No dia das mulheres, retrato de uma mulher notável

Artigo do jornalista Luis Nassif sobre o Direito de Pessoas com Deficiência

Prefácio do livro "Direito de Pessoas com Deficiência "

O aprimoramento democrático é um processo permanente de inclusão. No início, votavam os ricos, depois a classe média, depois os analfabetos até se tornar direito universal. A escola era para os homens filhos da burguesia, depois foi-se abrindo até se tornar direito de todos. E, de passo em passo, muitas vezes penosamente, a democracia brasileira vai se construindo, derrubando intolerâncias, perseguindo os ideais da igualdade, a universalização dos direitos, a face mais dinâmica, legítima e contemporânea dessa grande sinfonia destinada a transformar o país em uma nação forte e justa.

Nessa caminhada civilizatória, capítulo dos mais relevantes é o da inclusão das pessoas com deficiência. Em geral, não recebem a solidariedade que as gerações mais novas dedicam aos velhos, que um dia eles serão. Não tem o ativismo político dos movimentos pelos direitos das mulheres, dos homossexuais ou dos afrodescendentes, que conseguem unificar sua luta devido ao fato também de representarem públicos homogêneos. Eles próprios são seus agentes políticos, organizando-se, lutando e conquistando vitórias.

Entre as pessoas com deficiência, o jogo é outro, não há coesão nem nos grupos excluídos entre si e, muitas vezes, nem condições de assumirem seu próprio protagonismo. Há os surdos, as pessoas com de síndrome de Down, as vítimas de paralisia cerebral, os cegos, os deficientes físicos, os paraplégicos, dificultando enormemente a unificação dos discursos e das propostas.

Por isso mesmo, a inclusão das pessoas com deficiência talvez seja a mãe de todas as batalhas includentes.

Na linha de frente, há alguns anos, encontra-se Eugênia Gonzaga.

Sua luta mostra essa simbiose presente em todas as batalhas civilizatórias, na qual se enredam as teias da modernização, dos novos valores sendo tecidos na consciência do país e a saga individual dos que saem na frente, cada qual levado por sua própria experiência de vida.

No caso de Eugênia, o estalo se deu quando Vinicius nasceu e o mundo pareceu desabar. Problemas cardíacos no nascimento e o rostinho oriental que trazia o recado: tinha síndrome de Down.

Durante dias e dias Vinicius lutou pela sobrevivência. Operado, o coração resistiu, fortaleceu-se e ele foi se preparando para enfrentar os desafios da vida.

Eugênia acompanhou seu crescimento, sua garra, a fibra em se erguer no berço, superando a frouxidão das pernas, a dificuldade com as primeiras sílabas. E sempre com um sorriso que foi crescendo com ele, até tomar o tamanho do mundo.

Tem dificuldades com a matemática, sim. Por outro lado, uma sabedoria para as relações humanas muito superior à dos meninos da sua idade e até dos mais velhos. Seriam "deficientes", então, meninos que não sabem expressar carinho, que se esquecem de perguntar pela saúde das pessoas, de mandar lembranças à família dos amigos? Pois no campo afetivo, Vinicius é um superdotado.

A fala tropeça nas sílabas, mas a memória e a habilidade com o desenho lhe permitem reconstituir plantas de apartamentos depois de uma única olhada, com uma noção espacial que, adulto "normal", estou longe de ter.

A luta permanente para incluí-lo no convívio social, na escola, com os amigos, foi transformando Vinicius e a própria mãe. E Eugênia tornou-se uma das grandes guerreiras nacionais pela inclusão das pessoas com deficiência e pela defesa do princípio - finalmente vitorioso - de que inclusão se dá colocando as pessoas com deficiência no mesmo ambiente dos sem deficiência. E não segregando-os em escolas especiais.

Desde que foi lançado, este livro tornou-se um referencial jurídico para as batalhas legais dos excluídos. E o lançamento foi um momento especial, porque permitiu a Vinicius, 4 anos, conhecer Livia, 4 anos, também com síndrome de Down.

A convivência permanente com a generosidade de Vinicius foi abrindo ainda mais os horizontes de Eugênia. Dedicou-se a apoiar as famílias de desaparecidos na ditadura, as vítimas da intolerância religiosa, os excluídos sociais, o largo espectro de cidadãos aviltados por abusos da televisão, construindo uma obra de largo alcance.

E, de luta em luta, desabrochou uma mulher notável, combatendo toda sorte de exclusão, solidária com todo tipo de desassistidos, portadora da indignação que floresce apenas nas almas muito generosas.

No lançamento da segunda edição do livro, certamente haverá uma dupla comemoração: o lançamento em si e os 9 anos de namoro ininterrupto entre Vinicius e Livia.

Publicação retirada do site do Jornal GGN