Picadinho servido por Thiago Soares frustra

Fonte: O Estado De São Paulo

Desleixo técnico e desempenho irregular estão longe do que se espera da anunciada constelação de primeiros bailarinos

Crítica Helena Katz

A rima estética para o balé clássico é a combinação entre desempenho impecável e acabamento perfeito. Trata-se de uma dança de alta complexidade artística, que inclui, mas não se restringe, ao cumprimento protocolar desses dois parâmetros. Quando reduzida a eles, como em espetáculos do tipo Thiago Soares And Friends, tende a se desconfigurar, aproximando-se perigosamente dos esportes olímpicos.

Nesse tipo de balé também existem os padrões já conquistados, à espera da superação de suas atuais marcas. O público, deslocado para o papel de uma torcida, vai pendurando as medalhas de ouro do seu aplauso, à medida que as quantidades de saltos e piruetas, e as alturas dos passos vão sendo servidos. Porém, não o faz com o rigor olímpico. O encerramento, no Theatro Municipal de São Paulo, na última terça-feira, depois de passar por cinco capitais, da turnê brasileira do picadinho servido por Thiago Soares And Friends, somente confirmou que a celebrização que a mídia promove afiança, de antemão, o sucesso.

O cardápio foi o habitual: pequenos pedaços de obras conhecidas descontextualizados de suas dramaturgias e cenários, pespontados por divertimentos para, através do riso, começar a alicerçar os afetos que garantirão a continuidade desse projeto. O que surpreendeu foi o inaceitável padrão técnico de tudo o que foi mostrado, a começar pela mudança no programa anteriormente anunciado. Não somente o palco parecia ainda à espera de quem, pelo menos, esticasse o pano das suas laterais e fundo, como a qualidade do som era tão amadora que, a certa altura, simplesmente deixou de funcionar, levando ao fechamento da cortina para um posterior recomeço da dança. A iluminação ultrapassou qualquer limite previsto para o descuido ao deixar os bailarinos praticamente sem rosto, com sombras que escorriam por todas as partes dos seus corpos. Nem para o agradecimento, a luz mudava. Só quase ao final, alguém lembrou que deveria iluminar os que estavam agradecendo.

O desleixo técnico foi acompanhado por um desempenho muito irregular do que se espera de uma anunciada constelação de primeiros bailarinos internacionais. Mariañela Nuñez (Royal Ballet) e Alicia Amatriain (Stuttgart Ballet) conseguiram não fazer de suas habilidades técnicas o showroom da sua dança. Mas Thiago Soares não estava nos seus melhores dias. Revelou insegurança e nervosismo incompatíveis com o seu atual cetro de logomarca do Royal Ballet.

Faltou acabamento ao seu evidente preparo físico, que já conquistou prata no Concurso de Paris (1998) e ouro em Moscou (2001). Com braços excessivamente tensionados e pés que não zelavam pelo percurso entre o esticar e o fechar, parece ser um daqueles bailarinos nascidos para serem fotografados. São bailarinos ótimos em sala de aula, que fazem muito bem o varejo do passo, mas perdem no atacado das seqüências, porque não conseguem manter a qualidade ao longo da sucessão. Mas, como o nosso olho pisca, quem tiver a sorte de piscar justamente nesses momentos, ficará com uma coleção de imagens como a que estampa o programa impresso.

Na foto, a ausência de carisma não faz muita diferença. Tampouco, a daquela química que se torna uma marca das grandes parcerias. Mas em cena, ao vivo, isso é ainda o que, até há bem pouco tempo, ajudava a separar o joio do trigo. Mas era um tempo no qual não acontecia algo semelhante ao que Pelé, muito recentemente, declarou perceber como um problema no futebol brasileiro: aqueles que poderiam vir a se tornar craques são chamados de craques antes da hora, quando ainda não estão preparados.