Violência de Estado é tema de diálogo entre resistentes à ditadura e jovens da periferia de São Paulo

O encontro aconteceu em Perus, região onde foram encontradas mais de mil ossadas ocultadas por agentes do Estado

Aconteceu neste sábado (13), dentro da programação do “2º Festival de Direitos Humanos – Cidadania nas Ruas 2014”, o Diálogo Entre Gerações – Violência de Estado Ontem e Hoje. Este é o segundo encontro intergeracional sobre o tema organizado pela Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC) com o objetivo de possibilitar a troca de experiências entre aqueles que sofreram o terror de Estado praticado durante o período da ditadura civil-militar e os que a vivenciam hoje, 50 anos após o golpe.

Promovido pelas coordenações de Direito à Memória e à Verdade e de Políticas para Juventude da SMDHC em parceria com a Comunidade Cultural Quilombaque, o diálogo contou com a presença de Rogério Sottili, secretário municipal de Direitos Humanos e Cidadania. Sottili abriu a conversa reforçando a importância deste tipo de encontro e de todas as ações simbólicas realizadas durante o Festival para a desconstrução de uma cultura militarizada ainda muito presente nos espaços públicos da cidade. “Durante o Festival, nós inauguramos o Monumento em Homenagem aos Mortos e Desaparecidos Políticos [a obra foi projetada pelo arquiteto Ricardo Ohtake e instalada em frente ao Parque Ibirapuera] porque queremos ressignificar esta cidade e recontar a sua história homenageando as pessoas que lutaram, morreram e sofreram a violência da ditadura porque defenderam a Democracia, o estado de direito e a liberdade”, disse.

A atividade foi realizada na sede do Quilombaque, em Perus, em um dia com diversas programações culturais produzidas por coletivos de juventude da região. Para Carla Borges, coordenadora de Direito à Memória e à Verdade da SMDHC, o espaço não poderia ser mais apropriado. “Perus é muito simbólico para trabalharmos esta conexão entre o ontem e o hoje. De certa forma, é uma mostra do que o Estado tentou esconder”, disse Carla ao relembrar o trabalho de abertura da vala clandestina reiniciado este ano pela SMDHC. “Além dos desaparecidos da ditadura reclamados por familiares, há uma lista enorme de pessoas que muito provavelmente viviam na periferia e que também foram vítimas de morte violenta”, afirmou.

O diálogo teve sequência com uma troca de relatos entre Rosalina Santa Cruz e Tata Nzinga, mulheres de diferentes gerações, vítimas da violência de Estado. As duas comoveram os presentes ao inverterem seus papéis e contarem, em primeira pessoa, as agressões vividas. A dor da busca travada pela professora universitária, ex-presa política e irmã de Fernando Santa Cruz, desaparecido em 1974, cuja história permanece desconhecida até hoje. E as lembranças de descaso e discriminação sofridos pela bailarina de 27 anos que teve um irmão morto aos 6 meses de vida, por negligência médica.

A cineasta Clara Ianni e Débora Maria da Silva, fundadora do Movimento Mães de Maio, também participaram do encontro e apresentaram o documentário Apelo, filmado no Cemitério de Perus. Para Clara, “a bala é continuidade do açoite” e o vídeo, assim como o Diálogo, é uma tentativa de costurar estes muitos lugares e histórias e entender as relações entre o histórico de violência e opressão do passado e o que acontece atualmente. O filme ocupa, segundo a cineasta, “um lugar interessante na luta pelos direitos humanos que é o campo da reparação simbólica, que não muda as políticas públicas de um jeito imediato, mas que pode operar depois de um jeito muito mais duradouro e efetivo”.

O diálogo durou toda a tarde de sábado e foi encerrado com a fala do coordenador de Políticas para Juventude, Gabriel Medina, que enfatizou a necessidade de tornarmos permanente os espaços de diálogo “para a construção de uma cidade mais humana, mais democrática e que preserve sua memória”. “É na diferença que a gente consegue construir esta ideia da alteridade e um processo permanente de revelação de uma história da cidade que não está colocada”, concluiu Gabriel.

A dor sem remédio e o sentimento de impunidade que marcou os resistentes que tiveram seus direitos violados durante a ditadura militar persiste ainda hoje entre as vítimas da violência praticada diariamente por agentes do Estado nas periferias da cidade. O relato de Débora Maria da Silva, que teve seu filho assassinado vítima de violência policial, define bem o significado desta perda e desta busca sem resposta imposta pela violência de Estado nos diferentes períodos da história. “O Estado arrancou meu útero, minhas trompas e meu ovário. Ele me mutilou. Tu perde um marido, tu é viúva. Tu perde um pai, tu é órfão. Mas tu perde um filho, não tem nome”.