Personagens evitam que documentário seja apenas um filme bem-intencionado

Fonte: Folha De São Paulo

JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA

Se você viu o documentário "À Margem da Imagem", de Evaldo Mocarzel, troque São Paulo por Lisboa e terá uma idéia de "Ruas da Amargura", do veterano cineasta lusitano Rui Simões.
Trata-se aqui de registrar o dia-a-dia e as idéias de um punhado de personagens que vivem nas ruas da capital portuguesa.
Um vendedor de bilhetes de loteria fala sobre o seu renitente alcoolismo: "O bichinho está sempre cá dentro". Uma alentajana que foi ser doméstica em Lisboa e hoje mora num cortiço com o filho de 22 anos fala da infância e das tentativas de suicídio. E por aí vai.
Há até os onipresentes travestis brasileiros, que, enquanto recebem da assistência social seu suprimento de camisinhas, comentam as diferenças entre trabalhar na Suíça e em Portugal.
Seria apenas mais um documentário bem-intencionado sobre os excluídos se não desse a dois personagens a oportunidade de se mostrar não como vítimas da sociedade injusta mas como sujeitos de sua própria vida, dotados de brilho e transcendência.
Um deles é um barbudo bêbado de uns 50 anos, que já foi viciado em drogas pesadas (LSD incluído) e hoje canta de Led Zeppelin a Charles Aznavour no banco de praça em que dorme. É tocante a cena em que ele canta em italiano para uma ucraniana que trabalha de guardadora de carros e também vive na rua. É a globalização vista pelo avesso.
Outra figura extraordinária é uma artista de rua que fala sobre sua auto-análise e suas aquarelas feitas segundo a técnica da "escrita automática" surrealista. "Sempre odiei o dinheiro. Queria ser pobre", diz, sugerindo que sua condição de sem-teto é voluntária.
Levada a uma exposição de arte moderna, ela se apaixona por um quadro de Morandi.
Admiradora de Ingmar Bergman e Marguerite Duras, cita à sua maneira um verso de "La Solitude", de Léo Ferré: "A solidão é uma forma superior de lucidez". Talvez seja. E, nesse momento, o filme de Rui Santos ascende de Mocarzel a Eduardo Coutinho.

RUAS DA AMARGURA
Quando: hoje, 20h30, no Centro Cultural São Paulo
Classificação: não indicado a menores de 12 anos
Avaliação: bom