Experiências de redução de danos dão o tom de Seminário Internacional de Políticas sobre Drogas

Evento discutiu os avanços do programa De Braços Abertos e ações de referência no Canadá, Holanda e Uruguai

A discussão de experiências exitosas em redução de danos e o tratamento de pessoas com uso problemático de drogas no Brasil e no exterior foi o tema de todas as mesas durante o Seminário Internacional de Políticas sobre Drogas, realizado nesta quinta-feira (13), em São Paulo. Com a presença de estudiosos e especialistas do Canadá, Uruguai e Holanda, o evento foi aberto pelo prefeito Fernando Haddad apresentando a experiência do Programa ‘De Braços Abertos’.

Na opinião de Haddad, o programa da Prefeitura, desenvolvido desde janeiro na região da Luz, abriu uma discussão no Brasil sobre diversidade do acolhimento, atendimento e abordagem. “O ensinamento extrapola a questão da drogadição, vai repercutir em toda a rede social de proteção, em função da educação do olhar. Estamos olhando diferente o problema, enxergando outras coisas que não se via porque a visão estava bloqueada por preconceito e pela distância”, afirmou o prefeito. 

Mesa de abertura do Seminário Internacional de Políticas sobre Drogas

 

Prefeito Fernando Haddad na abertura do seminário

 

Gestores responsáveis pelas áreas de Direitos Humanos, Assistência, Saúde e Trabalho da Prefeitura de São Paulo fizeram um balanço do programa ‘De Braços Abertos’, apresentando resultados, desafios e perspectivas. O programa oferece moradia em sete hotéis, três refeições diárias, oportunidade de emprego com renda de R$ 15 por dia, além de tratamento contra a dependência, com acompanhamento.

“Mesmo com tão pouco tempo, o êxito se deve ao envolvimento direto do prefeito, à transversalidade das ações que contam com diversas secretarias e a participação da sociedade civil desde o começo”, disse Rogério Sottili, secretário municipal de Direitos Humanos e Cidadania. “Não teríamos obtido êxito se não tivéssemos dialogado com a sociedade civil e aproveitado sua experiência”, enfatizou. Para João Bosco Maciel, de 51 anos, beneficiário do ‘De Braços Abertos’, o programa é a chance de ser resgatado. “Antes a gente era discriminado, agora é uma nova vida, pra mim e pra muitos”, disse, enfatizando sobre a oportunidade de aprender jardinagem.

 

Marco histórico

Na opinião do coordenador de saúde mental do Ministério da Saúde, Roberto Tykanori, o programa da Prefeitura de São Paulo é um marco histórico em política pública ao desmistificar o problema do álcool e das drogas. “O uso de substâncias lícitas e ilícitas estão sempre dentro de um contexto, e o contexto é mais importante do que a substância”, afirmou. Representando a Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, Teresa Endo provocou a plateia ao lembrar como historicamente o Estado trata seus cidadãos, optando pela estratégia do confinamento. “Como cuidamos das pessoas com lepra, com tuberculose, com aids e, hoje, com drogas? Temos uma dívida muito grande com estas pessoas. Por que ainda hoje vamos lidar com usuários de drogas como lidamos com a lepra?”

Para o presidente do Conselho Municipal de Políticas sobre Drogas e Álcool (Comuda), Leonardo Pinho, a história antes do ‘De Braços Abertos’ era de cassetete e bombas. “O diferencial deste programa é o prefeito dizer: ‘Esse problema é meu’. Ele assumir algo que não tem fórmula mágica é de uma coragem que garante o grande diferencial, reconhecendo que aquelas pessoas são sujeitos de direitos”, disse.

