Rio São Francisco navegado por Ronaldo Fraga: cultura popular, moda e história

Desde a infância, minhas memórias são banhadas pelas águas do São Francisco.
Meu pai, que nem “barranqueiro” era, vivia pescando por aquelas “bandas”.  Sua volta era sempre uma festa, quando ele trazia surubins gigantes, lendas e casos do mágico universo ribeirinho. Eram histórias e estórias, cultura, música, gente e bicho em cada conto trazido de lá. Meus sonhos eram povoados por caboclos d’água, uiaras, tutumarambás, serpentes do rio... Eu já tinha a certeza de que o São Francisco é mais que um rio.

Em 2008, satisfazendo antigo desejo, escolhi o “Velho Chico” como objeto de pesquisa para a coleção de verão 2009. Seria a desculpa para ir de encontro a um universo que eu já conhecia das histórias e da literatura. PIRAPORA, CARRANCAS, GAIOLAS a VAPOR , BOM JESUS DA LAPA, PIRANHAS E LAJEDO, PETROLINA E JUAZEIRO... palavras que no meu imaginário chegavam como um afago, agora se tornavam mundo real. Por três meses viajei e me embebi das águas e da cultura do rio. A coleção foi colorida com as cores barranqueiras, com os pontos e bordados característicos do universo às margens do rio, com as imagens das texturas das sacas de café e tábuas de madeira de lei que remendam os barcos e a alma ribeirinha ... Lançada a coleção, na sequência, a desfilamos no Chile e no México e o universo gráfico da mesma foi exposto no MOT, Museu de Arte Contemporânea de Tóquio.

Outras coleções vieram, mas como dito pelos ribeirinhos “uma vez que se bebe da água do rio, o rio nunca mais sai da gente”.

Passados dois anos, realizamos agora outro grande projeto: transportar parte da magia do São Francisco para uma exposição itinerante que circulará em pelo menos doze cidades do Brasil. É um diálogo entre a minha narrativa de moda e a rica cultura do rio que mais desperta afeto entre os brasileiros.  As “águas” do São Francisco não cabem em uma só coleção de moda, em um só livro e muito menos em uma única exposição, portanto essa não é uma mostra de acervo. São instalações costuradas entre a moda e a cultura ribeirinha.

Caminharemos por um convés imaginário, como o do vapor Benjamim Guimarães, observando o universo gráfico dos mercados populares, das carrancas e da arte popular; as histórias de amor de idas e vindas dos caixeiros viajantes; as cidades submersas pelo progresso desenvolvimentista...

Tudo numa vasta ciranda amorosa em torno do “Velho Chico”.

Ronaldo Fraga, outubro de 2010.

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Rio São Francisco

Num país repleto de rios, nenhum desperta tanto afeto quanto o São Francisco. Cruzando cinco estados, rasga o coração do Brasil, carregado de histórias e profecias. Ao ser descoberto por Américo Vespúcio em 1501, inspirou eloquente carta ao rei de Portugal. Naquela época, o rio invadia duzentas milhas mar adentro com a sua água doce. Hoje, é o mar que invade o rio. Por mais que pareça, nada no Velho Chico é simples. As lendas, o artesanato, a integração de um país, a água como moeda mais valiosa do século XXI, tudo está lá.

O São Francisco é um rio de grande importância econômica, social e cultural. Há mais de quinhentos anos é fonte de vida e riqueza. A hidrovia do São Francisco é, sem dúvida, um dos principais elos entre o Sudeste e o Nordeste.

Não foi por acaso que o Velho Chico recebeu o título de “Rio da Integração Nacional”. Desde a escola, aprendemos que, através de suas águas, bandeirantes desbravaram as Minas Gerais, descobriram ouro e diamantes, fundaram vilas e cidades, habitaram terras até então inóspitas.

De sua nascente à foz, o rio desfila grande diversidade de manifestações artísticas, de tradições e de ensinamentos cuidadosamente passados de geração a geração. Transporta os rastros de uma rica cultura popular.

No início do século XX, a navegação a vapor, as ferrovias e a energia elétrica iluminaram a rota do São Francisco. É testemunha dessa época o vapor Benjamin Guimarães que, por quase 80 anos, realizou o trajeto entre Pirapora/MG e Juazeiro/BA.

As águas do Rio São Francisco estão vivas nas mais belas manifestações da cultura barranqueira que compõem forte simbologia da identidade da cultura brasileira e revelam as riquezas desse patrimônio, que inspirou grandes literários como Guimarães Rosa, Euclides da Cunha, Graciliano Ramos, Carlos Drummond de Andrade e Ariano Suassuna.

Cinco hidrelétricas estão instaladas ao longo do seu leito. Além disso, é o principal responsável pela prosperidade de suas áreas ribeirinhas devido à agricultura irrigada. O Vale do São Francisco é a maior região produtora de frutas tropicais do país, e uma das poucas do mundo que produz vinho em duas safras anuais de uvas.


