Lugar de mulher em situação de violência não é só Delegacia

Os avanços conquistados pela Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2016) tornam-se invisíveis pela proposta de alteração do PL Projeto de Lei 07/2016, para a qual, infelizmente, movimentos sociais e feministas e gestoras de políticas da área não foram chamadas a contribuir.

Esse Projeto de Lei, que está em votação na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), propõe o acréscimo de três artigos na Lei. Caso entre em vigor, o primeiro atendimento da mulher em situação de violência doméstica e familiar de gênero será realizado por autoridade policial com preenchimento de um boletim de ocorrência e interrogatório em ambiente no qual a vítima pode se sentir ou ser tratada como “suspeita”.

É importante lembrar também que nem todas as mulheres desejam, ou estão preparadas, para denunciar seu agressor, sendo necessário e fundamental, antes de tudo, acolhimento, encorajamento e acompanhamento psicológico, social e jurídico, como tem ocorrido no Brasil desde a aprovação da Lei Maria da Penha.
Mesmo que o atendimento nas DEAMs ( Delegacias Especializadas no Atendimento à Mulher) e DDMs (Delegacias de Defesa da Mulher) seja realizado por uma mulher, não necessariamente será na perspectiva de gênero. Para que isso aconteça, é necessário capacitação sobre ciclo de violência e seu rompimento, rota crítica, trabalho articulado em Rede, não revitimização entre outros conceitos transformadores que enxergam o processo de maneira ampla e transversal e visam o empoderamento da mulher, para que ela consiga romper efetivamente com o ciclo de violência de gênero.

Os artigos propostos pelo PLC 07/2016 se contrapõem às conquistas que estão sendo consolidadas desde a Lei Maria da Penha e consistem na previsão de que o deferimento das medidas protetivas de urgência às mulheres em situação de violência, atualmente prerrogativa do Poder Judiciário, seja também de competência das DEAMs e DDMs.

As DEAMS e DDMs são importantes, e concordamos com a proposta de que passem a funcionar 24 horas. As delegacias simbolizam o enfrentamento público da violência contra as mulheres, mas são parte de um processo e, portanto, ferramentas limitadas em relação a tudo que foi compreendido e incorporado a essa questão por intermédio de estudos, experiência histórica e, principalmente, diálogo com a sociedade.

A Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) completa dez anos em agosto deste ano e, ao longo desta década, tornou-se um instrumento fundamental para as mulheres no que se refere ao enfrentamento à violência doméstica e familiar de gênero em todo o país.

A Lei trouxe a público o debate sobre a desnaturalização da violência contra as mulheres ao reconhecer e combater a violência como componente da desigualdade de gênero e contemplar a articulação multidisciplinar sobre o seu enfrentamento. E uniu, em uma única lei, diversos mecanismos e recomendações para o rompimento do ciclo de violência: políticas públicas de prevenção, implantação dos organismos de políticas para as mulheres nas três esferas de gestão, fortalecimento da Rede de Enfrentamento à violência; estruturação de serviços especializados; medidas protetivas e criação de Juizado de Violência Doméstica. A legislação se tornou inclusive referência no debate internacional. A sanção da Lei foi uma conquista e reflexo da presença protagonista de movimentos sociais e entidades feministas. Presença que deve, portanto, ser sempre levada em consideração no processo de eventuais alterações ou modificações.

O distanciamento do Projeto em relação ao acúmulo e diferenciais da Lei Maria da Penha é patente ao omitir conceitos importantes como o termo “mulher em situação de violência”, conquista das entidades articuladas em torno da pauta de gênero. O enfrentamento efetivo da violência doméstica e familiar de gênero somente é possível com a participação democrática, que considera a mulher como um ser complexo e integral, e não a recolocando no papel de “vítima”.

Dessa forma, é importante atentar para as modificações que estão sendo propostas e, consequentemente, garantirmos a realização de um debate efetivo e democrático. Afinal, a Lei Maria da Penha, enquanto marco no enfrentamento à violência de gênero, deveria, no caso de qualquer modificação, contar com a presença e protagonismo daquelas que são cotidianamente impactadas pela sociedade machista, racista e desigual que vivemos: as mulheres, prioritariamente as pobres e as negras.


Denise Motta Dau - Secretária Municipal de Políticas para as Mulheres da cidade de São Paulo/ SMPM