As enchentes na história de São Paulo

Coluna Ladeira da Memória

Fatima Antunes

Verão em São Paulo: tempo de dias quentes e abafados, chuvas repentinas no final da tarde seguidas de indesejáveis alagamentos e enchentes. Ruas transformam-se em verdadeiros rios, obrigando a população a recorrer a botes, em alguns casos, e a se arriscar na travessia da correnteza.


Aspecto da Rua Porto Seguro (por volta de 1930). O Rio Tietê ficava próximo do leito da rua. (Coleção MCSP/DPH/SMC/PMSP, Aurélio Beccherini).

As enchentes que ocorrem em São Paulo, a cada verão, estão associadas a fatores como as características dos rios que cortam a cidade, ao modo como se deu a ocupação urbana e ao sistema de geração de energia elétrica implantado.

Os principais rios de São Paulo, como o Tamanduateí, o Tietê e o Pinheiros, corriam, originalmente, por extensas planícies. Seus leitos formavam desenhos sinuosos, de meandros infinitos. Na época das chuvas, os leitos transbordavam e as várzeas se transformavam em vastas áreas alagadas. As cheias só se tornaram um problema quando os paulistanos resolveram ocupar essas áreas. As primeiras ações com a finalidade de domar a natureza dos rios e ocupar efetivamente suas várzeas começaram no século 19, com a retificação do leito do Rio Tamanduateí, na altura do atual Parque Dom Pedro II. Várias obras foram realizadas depois, cujo resultado final foi a total transformação da paisagem e da relação entre o paulistano e seus rios.

Por sua freqüência e dimensão, as enchentes se tornaram marcos culturais e simbólicos na história da cidade. Foram registradas em diferentes tempos e geraram inúmeros documentos. Impressionado com as cheias do Tamanduatei, o pintor Benedito Calixto retratou-as no quadro As enchentes da Várzea do Carmo, de 1892, em exposição no Museu Paulista da Universidade de São Paulo.

Outro desses documentos, menos conhecido, é uma pequena placa de bronze, aparentemente insignificante, situada na calçada em frente ao no 56 da Rua Porto Seguro, no bairro da Ponte Pequena. A inscrição “Nível da enchente de 1929” informa sobre sua função: demarcar o ponto atingido pelas águas do Tietê naquele ano. Esse pequeno marco, quase imperceptível em meio à agitação da cidade, guarda um pedaço importante da história das enchentes e da urbanização de São Paulo.

Projetos de canalização dos rios e de drenagem de pântanos, elaborados por engenheiros sanitaristas no final do século 19, tinham o objetivo sanear a cidade e livrá-la das epidemias de febre amarela, febre tifóide, peste e varíola. Entre o final do século 19 e o começo do 20, a cidade cresceu vertiginosamente e a industrialização exigia a geração de energia elétrica. Um sofisticado projeto de canalização dos rios paulistanos foi, então, posto em prática, mas a intervenção mais severa foi aplicada sobre o Rio Pinheiros.

Marco do nível da enchente de 1929. (Acervo Divisão de Preservação/DPH/SMC, Chico Saragiotto).

A Light & Power, empresa de capital canadense responsável pela formação da represa do Guarapiranga, em 1907, obteve a concessão do Governo Federal para retificar, canalizar e inverter o curso do Rio Pinheiros em 1927. O controle da bacia hidrográfica do Alto Tietê, formada por inúmeros rios paulistanos, era justificado à época pela necessidade de intensificar a produção de energia elétrica pelo sistema de represas Guarapiranga e Billings, que abasteciam a Usina de Cubatão, instalada no sopé da Serra do Mar. O acordo entre a Light e o Governo também previa que, em caso de cheias, os terrenos atingidos seriam reconhecidos como propriedade da empresa canadense, que também pretendia diversificar seus negócios e explorar o ramo imobiliário.

Dois anos depois do acordo, na época das chuvas de verão de 1929, uma enchente de grandes proporções atingiu a cidade. As águas do Tietê não fluíram suficientemente pelo Pinheiros. Dizia-se a que Light controlara a vazão das barragens existentes, escolhendo, assim, as áreas inundadas que passariam a ser propriedade sua. Para demarcar os terrenos atingidos, a Light providenciou a instalação de pequenas placas, como a que existe até hoje na Rua Porto Seguro.

Por seu valor histórico, esse pequeno marco integra o Inventário de Obras de Arte em Logradouros Públicos da Cidade de São Paulo, mantido pelo Departamento do Patrimônio Histórico e disponível à consulta em sua página na internet.

SÃO PAULO. Cidade. Em Cartaz: guia da Secretaria Municipal de Cultura.  n. 33, mar. 2010. p. 56-57.
Texto revisto em 16.9.2010.