Inventário de Obras de Arte em Logradouros Públicos da Cidade de São Paulo

Heróis da Travessia do Atlântico

Uma comissão de imigrantes italianos encaminhou à Câmara Municipal, em 1924, um pedido de licença para construir um monumento em homenagem a Benito Mussolini numa das praças de São Paulo. Mussolini, primeiro-ministro da Itália entre 1922 e 1943, era líder do movimento nacional-imperialista daquele país, conhecido como “fascista”. O pedido foi debatido pelos vereadores, mas logo ultrapassou o recinto da Câmara, provocando manifestações de vários segmentos da sociedade. Dada a reação, o projeto foi abandonado. Dois anos depois, no entanto, a idéia foi retomada, mas a oposição a ela continuava tão viva quanto sua defesa e, mais uma vez, o projeto ficou em suspenso.

Pouco tempo depois, o general Francesco De Pinedo, o piloto Carlo Del Prete e o mecânico Vitale Zachetti, todos italianos, atravessaram o Atlântico a bordo do hidroavião Savóia 55 “Santa Maria” e amerissaram na represa do Guarapiranga no dia 28 de fevereiro de 1927. Uma multidão os aguardava, composta, sobretudo, por italianos aqui radicados e seus descendentes. No dia 1º de agosto do mesmo ano, João Ribeiro de Barros realizou a mesma façanha, a bordo do hidroavião Jaú. A Light & Power Company teve de colocar bondes extras para atender aos populares que acorriam à represa saudar o aviador brasileiro. A Sociedade Dante Alighieri propôs a construção de um monumento “aos heróis da travessia do Atlântico”, junto à barragem do Guarapiranga e próximo ao local das amerissagens, no então município de Santo Amaro.

Para celebrar a aventura de seus compatriotas, Mussolini enviou a São Paulo uma coluna, com capitel em estilo jônico, retirada de uma construção milenar recém-descoberta no monte Capitólio, em Roma. A coluna foi incorporada ao monumento, inaugurado no dia 21 de agosto de 1929. Em declaração à imprensa, Ottone Zorlini (Treviso, Itália, 1891 – São Paulo, 1967), autor da obra, falou sobre o seu significado: “A junção ideal da época da Roma antiga às modernas conquistas que renovam e perpetuam a grandeza do passado, constitui a concepção geral da obra”.

No topo de um alto pedestal, uma escultura de bronze, chamada de “Vitória Alada”, lembra o sonho de Ícaro e aponta na direção do oceano. Na face frontal do pedestal, estrelas de bronze compõem a constelação do Cruzeiro do Sul. Nas laterais, encontram-se dois fascios. Um deles tem a esfera celeste e a inscrição “Ordem e Progresso” da bandeira brasileira; o outro, o símbolo de Roma: uma loba alimentando os irmãos Rômulo e Remo. A coluna romana está engastada na parte inferior do pedestal. A altura total do monumento é de cerca de 9 metros.

O fascio – feixe de varas transportado por antigos oficiais romanos, junto com uma machadinha, quando acompanhavam os magistrados – era um símbolo utilizado na Antiga Roma para expressar a idéia de que, uma vez unidos, os homens não poderiam ser vencidos. O fascio foi resgatado por Mussolini e transformado em símbolo do fascismo.

Mussolini tinha interesses estratégicos nos vôos pioneiros dos aviadores italianos e estudava o estabelecimento de pontos de apoio para sua frota aérea. Chamava De Pinedo de “Senhor das distâncias” e o acompanhou na definição do itinerário da viagem pelo Atlântico e pelas Duas Américas. O hidroavião Savóia 55 foi batizado com o nome de uma das caravelas de Colombo, a “Santa Maria”, lembrando assim a descoberta da América pelo navegador genovês. A travessia do Atlântico, maior desafio da viagem, foi feita em linha reta entre Bolama, na Guiné Portuguesa (atual Guiné-Bissau), e Natal, no Rio Grande do Norte, seguindo depois pela costa brasileira até Buenos Aires. De Buenos Aires, os italianos cruzaram a América do Sul pelo interior do continente, seguindo os rios Paraná, Paraguai, passando por Manaus, Cuba, e alcançando a América do Norte. A travessia do Atlântico Norte foi feita em linha reta, de Terranova, no Canadá, à Ilha dos Açores.

