Adaptação de poema renascentista falha e fica só nas intenções

Fonte: Folha De São Paulo

Mérito da cia. Sobrevento é resgatar tradição do teatro de bonecos, mas posição dos atores atrapalha a encenação

LUIZ FERNANDO RAMOS
CRÍTICO DA FOLHA

Ao adaptar o poema renascentista "Orlando Furioso", de Ludovico Ariosto (1474-1533), o grupo Sobrevento não só desafiou o postulado de que dramas devem evitar narrativas longas, como o fez por meio do teatro de bonecos, uma das mais antigas e complexas formas de teatralidade. O espetáculo resultante revela que seus criadores enfrentaram o desafio com galhardia -o público mantém-se entretido com a saga do cavaleiro medieval que se apaixona pela princesa moura, em meio à guerra entre o império cristão de Carlos Magno e as potências muçulmanas que o ameaçam. Mas, nos mais de 20 anos do grupo, a montagem carece do brilho de anteriores.
A realização implicou numa pesquisa profunda sobra a técnica dos pupi, originada na Sicília e consistindo no uso de varões de ferro presos à cabeça e ao braço direito dos bonecos.
Essa técnica, difundida em Portugal, era apresentada no Brasil até o século 19 e se perdeu. O grupo não só se habilitou a resgatar o difícil manuseio destes bonecos de grande porte e peso, como aprendeu a confeccioná-los. Dezenove deles foram preparados num processo de sete meses de elaboração.
Só isto já garantiria o mérito dos criadores e, contando com o encanto que o teatro de títeres propicia, recomendaria o espetáculo ao grande público.
Mas há que compreender porque não se arrebata o espectador como em outras jornadas do Sobrevento.
O espetáculo ocorre nos porões do Centro Cultural São Paulo a partir de duas enormes caixas de madeira sobre rodas.
A primeira se abre, no prólogo, para revelar os músicos que acompanham ao vivo todas as cenas. A segunda é aparelhada externamente com várias janelas e, internamente, com diversos fundos cenográficos iluminados. Os manipuladores, invisíveis quando sob os bonecos, são atores narradores quando à vista do público, movimentando a grande caixa, surgindo inseridos nela, ou interagindo com os bonecos junto ao público. É uma solução engenhosa que deve com o tempo funcionar mais escorreita, mas que ainda parece colocar os atores numa situação limite e compromete o encantamento, tão decisivo no teatro de bonecos.
Luiz André Cherubini, que assina a direção e compartilha com Sandra Vargas a adaptação e a dramaturgia, é um artista que muitas conquistas obteve no teatro de animação, e que tem primado por introduzir no país técnicas de manipulação de outras culturas. Desta vez nos traz os bonecos de varão e aprofunda a pesquisa do grupo na combinação de manipulação e atuação. Nesse alargamento de atribuições e com mais recursos, a busca do máximo com o mínimo, essência do teatro de bonecos, é prejudicada.

Comentário tímido
Ao mesmo tempo, a clara intenção de retomar um clássico para comentar questões contemporâneas, como o conflito entre o islã e o Ocidente, só se insinua. Ariosto dialogou ironicamente com a tradição cavalheiresca, multiplicando narrativas que não deixam de representar um olhar crítico sobre a guerra santa de três séculos antes, e reverberou a recente tomada de Constantinopla pelos turcos otomanos. Cherubini parece apontar para a crise de valores e de identidades aberta pelo 11 de Setembro, mas o comentário é tímido, não consegue sintetizar uma leitura que o atualize. Fica nas intenções.


ORLANDO FURIOSO
Quando: sex. e sáb. às 21h; dom., às 20h; até 21/12
Onde: Centro Cultural São Paulo (r. Vergueiro, 1.000, tel. 3383-3402)
Quanto: R$ 12
Classificação: não indicado a menores de 14 anos
Avaliação: regular