Visibilidade Trans: Da vulnerabilidade e falta de autonomia ao marketing em empresa multinacional

A trajetória de Isadora inspira mulheres trans na Casa Florescer a não perderem o direito de sonhar

Isadora Messias mora em Santana e vai de metrô até o Itaim Bibi, onde trabalha atualmente

Texto: Roberto Vieira e Júlia Silva
Foto: Roberto Vieira
 
O dia 29 de janeiro já não é uma data que passa sem ser vista e comentada pelos quatro cantos do país. Isso acontece há 18 anos, desde que nasceu, de um protesto em Brasília, o “Dia da Visibilidade Trans”. Todavia, a construção de um espaço de reconhecimento - feito tijolo a tijolo por mulheres ou homens trans que enfrentam as dificuldades impostas pela invisibilidade - ainda é um sonho que faz parte de uma luta diária. Neste cenário, nascem histórias como a de Isadora Messias.
 
Natural de Curitiba, Isadora tem 29 anos e vive há cinco na capital paulista. Sonhadora, a jovem que trabalha atualmente no departamento de marketing de uma empresa multinacional, recebeu a oportunidade de moradia pouco tempo após pisar em solo paulistano. Foi no Centro de Acolhida para Mulheres Trans “Casa Florescer”, vinculado à Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS), que Isadora passou a ter contato com um universo que lhe permitiu sonhar em alcançar objetivos profissionais capazes de lhe assegurar autonomia, dignidade e autoestima.
 
“Passei por dois períodos na Casa Florescer. Fiz o Transcidadania - projeto da Prefeitura de São Paulo que visa a inclusão profissional, a reintegração social e o resgate da cidadania - que nos coloca, homens e mulheres trans, em contato novamente com a educação. Mas, a porta de entrada é realmente aqui, na Casa Florescer, porque é a oportunidade que a gente tem de sair das ruas e começar a resgatar o cuidado pessoal”, contou Isadora, que esteve na Casa.
 
Na primeira oportunidade, ela ficou por dois anos e, na última, mais recente, ela permaneceu por cerca de cinco meses. “Saí por causa de um relacionamento amoroso, que acabou tirando o meu foco, e nós, mulheres trans somos muito carentes, a gente é sempre julgada e somos ‘procuradas’ às escondidas. Hoje, eu lido super bem com isso, mas passei por esse momento de turbulência, relacionamento abusivo, até que retornei para cá”, disse.
 
Isadora deu a volta por cima e seu retorno à Casa foi diferente. Ela voltou focada e disposta a mudar a sua realidade, desta vez sem dar brechas para outras questões que pudessem tirá-la do objetivo. O retorno para o equipamento foi fundamental. “Eu jamais poderia imaginar que eu chegaria onde estou, e isso de acreditar e conseguir alcançar o que eu quero, eu devo à Casa Florescer”, destacou.
 
O primeiro trabalho que ela conseguiu foi em uma agência de publicidade. Lá, Isadora ficou por quase dois anos, começando como recepcionista, passando para a função de secretária até chegar no marketing. Agora, Isadora, que já construiu sua independência financeira e mora em Santana, na zona norte da cidade, diz estar completamente realizada, atuando no marketing de uma grande empresa multinacional do ramo de depilação a laser. “Eu fui convidada por um pessoal que veio aqui na Casa Florescer, tinha uma vaga na área de marketing e eles disseram que eu era a pessoa ideal para a vaga. Fui trabalhar na loja na Faria Lima e hoje estou à frente do marketing”, conta com evidente satisfação.

Uma história como a de Isadora, com doses altas de resiliência e determinação, tem inspirado outras mulheres trans que estão na Casa Florescer a buscarem uma oportunidade de trabalho. Elas lutam contra preconceitos e histórias do passado.

Simone, 41 anos, que vive na Casa há cinco meses, é um exemplo disso. Enfrentando problemas com drogas durante anos, ela não via luz no fim do túnel, até chegar em um lar no qual se sentiu, de fato, acolhida e estimulada a virar o jogo.
 
“Eu dormia embaixo da ponte, em qualquer lugar, com sérios problemas com drogas e com minha saúde muito prejudicada. Hoje, a minha rotina é muito diferente, eu tenho um objetivo”, pontuou Simone, que saiu de Fortaleza aos 14 anos de idade, após um episódio de violência dentro de sua própria casa.
 
