Um surfista na ópera

Fonte: O Estado de S. Paulo

Filmes de 26 bairros serão agora exibidos ao público

São Paulo é uma cidade que tem mais de 1.500 ‘cidades’ com histórias, sotaques e manias bem particulares. Na Mooca e no Bexiga, se fala o português ‘italianado’. Na Liberdade, se lê e se ouve muito japonês. Na ‘cordilheira’ das ruas de Perdizes, seus moradores acostumaram-se a subir e descer ‘montanhas’ assim como os da Barra Funda acompanharam a glória e a agonia dos trens.

De câmera em punho e muita pesquisa na cabeça, 26 produtores saíram em busca do passado de alguns dos principais bairros paulistanos. Cada um virou um documentário e, com o apoio da Secretaria de Cultura da Cidade, chegaram a ser exibidos em algumas escolas da rede pública. Agora, pela primeira vez, todos serão apresentados ao grande público.

A mostra História dos Bairros de São Paulo será exibida gratuitamente entre os dias 28 de agosto e 2 de setembro na Galeria Olido, Centro da Cidade. A Prefeitura escolheu os filmes por meio dos roteiros considerados os melhores dentre os 240 inscritos.

Cada qual com seus personagens, aparecem as regiões de Barra Funda, Perdizes, Mooca, Brás, Vila Matilde, Vila Maria, Jardim Felicidade, Perus, Capão, Capela do Socorro, Cidade Tiradentes, Freguesia do Ó, Itaim Paulista, Jabaquara, Vila Barreto, Jardim São Paulo, São Miguel Paulista, Higienópolis, Campos Elíseos, Liberdade, Luz, Pacaembu, Brasilândia e Vila Prudente. O JT ouviu alguns dos roteiristas, produtores e moradores paulistanos que aparecem nesses vídeos. Enciclopédias vivas, essas pessoas toparam reproduzir um pouco do que captaram à reportagem.

Mooca: até os Beatles conheceram

ITALIANADA

Um dos bairros mais tradicionais da Zona Leste no filme 'Partido Mooca'

BRUNA FIORETI, , bruna.fioreti@grupoestado.com.br

Vem da Mooca o sotaque mais identificado com São Paulo. Vem também de lá uma das histórias mais pitorescas, reproduzida no documentário Partido Mooca, de Jurandir Muller de Almeida Junior (com exibição prevista para dia 28, às 17h, na Galeria Olido). Segundo um dos lendários moradores do lugar, os Beatles conheceram a Mooca sem jamais pisarem na capital.

Tudo começou com uma espécie de entidade cultural chamada Escuderia Pepe Legal, da década de 60. Um dos líderes da organização, o Poeta da Mooca, Rafael Luongo Cardamone, 77 anos, conta que o grupo de jovens da Pepe Legal confeccionou algumas camisetas com a inscrição 'Mooca'. E as peças foram vestidas pelo grupo de rock The Jordans, que costumava animar as festas do bairro.

'Os integrantes desse grupo foram para Londres e lá se encontraram com os Beatles. E detalhe: estavam com as camisetas da Moóca', diz Rafael. A homenagem do grupo britânico aos brasileiros foi cantar ali mesmo a música Aquarela do Brasil. Na Mooca, a notícia foi recebida com um imenso 'foguetório'.

Essa 'mania de grandeza' da Mooca permeia todo o vídeo de Jurandir Almeira. 'Esse bairro , se pudesse, virava país. A Mooca é quase um time de futebol, uma paixão.'

Tanto amor está no jeito de os moradores conservarem as tradições. As comidas, lugares, esculturas... 'A Mooca é como uma cidade do interior', diz o documentarista.

Estão no vídeo também Seu Antonio, dono do estabelecimento mais antigo do bairro, onde se faz churros consumido nas madrugadas da Mooca há cerca de 50 anos. Há ainda imagens de muitos bares na região. Tudo mostra porque o bairro dividido em dois - metade de armazéns abandonados, metade de residências - é, para quem mora ali, um cidade grande dentro de São Paulo.

Freguesia do Ó: 'cidade' do interior

CADEIRA NA CALÇADA

André Costa conta a curiosa vida ‘rural’ do bairro

Ivy Faria, ivy.faria@grupoestado.com.br

Uma ilha de histórias dentro da maior metrópole da América Latina. Este foi apenas um dos motivos que levou o diretor André Costa a encarar o desafio proposto pela Prefeitura para contar a história da Freguesia do Ó, na Zona Oeste. Foi assim que surgiu Freguesia do Ó- cenas de um bairro, histórias de uma cidade. “Minha família é da Freguesia, meus avós tinham uma farmácia no bairro e, até hoje, me chama a atenção este isolamento que faz do lugar uma ‘cidadezinha do interior’, onde as pessoas são amigas.”

Depois de cinco meses de pesquisas, André e sua equipe saíram em busca de histórias. Ele nunca morou na Freguesia, mas sempre freqüentou a região por causa dos parentes. E como conhece todo mundo, não foi difícil entrar em contato com alguns pequenos colaboradores do documentário, as crianças.

