Equipe da UBS Sé oferece tratamento odontológico diferenciado e conquista prêmio

A iniciativa de estimular um vínculo de confiança entre pessoas em situação de rua e profissionais de saúde já atendeu mais de 279 pacientes e foi a vencedora do Prêmio Saúde da Editora Abril, na categoria saúde bucal

 “Perdi o medo de dentista e vou voltar. Hoje já pedi também para a assistente social uma vaga em albergue. Estou me tratando e preciso comer e dormir direito”. Elaine, 47, estava em sua primeira consulta e saiu satisfeita com o atendimento. Ela fez uma obturação e teve outra consulta agendada para a próxima semana, para cuidar de outro dente.

Elaine é uma das moradoras de ruas – vive atualmente no Parque Dom Pedro - atendidas pela equipe de saúde bucal da Unidade de Saúde Bucal (UBS) Sé. Estimulada pelo desafio de criar um vínculo de confiança entre pessoas em situação de rua e profissionais de saúde, a equipe desenvolveu uma dinâmica de trabalho inovadora que já conseguiu levar tratamento dentário para mais de 279 pacientes.


A iniciativa, que envolve toda a equipe da unidade, já venceu até o Prêmio Saúde da Editora Abril, na categoria saúde bucal. Os trabalhos começaram há dois anos e meio e reduziram 70% do absenteísmo nas consultas de pacientes em situação de rua. Todas as quartas-feiras o consultório odontológico da unidade atende exclusivamente esta população. As consultas são realizadas pela dentista Daniele Kling, pela auxiliar em saúde bucal Patrícia Souza e pela auxiliar de saúde bucal Aline Oliveira.

Com o objetivo de conquistar a adesão de mais pacientes e completar os tratamentos, a equipe da UBS foi envolvida em uma abordagem mais individualizada dos pacientes, preocupada com as necessidades dos pacientes que vivem nas ruas, grupo que no distrito da Sé é composto de cerca de mil pessoas.

O trabalho começa com a atuação dos agentes comunitários, que circulam diariamente pelas ruas e praças do bairro. O agente Kanga Heroult, 33 anos, conta que sua principal atividade é o convencimento. “O nosso trabalho é convencer o pessoal de que é importante se cuidar. Não adianta chegar na força. Aí a gente vai lá, conversa um dia e ele fala ‘não quero ir’. Aí vamos no segundo dia e ele não quer. Então vamos todo dia durante uma semana, dez dias, 15 dias, um mês. Uma hora ele decide vir para o tratamento”, explica Kanga. “Às vezes eles tratam mal a gente, mas eu digo: você pode me bater, você pode me xingar, mas eu não vou te abandonar”, diz o agente.

Ao chegar na unidade, o paciente passa por uma avaliação com uma enfermeira e, de acordo com seu estado de saúde bucal, é agendada uma primeira consulta para início do tratamento. Um dia antes da consulta, o agente comunitário procura o paciente e lembra-o do agendamento. “Eu também peço para os agentes explicarem que no dia da consulta é recomendado não usar drogas e álcool, por causa da anestesia e da medicação”, lembra a dentista Daniele Kling.

Consulta


No dia da consulta, o agente responsável pelo paciente vai buscá-lo e acompanha-o até o consultório. “Às 7h ou 8h eu vou até onde ele costuma estar e o trago para a UBS. Chegando aqui, oferecemos um banho e uma roupa nova”, narra Kanga.

Na primeira consulta, a dentista avalia quais tratamentos serão necessários e já começa o atendimento. “Tentamos sempre resolver os problemas em três ou quatro sessões, em semanas seguidas, para evitar que o paciente se disperse e que o tratamento fique incompleto”, diz Daniele. Caso falte às consultas agendadas por duas vezes seguidas, o paciente volta para o fim da fila de atendimento.

Daniele Kling tem formação em odontopediatria e durante os atendimentos faz questão de explicar cada etapa do tratamento, dando detalhes do que pode doer, como se comportará a anestesia e o que faz cada aparelho. Ao fim da consulta, a equipe presenteia o paciente com um kit de higiene com sabonete, pasta dental, escova e enxaguante bucal. As profissionais ganharam mil kits como parte da premiação do Prêmio Saúde.

Segundo as profissionais de saúde bucal, além da evasão de pacientes, também são desafios o estabelecimento de uma rotina de higiene bucal e a prescrição de medicamentos. “Pelo modo de vida deles, fica difícil seguir uma medicação via oral, com horários certinhos”, explica a dentista Daniele.

Vínculo


Após o atendimento, os agentes comunitários procuram os pacientes e pedem uma avaliação sobre o trabalho da UBS, o que ajuda a aprimorar o método de trabalho. O diálogo é um fator importante no estabelecimento do vínculo de confiança com os profissionais de saúde. “Quando eu comecei aqui, só conhecia uma pessoa no território. Mas se uma pessoa vem para cá, faz o tratamento, tem um atendimento bacana e gosta, ela vai falando para os outros. Aí se alguém está com algum problema, sabe que pode me procurar, pode falar comigo, porque outra pessoa já veio antes e foi bem tratada”, explica Kanga. O agente é congolês e trabalha desde fevereiro de 2013 na unidade.

Os agentes comunitários integram as equipes da Saúde da Família vinculadas à unidade, que contam ainda com médico, enfermeiro e auxiliares de enfermagem. A UBS Sé tem duas equipes de consultório na rua, especializadas na população de rua.

A dor intensa causada por algumas doenças bucais, além da questão estética, faz com que o tratamento odontológico seja muito procurado pela população em situação de rua. Quando o paciente vai à UBS, a equipe de saúde já faz o cadastramento e uma avaliação geral do paciente. O tratamento odontológico estabelece um vínculo com a unidade de saúde, o que cria a possibilidade de realizar outros tratamentos, como contra tuberculose, Aids e sífilis.

Mineira de Juiz de Fora, Daniele Kling trabalha há cerca de três anos e meio na UBS Sé, contratada pela Organização Associação Saúde da Família. Com o sucesso do trabalho, surgiu inclusive a ideia de ampliar a equipe odontológica e de estender a experiência para outras unidades da rede. “Precisamos de profissionais com um perfil diferenciado, que coloquem o coração na frente, que entendam que todo mundo é igual e merece cuidado”, acredita Daniele. Para a dentista, o trabalho demanda persistência e pode muitas vezes trazer frustrações. “Às vezes eu tinha a impressão de enxugar gelo. Mas então percebi que o importante é ajudar aquela pessoa, naquele dia. Uma pessoa por vez. É gratificante”, avalia Daniele.