Em No Retrovisor, dois amigos em busca do tempo perdido

Fonte: O Estado de S. Paulo

Peça estabelece um diálogo dramático pungente e inacreditavelmente cômico

Se o tempo é uma abstração humana, a memória nem tanto. Einstein pode parecer longínquo, mas Proust está No Retrovisor até dos que não o leram. Este é o título da peça de Marcelo Rubens Paiva, que uma interpretação apaixonada transformou em algo que inquieta, arrasta o espectador para dentro do seu espelho íntimo. Dois amigos se reencontram e se redescobrem quase antípodas. A linguagem comum que lhes resta é da ironia pesada e das cobranças dentro do sentimento de culpa. Mas nem por isso deixam de extravasar um humor devastadoramente engraçado e - estranho - muito dolorido. Tudo vale, menos auto-piedade, e aí está a grandeza da obra e sua realização teatral.

Se o encanto de Paris transformou em charme a “geração perdida” (Scott Fitzgerald e outros bêbados talentosos ), a realidade aqui embaixo é menos venturosa. No Retrovisor sintetiza uma geração, uma época (anos 80) e uma faixa social que o autor conhece bem: a classe média com veleidades de transformação sem saber exatamente do que. Antes dela - ou se confundido com ela - estiveram os hippies e os malucos-beleza que cruzaram com os esquerdistas dos anos 70 - um “povo” que morreu de “susto, bala ou vício” (Caetano dixit in Soy Loco por Ti América).

Juventude de extração universitária pagando caro por suas fantasias. Parte se equivocou nas opções existenciais, muitos desapareceram entre as areias de Arembepe, as dunas da Gal (pontos dos “alternativos, desbundados e bichos-grilo” em geral - seja lá o que isso queira dizer) e os porões da repressão ditatorial. Por outras palavras, No Retrovisor deixa de lado ilusões românticas e encara - sempre temos de encarar - o que resta entre a realidade e o projeto existencial. É aí que mora o perigo: neurose, desespero e a raiva. Ou, ao contrario: paz.

No reencontro dos velhos camaradas, um abismo se desvela. Um ficou cego no acidente em que ambos se meteram quando eram belos, farristas e esperançosos. O resumo pode soar simplista - mas aqui entra a maestria literária e coragem pessoal de Marcelo Rubens Paiva (há um substrato autobiográfico na ação). A peça não prova nada - a favor ou contra - mas assume o preço da juventude sem o choro lindo mas antigo de “esses moços, pobres moços” (Lupicínio Rodrigues). Há uma parte de vontade pessoal e uma parte do imponderável. Há aceitação e desesperança, e é nas medidas bem calculadas de um e outro destes componentes que a vida/ficção acontece. O cego ostenta um fatalismo desarmante. O sobrevivente do desastre gira nos círculos dos LPs de rock pauleira. Tem olhos, um apartamento sujo, um filho de colo e uma mulher distante. Boa questão indagar qual vida é a melhor.

Tudo isso pode já ter sido contado, mas não é toda hora que se tem uma parceria artística como a de Otávio Müller e Marcelo Serrado. O dueto resulta em um acontecimento emocional todo feito de contrastes. Muller está solto para uma verdadeira performance - um Joe Cooker bêbado (como o próprio se apresentou em São Paulo há 30 anos), um Tom Waits calculadamente amalucado - diante de Marcelo Serrado de óculos escuros e bengala branca. Uma figura de Beckett. Só dois parceiros leais e talentosos estabelecem um diálogo dramático tão pungente e inacreditavelmente cômico. Ao diretor, Mauro Mendonça Filho, o mérito de assegurar o equilíbrio e a seriedade interna do caos bastante sério em sua aparente loucura. Espetáculo vital que aquece um teatro lotado no frio da cidade.

(SERVIÇO)No Retrovisor. 100 min. 12 anos. Centro Cultural São Paulo (324 lug.). R. Vergueiro, 1.000, 3383-3400. Sex. e sáb., 21 h; dom., 19h30. R$ 15. Até 12/8