“Todas aqui tem histórias muito parecidas, de muito sofrimento, de muita crueldade. Com 14 anos puxaram a faca pra mim dentro de casa, foi aí que eu fugi de casa e fui viajando de estado em estado até chegar em São Paulo, com 19 anos”. Foram cinco anos de Fortaleza até São Paulo, passando, no meio do caminho, por diversos lugares e acumulando episódios de dores e tristezas.
 

Alberto Silva é o gestor da Casa Florescer e um grande amigo das mulheres que lá residem


Trabalho árduo, permanente e complexo
 
A trajetória de Isadora, que passou por muitas dificuldades na rua, é replicada em linhas gerais em cada das histórias vividas pelas 30 mulheres trans que estão acolhidas na Casa Florescer. No entanto, para além das dificuldades, preconceitos e violência que todas passaram em algum momento de suas vidas, existe a esperança de mudanças e reconhecimentos.
 
“Cada corpo carrega uma história de rompimento. Mas eu acho que aqui podemos mostrar a existência de um lugar que você pode conectar sonhos e florescer de fato. Esse Florescer é justamente isso, é renascer para outras possibilidades, de autoconhecimento e descobertas. E uma coisa que pega muito é a questão da empregabilidade. As mulheres trans vêm pra São Paulo com um sonho de melhorar sua condição social e até ajudar sua família, independentemente do contexto, e ela acaba se deparando com a prostituição e com ela, vem a violência. Quantas mulheres trans morrem hoje em seu trabalho?”, questiona  Alberto Silva, 47, gerente da Casa Florescer.
 
A preocupação do gestor com a violência sofrida pela população trans está refletida em números. De acordo com relatório da Agência Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil (Antra), entregue à Organização Pan-americana da Saúde (Opas/OMS), 140 pessoas foram assassinadas no Brasil em 2021, sendo 135 travestis e mulheres trans e 5 homens trans.  Vale destacar que, como não há dados oficiais, o relatório está embasado em informações encontradas em órgãos públicos, organizações não-governamentais, reportagens e relatos de pessoa próximas às vítimas.  
 
À luz de um debate propositivo que vislumbre um cenário com menores dificuldades, Alberto Silva espera um que haja um trabalho transversal nas políticas públicas.
 
“Precisa se pensar em Saúde, Habitação, Educação, Esportes, Lazer e Cultura, porque são pessoas plurais  e a conexão entre todas as pastas tem impacto muito maior na vida dessas pessoas. Se eu penso em empregabilidade, eu tenho que pensar na saúde física e mental; se eu penso em estratégias de sobrevivência, eu devo estar atento às questões da prostituição, mas também é preciso pensar na segurança. Elas não estão na rua porque querem, e sim, por uma condição que lhes é imposta. Quando eu tenho uma casa como essa, que tem essa articulação, potencializa muito mais esse horizonte”, concluiu Silva.

Muita luta por detrás do dia 29 de janeiro

O dia 29 de janeiro de 2004 reuniu pessoas trans e travestis no Congresso Nacional pela campanha “Trans e Respeito”. Dali, a voz ecoou pelo Brasil.

A bandeira que representa 1,9% da população brasileira, segundo dados desenvolvidos em estudos da Faculdade de Medicina de Botucatu da Universidade Estadual Paulista (UNESP), foi criada em 1999 pela ativista transgênero Mônica Helms.

Além de alertar sobre os números alarmantes do preconceito, da violência e do ódio que atingem a população Trans, a data tem iniciativas como a luta pela identidade de gênero, a acessibilidade à mudança e utilização do nome social na sociedade, e o direito a tratamentos seguros de saúde e de processos de transição de gênero.


Você sabia?


A Secretária Municial de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS) possui atualmente 3 serviços de acolhimento a população trans em São Paulo:

1. Casa Florescer 1 - a casa fornece assistência a mulheres trans,  localizada na região Central de São Paulo com 30 vagas. Foi inaugurada em 2016.

2. Casa Florescer 2, a casa fornece assistência a mulheres trans, localizada na Zona Norte de São Paulo também com 30 vagas. Foi inaugurada em 2019.

3. Centro de Acolhida especial João Nery - a casa fornece assistência a homens trans, e fica localizada na zona norte de São Paulo, com capacidade para 60 vagas. Foi inaugurada em 2021.
 
Além dos Centros de Acolhida fixos, durante a pandemia, a  SMADS criou um serviço de acolhimento emergencial para mulheres trans, localizado em Santo Amaro, na zona sul da cidade. O serviço possui 30 vagas e funcionará até o fim da pandemia.

Simone, Alberto e Isadora enaltecem o clima familiar que as acolhidas sentem na Casa Florescer