A exposição

De caráter interativo, tem ênfase na valorização da cultura popular, na preservação da memória e riquezas naturais como instrumentos de valorização da educação e da consciência em relação aos cuidados com o meio ambiente, no resgate da história e tradições presentes ao longo do rio São Francisco, e na moda enquanto instrumento de cultura. A importância cultural, social e econômica do São Francisco estão afetuosamente contadas por meio de videos, imagens, textos, instalações de arte, objetos e performances artístico-culturais.

A mostra foi composta por instalações plásticas de arte contemporânea, divididas em treze ambientes interligados por um percurso que remete ao interior do vapor Benjamin Guimarães, construído em 1913, tombado como patrimônio, e único do modelo em funcionamento no mundo. Ao navegar pelas águas da exposição, o visitante se deparou com elementos que remetem ao rio, desde a foz até a nascente, passando pelas lendas, religiosidade, cheiros e sabores, música e pelos costumes das cidades ribeirinhas, entre outros símbolos e características que são únicas ao São Francisco.  “A diversidade de costumes e crenças; a multiplicidade de raças, que vão dos índios, aos negros e brancos; o encanto das lendas, que são mágicas e ao mesmo tempo assustadoras; a poesia musical das cores, tudo no rio São Francisco encanta e impressiona”, afirma Ronaldo Fraga.

“O Chico morre no mar” – a foz do rio

O Chico encontra o mar em cardumes de peixes de garrafas Pet e colchões que estampados como se fossem águas de tábuas.

Nesse que é o início do percurso, o visitante assistiu um vídeo gravado por Ronaldo Fraga às margens do rio São Francisco, em Pirapora (MG), em recente viagem no vapor Benjamin Guimarães, no qual o estilista explica a proposta da exposição.

Américo Vespúcio descobriu a foz do São Francisco em 1501. Escreveu carta eloquente ao rei de Portugal dizendo que ele estava mais impressionado com o fato de 200 milhas para dentro do oceano a água ser doce do que com o volume de água que saía do continente ...
Hoje vivemos o inverso, com o processo de salinação do rio.

“Mapa”

O traçado do rio. Monóculos desvendam imagens das principais cidades às margens do São Francisco.

“ O gosto que o Chico tem”

Cheiros e gostos do rio. Mercados ribeirinhos, gosto e cheiro de pequi, coquinho azedo, farinha, rapadura, tapioca, cajá... Nas paredes, peixes em vias de extinção, em latas de conserva.

“O Chico e o caixeiro viajante”

Saudades de um rio que não existe mais. Na parede feita de malas antigas, fotos de Marcel Gautherot, do acervo do Instituto Moreira Salles, e vídeos produzidos pelo projeto “Cinema no Rio São Francisco” retratam um tempo repleto de saudade.

“Do convés do vapor Benjamin Guimarães observamos as várias faces do rio... “

Nessa parte do percurso retratam-se os corredores do vapor com as portas das acomodações da primeira classe e as redes da segunda classe.

“Memória e Devoção”

Sala representando os ex-votos do santuário de Bom Jesus da Lapa, expressão máxima de devoção e fé.

“A voz do Chico”

Roupas que falam. Vestidos que podem ser abraçados para ouvir a voz do rio, representada por Maria Bethânia, que declama o poema “Águas e mágoas do Rio São Francisco” de Carlos Drummond de Andrade, escrito em 1977.

“O Rio tece e veste”

Roupas criadas pelo estilista Ronaldo Fraga que ilustram a cultura, a alma, o ofício dos bordados feitos ao longo do rio São Francisco.
Neste ambiente, a memória das bordadeiras, ofício muito presente nas cidades ribeirinhas, principalmente na região de Pirapora (MG), recebe homenagem por meio de grande parede simulando os bastidores de bordados.

“Lambe-lambe das lendas”

Ilustrações do estilista Ronaldo Fraga para as lendas mais famosas presentes no universo do “Velho Chico”.

 “Água que se bebe”.

Garrafas com águas do rio e rótulos fictícios que homenageiam cidades e elementos presentes ao longo do São Francisco.

“Cidades submersas”

Aqui a luz traz a escuridão. O escuro frio da saudade...

Vídeo produzido pelo ator Wagner Moura e Sandra Delgado narrando um pouco do que foram os últimos dias de Rodelas, cidade baiana às margens do rio, que foi submersa para a construção da barragem da hidrelétrica de Itaparica em 1988.

“ De gota em gota se faz o mar” - a nascente do Rio

Espaço interativo para que as pessoas desenhem na grande lousa circular imagens particulares ligadas ao universo ribeirinho visto na exposição.

“Pescaria”.

Espaço interativo e de informação. Em cada peixe uma revelação.

O percurso se encerra com um ambiente dedicado às crianças, onde os pequeninos poderão conhecer sobre os peixes do Velho Chico.