 

Experiências internacionais

Mesa "Experiências Internacionais em Políticas sobre Drogas"

 

Durante a tarde foram apresentadas experiências de sucesso em redução de danos na Holanda, Canadá e Uruguai. Marcel Buster, do Serviço de Saúde Pública de Amsterdã, falou sobre as políticas implementadas na capital holandesa nos últimos anos, entre elas, o uso de metadona como droga substitutiva à heroína e a distribuição de agulhas em ambientes de uso controlado. “Como resultado, de 1992 a 2012 houve grande queda do número de usuários que se tornaram portadores de HIV e queda também na faixa etária dos usuários de heroína. Atualmente mais de 60% desses usuários têm mais de 50 anos, o que demonstra a diminuição do consumo entre os jovens”, explicou Buster.

Liz Evans, co-fundadora do PHS Community Services Society, do Canadá, contou o que aconteceu no bairro de Eastside, região central de Vancouver, que chegou a ter 16 mil moradores, seis mil deles usuários de heroína. Para enfrentar o problema – semelhante com a região da “cracolândia”, em São Paulo – em setembro de 2003 foi inaugurado o InSite, um ambiente seguro para uso controlado de drogas interligado com programas de saúde e tratamento de doenças e infecções. Começava ali uma grande batalha social e jurídica que alcançou as mais altas instâncias do Judiciário canadense. “Estudos mostram que já nos primeiros anos de funcionamento do InSite houve redução de 35% nos casos fatais de overdose na região de Eastside, enquanto no resto da cidade a redução foi de apenas 9%”, ponderou Liz. “Hoje, dez anos depois, mais de duas mil overdoses ocorreram no local e nenhuma pessoa morreu”.

Diretora clínica do Eiceers e assessora da Secretaria Nacional de Drogas do Uruguai, a médica Raquel Peyraube apresentou um histórico de como o tema tem sido tratado no país vizinho nas últimas décadas e da mudança de visão na sociedade até chegar a atual legalização da maconha. Incisiva em sua argumentação, Raquel defende que a política de guerra contra as drogas é um grande fracasso. “Não mudou nada, não dá certo e gasta milhões de dólares”, disse. A especialista ponderou que durante anos as iniciativas de saúde pública no uso problemático de drogas eram feitas somente por organizações da sociedade civil e que os governos se esquivavam de suas responsabilidades. “É preciso fazer políticas públicas com ideologia científica e não com ideologias moralistas ou religiosas”.

Visitante frequente do Brasil, Raquel Peyraube acredita que o tema das drogas no país sofre forte estigmatização e que, por isto mesmo, a iniciativa do programa ‘De Braços Abertos’ já é um marco histórico. “A grande bancada parlamentar evangélica no Brasil atrapalha a discussão. Eles são dogmáticos. Mas os preconceitos também estão em quase todos os políticos, eles têm que estudar, têm que aprender”, afirmou.

 

Desde tempos remotos

A assessora especial de políticas sobre drogas da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC), Maria Angélica Comis, fez um relato do uso de drogas na humanidade desde a antiguidade e de como o tema tem sido tratado com o passar do tempo. Para ela, o ser humano, em todos os períodos históricos, sempre fez uso de algum tipo de substância para alterar o estado de consciência. “Desde a hora de acordar, quando tomamos café, e portanto ingerimos cafeína, já estamos fazendo algo para ajudar o despertar. A proibição das drogas foi uma construção histórica e cultural moralista e não pelo uso da substância”.

Mária Angélica Comis, assessora especial de Políticas Públicas sobre Drogas da SMDHC

 

Maria Angélica defendeu que o uso abusivo de drogas está associado a fatores de exclusão social e miséria, e que a redução de danos é pautada no respeito do direito do indivíduo. Neste sentido, as experiências de redução de danos partem de algumas premissas básicas, como a baixa exigência do usuário, a atenção ao imediato, o respeito à diversidade, a busca ativa, o pragmatismo e o humanismo. “A redução de danos é um processo em constante desenvolvimento, agregando conceitos conforme a evolução da sociedade.”

O seminário encerrou com a apresentação de outras experiências de redução de danos desenvolvidas em São Paulo pelo Centro de Convivência É de Lei, pela prefeitura de São Bernardo do Campo, o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) Capela do Socorro, a República Terapêutica Infanto-Juvenil de Mauá e pela Rede Estadual de Saúde Mental (Ecosol).