Homenagem a Garcia Lorca, por Flávio de Carvalho

Coluna Ladeira da Memória

O monumento a Garcia Lorca, na Praça das Guianas. (Acervo Preservação/DPH/SMC, Chico Saragiotto)

Quem passa pela Praça das Guianas, nos Jardins, pode observar uma escultura que se destaca na paisagem por suas cores e formas: o monumento a Federico Garcia Lorca.

Tudo começou em 1968, quando exilados espanhóis residentes em São Paulo, membros do Centro Cultural Garcia Lorca, resolveram homenagear o poeta e dramaturgo morto por forças franquistas em 1936, durante a Guerra Civil Espanhola, sob acusação de ser comunista. Federico Garcia Lorca, nascido em 1898 no município de Fuente Vaqueros, província de Granada, na Espanha, não era vinculado a ideologias ou partidos políticos. Dizia-se um homem livre, sem preconceitos, que lutava contra a opressão e pelos direitos das minorias.

O escritor Paulo Duarte foi convidado a participar da homenagem e colocou o Centro em contato com o arquiteto e artista plástico Flávio de Carvalho. Uma vez concluído, o projeto da escultura foi enviado à Serralheria Diana, de propriedade de espanhóis no bairro do Tatuapé, onde Flávio de Carvalho acompanhou sua execução passo a passo. Depois de pronta, a obra, composta de tubos e chapas de ferro pintados, foi implantada na Praça das Guianas.

Marcada para o dia 1º de outubro de 1968, a cerimônia de inauguração foi prestigiada pelo poeta chileno Pablo Neruda, que fez um caloroso discurso elogiando tanto o amigo Garcia Lorca como o autor da escultura. Uma exposição na Biblioteca Mário de Andrade e um espetáculo no Theatro Municipal de São Paulo com a participação de Chico Buarque, Geraldo Vandré, Sérgio Cardoso e outros artistas completaram a homenagem, com repercussão internacional.

No ano em que o poeta espanhol completaria 70 anos, o Brasil vivia sob o regime militar. Depois de dezembro de 1968, quando foi promulgado o Ato Institucional no 5 (AI-5), que dava poderes extraordinários ao presidente da República e suspendia garantias constitucionais, o clima de tensão que havia no país desde o Golpe de Estado de 1964 se acentuou. Pelo AI-5, ficavam proibidas todas as atividades ou manifestações sobre assuntos de natureza política. Nesse contexto, o monumento a Garcia Lorca tornou-se alvo de radicais de direita.

Na madrugada de 20 de julho de 1969, uma explosão danificou a escultura. Nunca se apurou o responsável pelo ato, que, no entanto, foi atribuído ao CCC (Comando de Caça aos Comunistas). Folhetos deixados junto à obra, no dia da Revolução Cubana, informavam sobre a destruição do monumento ao poeta "comunista e homossexual".

Os destroços da escultura foram levados a um depósito da Prefeitura. Em 1971, Flávio de Carvalho restaurou-a para levá-la à Bienal de Arte de São Paulo. Com muito custo e sem o apoio das autoridades responsáveis, conseguiu colocá-la do lado de fora do prédio da Bienal, no Parque Ibirapuera, onde ficou apenas dois dias. O embaixador da Espanha reclamou da presença da "escultura do comunista" e ela voltou ao depósito.

Dispostos a devolver a obra ao espaço público, alunos da ECA (Escola de Comunicações e Artes) e da FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo) da Universidade de São Paulo falsificaram documentos e a roubaram em 1979. Durante três meses, trabalharam na sua recuperação e a depositaram no vão livre do Masp (Museu de Arte de São Paulo), estrategicamente, no dia em que o prefeito Olavo Setúbal visitava o museu. Pietro Maria Bardi, diretor do Masp, e o prefeito não aprovaram o ato. Dias depois, finalmente, a obra foi reimplantada na Praça das Guianas, seu local de origem.

Flávio de Carvalho, o autor do monumento, foi um expoente da geração modernista, de espírito transgressor e provocativo. Ficou famoso por suas performances, como a que fez pelas ruas do centro de São Paulo em 1956, usando um saiote e sandálias de couro.

Garcia Lorca e Flávio de Carvalho teriam, hoje, pouco mais de 100 anos de idade. O centenário de nascimento de Flávio foi celebrado em 2009 com uma série de eventos, e as homenagens avançam por 2010. Na 29ª edição da Bienal Internacional de São Paulo, entre 25 de setembro e 12 de dezembro, Flávio será lembrado com a peça "Bailado do Deus Morto", de 1933, encenada e filmada na casa em que o artista viveu em Valinhos (SP) e dirigida por José Celso Martinez Correa. Trechos da filmagem serão exibidos numa instalação na Bienal, associada a performances de alguns atores.

Outra homenagem a Flávio de Carvalho e também a Garcia Lorca, será a restauração, ainda em 2010, do monumento da Praça das Guianas. Por meio de doação de serviços à Prefeitura, uma empresa especializada executará as obras, com o acompanhamento técnico do Departamento do Patrimônio Histórico.

 


SÃO PAULO. Cidade. Em Cartaz: guia da Secretaria Municipal de Cultura.  n. 39, set. 2010. p. 72-73.
Texto revisto em 8.9.2010.