Em livro sobre a aventura, De Pinedo relata sua passagem conturbada por São Paulo. No Rio de Janeiro, foi convencido por compatriotas a desviar sua rota e amerissar na represa de Santo Amaro, quando seu itinerário previa apenas uma parada em Santos. Asseguraram-lhe que seria a primeira vez que um hidroavião chegaria à represa, sobre a qual o general italiano tinha poucas informações, apenas que ficava numa região sujeita a nevoeiros. Mesmo assim, decidiu contentá-los. O hidroavião sobrevoou São Paulo e amerissou na represa, onde uma multidão enlouquecida os aguardava junto à linha d’água. Depois de uma breve saudação, os aviadores se dirigiram a Santos. Apenas De Pinedo foi de Santos a São Paulo em automóvel, onde foi recebido pelo Governador e autoridades. Demorou a chegar, tamanha a multidão que havia nas ruas. Voltou a Santos no dia seguinte, mas, como estavam no Carnaval, teve de enfrentar nova turba e uma batalha de confetes e serpentinas, que quase o atingiram num olho.

Nos primeiros tempos da aviação, cada novo feito era saudado e celebrado como se já integrassem a história da humanidade, sempre acompanhados da recuperação de símbolos do passado. Os portugueses Sacadura Cabral e Gago Coutinho empreenderam a primeira travessia aérea do Atlântico Sul num hidroavião em 1922. A viagem Lisboa – Rio de Janeiro durou alguns dias. Como os aviões ainda não tinham grande autonomia de vôo, a Marinha Portuguesa colocou navios de apoio a serviço dos aviadores. Nas asas dos aviões “Lusitânia” e “Santa Cruz”, foram pintadas a cruz de malta, tal como nas naus portuguesas no período das grandes navegações.

A cidade de Natal, no Rio Grande do Norte, também recebeu uma coluna romana do monte Capitólio, doada por Mussolini em 1931. Implantada no Pátio do Instituto Histórico e Geográfico, na Cidade Alta, é conhecida como “Coluna Capitolina” ou “Coluna Del Prete”. Comemora a travessia em linha reta e vôo direto, sem escalas, de Roma à praia de Touros, realizada pelos aviadores Carlo Del Prete e Arturo Ferrarin em 1928. Associada à figura de Mussolini, a coluna foi derrubada em 1935, durante a Intentona Comunista.

Ao longo de quase 80 anos no espaço público, o monumento aos “Heróis da Travessia do Atlântico” sofreu vários danos. Durante a Segunda Guerra Mundial, os feixes de bronze foram retirados e recolocados tempos depois. Detalhes decorativos de bronze que adornavam a coluna foram furtados, assim como as placas de bronze, com inscrições em italiano, repostas em mais de uma ocasião.

Em 1985, o Instituto Cultural Umbro-Toscano de São Paulo solicitou a readequação do local de implantação do monumento à Prefeitura. A entidade temia pela integridade da obra, instalada num ponto em que a avenida De Pinedo forma um ângulo de 90 graus, com intenso tráfego de ônibus e caminhões. Julgando que o monumento estava “escondido” em Santo Amaro, o prefeito Jânio Quadros determinou sua transferência, em 1987, para a praça Nossa Senhora do Brasil. O fato, abordado exaustivamente pela imprensa, causou muita polêmica. Na praça, a obra foi pichada várias vezes, em manifestações de repúdio ao regime fascista e a Benito Mussolini.

Esquecia-se que o monumento presta justa homenagem a um feito louvável para a época e expressa as ideologias presentes no momento de sua concepção e implantação.


Seção Técnica de Levantamentos e Pesquisa
Divisão de Preservação - DPH