Mostra revê João César Monteiro

Fonte: Folha de S. Paulo

Ciclo no CCSP exibe 14 filmes do diretor português morto em 2003, um dos mais "difíceis" do cinema contemporâneo

Fixação pelo poder da palavra resultou em obras radicais, como "Branca de Neve", que traz tela escura durante metade da projeção

CÁSSIO STARLING CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA

Quando se fala em autor no cinema quase sempre se pressupõe, além de uma relativa unidade de estilo e idéias, intenções e coerência de elementos que só ganham sentido na compreensão de um conjunto de filmes como obra. Por isso, a reunião de vários títulos de um diretor numa retrospectiva ajuda a entender não apenas a singularidade de seu trabalho (e, portanto, sua identificação como autor) como a evolução de sua linguagem e de sua temática.
Com a apresentação de 14 dos 21 títulos produzidos pelo português João César Monteiro (1934-2003), um ciclo a partir de amanhã no Centro Cultural São Paulo oferece a oportunidade de conhecer e apreciar um dos mais difíceis e rigorosos cineastas contemporâneos.
A mostra "O Cinema de João César Monteiro" traz desde seu filme de estréia, o documentário de curta-metragem "Sophia de Mello Breyner Andresen" (1969), até o derradeiro, "Vai e Vem", concluído pouco antes da morte do diretor.
O nome de Monteiro tornou-se conhecido internacionalmente a partir de "Recordações da Casa Amarela" (1989), quando passou a ganhar repercussão em festivais de prestígio, exibições regulares nas Mostras de SP e relativa popularidade, em especial após seu "A Comédia de Deus" ser exibido comercialmente no Brasil.
A essa altura contudo, Monteiro já construíra uma obra sólida, composta até então de dez títulos, dos quais seis serão exibidos no CCSP.
Desde o documentário sobre a obra da poeta Sophia de Mello Breyner Andresen, a coerência do cinema de Monteiro se identifica de imediato por sua fixação no poder da palavra.
Desta como expressão poética à fala como o veículo primordial da fabulação, da constituição de identidades e do auto-reconhecimento de uma cultura são exemplos títulos como "Quem Espera por Sapatos de Defunto Morre Descalço" (1970) e "Silvestre" (1981), nos quais Monteiro concentra nos embates verbais dos personagens a emergência de representações e de valores, em vez de buscá-los na psicologia, como é predominante no cinema de estrutura clássica.
Para isso o diretor enxuga seu cinema de qualquer excesso visual, insistindo formalmente na construção de planos fixos, frontais e longos, num exercício de retorno a possibilidades que o cinema teve em sua origem, mas que não pôde explorar devido à ausência do som naquela fase.

Reações iradas
A prioridade dada à palavra é tão essencial no cinema de Monteiro que ele a conduz ao paroxismo no radical "Branca de Neve". Este filme quase experimental provocou reações iradas em algumas platéias, diante da proposta de cinema quase sem imagens. Durante metade da projeção a tela fica escura e o espectador é conduzido pela força do que ouve, modo de reiterar que os percalços da princesa criada pelos Irmãos Grimm resulta de aspectos traiçoeiros da fala.
Outro elemento que funciona como aglutinador na última fase é a recorrência do personagem João de Deus. Essa espécie de heterônimo de Monteiro protagoniza a trilogia composta por "Recordações da Casa Amarela", "A Comédia de Deus" e "As Bodas de Deus" e dá seu adeus sob o nome de João Vuvu em "Vai e Vem". Ao encarnar este personagem, misto de filósofo mundano e de vampiro, Monteiro encena não apenas ele próprio mas também uma visão de mundo, constituída de beleza e de abjeção, de metafísica e de obsessão pelos aspectos mais sórdidos da sexualidade.
Por meio dele, Monteiro deixa de ser apenas um cineasta e alcança o status de moralista de linhagem socrática, com suas idiossincrasias e sua ironia refinada, sempre dedicado a demolir valores burgueses, aspectos da sociedade de consumo e truculências da política norte-americana numa só tacada.

O CINEMA DE JOÃO CÉSAR MONTEIRO

Quando: de amanhã a domingo
Onde: Centro Cultural São Paulo (r. Vergueiro, 1.000, tel. 0/xx/11-3383-3402); programação completa em www.centrocultural.sp.gov.br; co-realização: Instituto Camões Brasil
Quanto: entrada franca (os filmes serão exibidos em suporte DVD)