Câmara esvazia patrimônio histórico

Fonte: Folha de S. Paulo

Pelo projeto aprovado ontem, decisões de tombamento dependerão do prefeito, o que tornará conselho um órgão consultivo

Kassab vetará projeto, disse líder do governo; vereadores passam a ter autonomia para limitar altura de prédios no entorno de bens tombados

EVANDRO SPINELLI
AFRA BALAZINA
DA REPORTAGEM LOCAL

A Câmara de São Paulo aprovou ontem um projeto que tira poder do Conpresp (conselho do patrimônio histórico) para decidir sobre o tombamento de bens históricos na cidade.
Pelo projeto, as decisões passam a depender de aval do prefeito, medida que torna o Conpresp um órgão meramente consultivo. Hoje, as decisões do conselho são definitivas.
Além disso, o projeto aprovado pelos vereadores dá, a eles próprios, autonomia para limitar a altura de edifícios a serem erguidos no entorno dos bens tombados, decisão que hoje cabe apenas ao Conpresp.
O líder do governo, José Police Neto, o Netinho (PSDB), disse que o prefeito Gilberto Kassab vetará o projeto. A bancada governista votou dividida: o PSDB foi contra, e o DEM, partido de Kassab, a favor.
O projeto foi aprovado em segundo turno com uma emenda. Enquanto o original previa seis vereadores no conselho, o aprovado ontem determina um, eleito pelo plenário. Hoje, a Câmara tem um representante no órgão, indicado pela Comissão de Educação e Cultura.
Só os vereadores da bancada do PSDB e dois vereadores do PT votaram contra o projeto (veja quadro nesta página). Foram 39 votos favoráveis, 14 contrários e uma abstenção.
O motivo principal da disputa entre a Câmara e o conselho é o poder de definir restrições de altura de edifícios que poderão ser erguidos no entorno dos bens tombados. Por isso, os vereadores mantiveram o artigo que obriga a submeter à Câmara as decisões sobre o entorno de um imóvel protegido, assim como as restrições e mudanças de parâmetros urbanísticos.
Com suas decisões, neste ano, por exemplo, o Conpresp inviabilizou o projeto de grandes prédios ao lado do Moinho Santo Antônio (Mooca) e também perto dos parques da Aclimação e Independência.
Quando o conselho passou a limitar a altura para prédios no entorno de bens tombados, o Secovi (sindicato da habitação) criticou a medida. Disse que as definições de regras urbanísticas tinham de ir para a Câmara, como ocorre com o zoneamento. Foi o que fez a Câmara querer limitar o poder do órgão.
Dos atuais 55 vereadores, 24, ou 43,64%, receberam doações de campanha de empresas ligadas ao setor imobiliário.
Paulo Frange (PTB), autor do texto final, disse que os vereadores "precisam ser os primeiros a saber das últimas", e não só ler o que decidiu o Conpresp.
"O que nós queremos é manter na Câmara o que é de competência da Câmara."
Um dos itens incluídos no projeto prevê que as votações sejam noticiadas pela imprensa oficial e abertas ao público.
A medida é criticada por especialistas. "Quando estava no Condephaat, noticiei que tombaria os casarões da Paulista e no dia seguinte eles estavam no chão", afirmou o arquiteto Paulo Bastos. Ele defende ir à Justiça caso Kassab não vete a lei.
Para a vereadora Soninha (PT), o projeto "dá poderes imperiais ao prefeito" e tira o caráter deliberativo do conselho.
Carlos Alberto Bezerra Jr., líder do PSDB, disse que a bancada votou contra o projeto porque já há na Câmara uma comissão de estudos para avaliar a situação do Conpresp e propor mudanças na lei. "A gente votou e aprovou uma comissão que ninguém nunca levou a sério. Agora, apresentam uma emenda às 19h para votar às 19h14. Votação em tempo recorde por quê?"

Para advogado e para arquiteto, alteração é inconstitucional

DA REPORTAGEM LOCAL

O advogado e professor da escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas Carlos Sundfeld afirma que o projeto de lei que altera o Conpresp é inconstitucional. Segundo Sundfeld, nesse caso há uma "usurpação" da função do Executivo.
"Há uma interferência indevida do Legislativo num órgão diretivo do poder Executivo", disse. Para ele, deve ser respeitada a lei nacional de 1937 que disciplinou o tombamento no país e estabeleceu que as áreas vizinhas ao bem tombado estão sujeitas a restrição pelo órgão de proteção do patrimônio histórico. "Mesmo São Paulo tendo um órgão próprio, deve respeitar a lei nacional", afirmou.
O arquiteto e urbanista Lúcio Gomes Machado, professor da FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP), concorda que o projeto é inconstitucional. Em sua opinião, nas formações anteriores do Conpresp os técnicos tinham pouca liberdade e eram absolutamente dirigidos pelo Executivo.
"Isso ocorre justamente agora que o conselho tinha integrantes mais qualificados, que deixou de ser teleguiado pelo Executivo."
Para o arquiteto Paulo Bastos, que já foi presidente do Condephaat (conselho estadual do patrimônio histórico), submeter à Câmara as decisões do Conpresp é o mesmo que uma pessoa com problemas cardíacos pedir que sua família decida o procedimento médico mais adequado.
"A questão é técnica e precisa ser tratada por profissionais qualificados. Nesse caso, há uma invasão de atribuições por parte do Legislativo", disse.
Ele afirma que um órgão como o Conpresp precisa ter independência e autonomia porque, se houver uma perda do patrimônio histórico, ela é irreparável. "Não é possível remediar ou compensar uma perda dessas", afirmou.
Na opinião do vereador Juscelino Gadelha (PSDB), que acaba de deixar o cargo de conselheiro do Conpresp, o conselho perde sua independência e autonomia com a aprovação do projeto. "Isso é muito ruim."
Ele ressalta que a interferência da Câmara no Conpresp aconteceu porque o conselho estava "trabalhando muito" nos últimos meses.
"Só porque preservou deu esse problema. Se [o conselho] fosse mais liberal isso não aconteceria. A cidade vai perder", afirmou o vereador.

Sessão teve discussões entre vereadores e manobra para aprovação do projeto

DA REPORTAGEM LOCAL

A sessão de ontem foi tensa, com discussões entre vereadores do PSDB e do PT e entre tucanos e o presidente da Câmara, Antonio Carlos Rodrigues (PR), principal articulador da retirada de poder do Conpresp.
Rodrigues manobrou durante toda a sessão para que o projeto fosse aprovado. Cassou a palavra de vereadores contrários e avalizou a idéia de fazer as mudanças no projeto original por emenda -não por substitutivo, que exigiria um congresso de comissões e poderia inviabilizar a votação ontem.
O texto final foi protocolado na Mesa da Câmara às 19h02 e foi lido de maneira incompreensível por Milton Leite (PMDB), um dos líderes do movimento a favor de mudanças. A votação começou às 19h14.
Contribuiu para a tensão a divisão das bancadas do governo e do PT.
Outro motivo que acirrou os ânimos foi a reportagem de ontem da Folha que revelou que 43,64% dos vereadores receberam doações de campanha de empresas do setor imobiliário.
O vereador Carlos Apolinario (DEM), que não está na lista, foi um dos que criticou a reportagem. "Colocaram as fotos dos vereadores como se fossem bandidos. Vai para o inferno com essa matéria", disse o evangélico Apolinario da tribuna da Câmara.
Myryam Athie (PPS) disse que recebeu "só R$ 5.000". "Queria ter recebido a campanha inteira", afirmou.