado direito da imagem mostram uma sensualidade que parece à flor da pele; a teia de aranha descortina a trama do inseto e se transforma em véu.

Rever conceitos se tornou um hábito na vida desta artista, que saiu do seu país de origem fugindo da guerra e ficou um ano sem ver o filho pequeno e que não por acaso guarda até hoje o acervo de Gertrudes.

Não era a única, não foi a primeira. Uma mulher num clube estritamente masculino, e aqui me refiro ao da fotografia como um todo, é no mínimo inusitado e abre caminho para pesquisas mais aprofundadas de quem eram essas mulheres.


Gertrudes Altschul, a reinvenção da vida 
Henrique Siqueira,

Martha Gertrud Altschul (Gertrudes Altschul, nome artístico) nasceu em 1º de janeiro de 1904, na Alemanha, filha de Karl Leszczynski e Helene Leszczynski.. Casa-se com Leon Altschul e, em 1930 nasce o único filho, Ernst Oscar Altschul.

Como tantos outros judeus que perceberam na escalada do Nazismo uma ameaça à sobrevivência, a partir de 1936 a família começou a planejar a saída da Alemanha. Seu primo Franz Purwin e o tio, Walter Leszczynski, fixam residência no Rio de Janeiro e São Paulo, encarregando-se inicialmente pelo chamamento da mãe e, posteriormente, de Gertrudes e leon. Em 1939, por intermédio da Kindertransport (organização humanitária para o transporte de crianças sem os pais) o filho Ernst é encaminhado para Londres. No mesmo ano, Gertrudes e Leon embarcam para o Rio de Janeiro, mas em uma escala em Bordeaux (França), devido à guerra entre os dois países, Leon é detido pela polícia. Após algumas semanas, Gertrudes parte sozinha para o Brasil, onde, na capital paulista, aguardou a liberação do marido e o demorado reencontro com o filho que só aconteceu em 1941.  

Em São Paulo o ideal de trabalho e desenvolvimento econômico, urbano e social foi notável entre as décadas de 1940 e 1950, culminando com a comemoração do IV Centenário de Fundação da Cidade. Na região central prosperavam sofisticados estabelecimentos comerciais, como a Casa Alemã (Galeria Paulista), Sloper e Mappin. Ainda nesta região instalaram-se as principais instituições culturais – os palácios da Cinelândia, os teatros, as livrarias, a Biblioteca Mário de Andrade e Monteiro Lobato, e o Museu de Arte de São Paulo e Museu de Arte Moderna. Neste cenário de crescimento, rapidamente o casal Altschul reiniciou a vida com a produção de flores para chapéus que eram distribuídas nas lojas de moda. 

O cotidiano da cidade e do trabalho, e as atividades da família foram registrados por Gertrudes com uma câmera 35mm e as imagens editadas em álbuns. Este momento marca sua primeira aproximação com a fotografia, relação que será intensificada quando, no início da década de 1950, passará a frequentar as reuniões do Foto Cine Clube Bandeirante - FCCB, submetendo seus trabalhos à análise crítica e avaliação dos membros, que a aceitarão com a emissão da carteira de associado em julho de 1952. Neste ano, após uma viagem à Argentina, decide melhorar sua estrutura de trabalho ao adquirir uma câmera Contax e, mais tarde, uma Roleiflex, equipamentos com os quais obterá melhor qualidade técnica na captação e mobilidade na operação, assim como instala um laboratório em casa para desenvolver pesquisa com ampliações, como o contato, a solarização e as montagens. 

Embora não tenha deixado relatos escritos sobre seu processo criativo, os arquivos de negativos permitem compreender o embate entre o plano aberto, quase sempre voltado à captação de cenas urbanas, e a restrição do plano de enquadramento, possibilitando exercitar ângulos, geometrismos e formas projetar a iluminação e as sombras, além da construção de cenas em table top. Em ambos os casos, entretanto, o formalismo característico do pensamento moderno da fotografia paulista mostra-se hegemônico. 

A produção de Gertrudes coincide com a fase de institucionalização da fotografia paulistana. Em 1947 o Museu da Arte Moderna de São Paulo organiza a exposição de Tomaz Farkas e em 1950 Geraldo de Barros expõe no Museu de Arte de São Paulo. Nos anos seguintes sua produção é reconhecida com a publicação de trabalhos no Boletim no 84 e no Anuário de 1957 do FCCB. Participa ativamente do circuito de exposições fotográficas, como o 2º Salão de Arte Fotográfica organizado pelo Foto-Cine Clube de Jaboticabal (1954, recebendo a menção honrosa), o 1º Salão Nacional de Arte Fotográfica de Santos (1955, obtendo o diploma de honra), 6º Salão de Arte organizado pela Sociedade Fluminense de Fotografia (1957, recebendo honra ao mérito) além do Salão Internacional de Arte Fotográfica na Galeria Prestes Maia e da Photokina - Exposição Internacional de Fotografia e Cinema de Colônia, Alemanha, em 1955. 

A morte prematura aos 58 anos interrompe a progressão das atividades na fotografia em 1962. Os documentos e o arquivo de negativos foram preservados por Ernst Altschul, que agora, em uma ação conjunta entre o Estúdio Madalena e o Museu da Cidade de São Paulo, sob curadoria de Isabel Amado, organizam sua primeira exposição individual na Casa da Imagem.