Preservar a memória e a paisagem

Fonte: Folha de S. Paulo

É positivo o projeto que altera as regras sobre a proteção do patrimônio histórico em SP?

NÃO 


NABIL BONDUKI

O AVASSALADOR processo de crescimento de São Paulo gerou a destruição de importantes bens culturais sob o argumento de que "era o preço do progresso". A cidade foi sendo privada de edifícios representativos, mirantes e paisagens, ficando sem memória nem identidade, mais feia e cinzenta.
A criação do Iphan e do tombamento em 1937 teve pequeno impacto na cidade, pois o órgão esteve voltado à proteção dos bens de interesse nacional representativos do período colonial, que, em São Paulo, se limitavam a poucas igrejas e casas bandeiristas.
O núcleo colonial já estava destruído e, depois, boa parte da cidade eclética foi arrasada pela verticalização.
Essa trajetória começou a ser interrompida nos anos 70, com o inventário dos bens de interesse arquitetônico realizado por Carlos Lemos e Benedito L. de Toledo, incluídos numa nova "zona" (Z8/200) em que as alterações passaram a ser limitadas.
A lei nº 10.032/85 criou uma legislação municipal abrangente, com a instituição do Conpresp, que atua de forma coerente com os preceitos nacionais. Apesar da composição equivocada (estabelecida por Jânio Quadros, que eliminou parte da representação da sociedade), da morosidade e de alguns posicionamentos discutíveis -caso da marquise do Ibirapuera-, o Conpresp cumpre seu papel, evitando a destruição do que resta da memória e da paisagem da cidade.
A legislação pode e deve ser aperfeiçoada. Porém, o PL 495/07, com exceção da fixação do prazo de 180 dias para o Conpresp decidir sobre o tombamento, não aponta o caminho correto para tal avanço, criando, ao contrário, uma sensação de risco ao patrimônio da cidade -particularmente num momento de aquecimento do mercado imobiliário- e um desgaste a mais para o legislativo paulistano. Por isso deve ser vetado pelo prefeito.
Ao transformar o Conpresp num órgão consultivo, delegando o tombamento ao prefeito e a atribuição de legislar sobre o entorno aos próprios vereadores, foram agredidas as disposições nacionais que tratam do patrimônio e perde-se uma oportunidade de melhorar a legislação e aperfeiçoar os instrumentos de preservação existentes no Plano Diretor, como a transferência do direito de construir.
Legislação federal consolidou a competência do Executivo sobre a proteção ao patrimônio, aceitando as normas do decreto-lei 25/1937, que estabelece que o tombamento é competência de entidades criadas pelo executivo, regra a ser obedecida em leis estaduais e municipais que tratem do assunto.
As restrições geradas pelo tombamento, incluindo o entorno, são atos técnicos decorrentes do valor de determinado bem, competindo ao órgão responsável o poder e o dever de proteger o patrimônio. É competência dos conselhos decidir sobre essa questão, uma vez identificado o valor do bem a ser protegido.
O tombamento e a definição de uma área envoltória alteram as leis urbanísticas sujeitas à aprovação dos Legislativos municipais. Isso, entretanto, não quer dizer que a proteção ao patrimônio deva passar a ser atribuição do Legislativo, em que a busca do consenso e os acordos políticos muitas vezes prevalecem sobre os aspectos técnicos. A proteção de um bem, incluindo sua área envoltória, não pode ser objeto de negociações e relativizações.
Por essa razão, a composição do Conpresp deve ser criteriosa. A participação da sociedade precisa ser ampliada, mas os conselheiros devem estar aptos a exercer a função e não ser representantes de interesses corporativos. A independência entre os Poderes deve ser observada, sendo inconstitucional um vereador representar o Legislativo num conselho do Executivo, como ocorre no Conpresp.
Por fim, é urgente o Executivo implementar a transferência do direito de construir dos imóveis preservados e da área envoltória, criado pelo Plano Diretor Estratégico. Com esse dispositivo, os proprietários dos imóveis que tiverem seu potencial construtivo reduzido poderão ser ressarcidos.
Cabe aos vereadores aperfeiçoar essa legislação, em que muito ainda pode ser feito, em vez de se envolver com um assunto que não é de competência do Legislativo.

 

NABIL BONDUKI , 52, arquiteto e urbanista, é professor de planejamento urbano na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Foi vereador de São Paulo pelo PT (2001-2004) e relator do Plano Diretor Estratégico na Câmara Municipal de São Paulo.