O diretor propôs um desafio para os alunos de uma escola pública local e entregou fotos antigas da Freguesia. Depois, pediu para os pequenos “caçarem” o local das imagens. “A partir daí comecei a mostrar as transformações, entrevistar moradores que testemunharam isso de alguma forma.”

A Freguesia é um dos bairros mais antigos - com 427 anos - e é o único lugar da Capital que tem a Festa do Divino. “A região é marcada pela religiosidade, até o nome vem da Igreja da Matriz, da Nossa Senhora da Expectação do Ó.”

Foi na Freguesia que o bandeirante Manuel Preto se instalou em uma de suas fazendas, em 1615, e passou a criar um bairro. Como a Freguesia era muito afastada do Centro(o transporte era feito de barcos pelo Rio Tietê), Manuel construiu uma igreja para que as pessoas não precisassem viajar para rezar. “Dá para imaginar tudo isso?”, questiona.

Quem não consegue imaginar, deve ver as imagens colhidas para Freguesia do Ó - desta vez, oficialmente documentada.

Samba e Barra Funda de mãos dadas

NA CADÊNCIA

O diretor Rogério Soares investe na música para retratar o bairro

A história da Barra Funda se confunde com a do samba paulista. Foi no bairro que dá nome a um dos terminais mais movimentados de São Paulo que se originou a tradicional dança trazida por descendentes de escravos negros. No vídeo A Barra Funda Pede Passagem, de Rogério Soares, a dicotomia entre a cidade e o samba está na evolução de ambos: 'É emblemática a mudança do bairro e do samba, que hoje estão muito diferentes de quando surgiram', diz.

É que hoje a Barra Funda vive um 'boom' de especulação imobiliária, segundo Soares, e pode se modificar novamente. 'Da mesma forma, o samba mudou e acompanha o 'gigantismo'do próprio Carnaval a partir dos anos 10.'

Carlos Costa, 72 anos, é uma das principais figuras do documentário. Estudioso do samba paulista, ele conta que no antigo Largo da Banana, à beira da estrada de ferro Sorocabana, nasceu o samba que, mais tarde daria origem à Camisa Verde e Branco. 'A Barra Funda é um dos berços do samba paulista', atesta Carlão.

A identidade do bairro está ligada à migração dos ex-escravos, que vinham ser carregadores de produtos agrícolas na Barra Funda, no início do século passado. 'Nos intervalos, pegavam seus pandeiros e violões e cantavam', diz Carlão.

Na década de 70, foi a vez dos nordestinos se instalarem no local. Hoje, conta Soares, se muda para a Barra Funda a classe média e média baixa . 'O bairro como conhecemos está em constante mutação', diz ele. 'É um lugar inusitado, porque, andando por suas ruas, você encontra a zona industrial decandente, e em outro lugar, já se parece com uma cidade do interior, e agora se estabelece como centro de baladas.'

Tanta diversidade faz da Barra Funda um bairro alegre, na visão de Soares. Para Carlão, um berço do samba que precisa ser resgatado na memória paulistana. Por isso, o vídeo traz, além do dia-a-dia dos moradores de hoje, a história de personagens como Geraldo Filme, considerado o primeiro grande sambista de São Paulo. Higienópolis: 'recanto de higiene'

GENTE FINA

Reduto das classes mais abastadas, a região tem vizinhança ilustre

Higienópolis, um recorte do mundo pode ser considerado um documentário feito em casa, já que a maioria da equipe e até o diretor, Aurélio Michiles, moram no bairro. 'Foi uma sinergia incrível porque todo mundo estava no mesmo lugar', fala o produtor executivo, Julio Rodrigues.

E para contar a história de uma das vizinhanças mais ricas e elegantes de São Paulo, Michiles escolheu falar da arquitetura local e contou com a ajuda do pesquisador Carlos Lemos, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), também morador de Higienópolis. 'A escolha de Aurélio foi totalmente inusitada, já que ele é amazonense e tem uma temática de floresta em suas obras', conta o produtor. Julio ressalta que o diretor tem uma formação em antropologia e arquitetura, fundamental para identificar algumas das construções históricas mostradas no documentário sobre o bairro que ele escolheu para morar.

Higienópolis, um recorte do mundo, é apresentado pelo ator e diretor de teatro Cacá Rosset e tem depoimentos de moradores ilustres do bairro, como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, a atriz Denise Fraga e o rabino Henry Sobel, além de figuras queridas do bairro, como a judia Dona Zilanna, proprietária do restaurante judaico Casa Zilanna. 'Em Higienópolis a gente volta ao tempo porque ali tem muita coisa histórica, muitos nomes importantes da vida de São Paulo, como a família Alvares Penteado', diz Julio Rodrigues. O produtor conta ainda que o bairro surgiu para ser o recanto da higiene por estar numa região repleta de morros e ter um dos melhores climas da Cidade, bem afastado dos alagamentos, comuns no começo do século passado, que traziam doenças e pragas.

O bairro era também repleto de chácaras e o nome de algumas ruas é em homenagem às antigas proprietárias, como a dona Maria Antônia e dona Veridiana. 'O mais legal deste documentário é isso, o resgate histórico', pontua Julio.