Guimarães Rosa: 100 anos

Fonte: O Estado De São Paulo

É hoje a data exata do centenário de nascimento do autor de Grande Sertão: Veredas

Francisco Quinteiro Pires

No conto O Espelho, do livro Primeiras Estórias, o narrador em primeira pessoa dialoga com o leitor e o convida a ter contato com uma aventura cheia de mistério. No fim do primeiro parágrafo, afirma: 'Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo.' Milagre, palavra latina, significa prodígio, coisa maravilhosa e extraordinária. Não dá para pensar a obra de João Guimarães Rosa, cujo centenário de nascimento é comemorado hoje, ignorando o fato de que sua produção literária é desencadeada pela face fantástica (ou mitológica) da realidade, sempre a partir do sertão de Minas Gerais.

Mas o sertão está em toda parte. Esse mundo está dentro e fora do homem, ensinou o escritor nascido em Cordisburgo, no norte de Minas. Essa concepção é fundamental em sua obra, resultado da assimilação e transfiguração de duas vertentes da literatura brasileira da primeira metade do século passado: regionalismo e espiritualismo. A paisagem do sertão se tornou tão importante como elemento narrativo quanto a investigação subjetiva dos personagens. Rosa mostrou que o jagunço, mesmo sem saber ler, também se dedicava a especulações metafísicas, em meio à violência produzida pela ordem política e social injusta.

Essa assimilação resultou em algo inédito na literatura nacional, segundo Walnice Nogueira Galvão, uma das maiores especialistas brasileiras na obra rosiana. Ele sintetizou - e superou - duas vertentes contrárias. Ao valorizar o apuro formal, o experimentalismo lingüístico, o contato com a literatura universal e a criação de uma prosa como quem escreve poesia, Rosa fez a expressão pela literatura, no País, avançar ao mais alto grau. 'Sua maior contribuição é, sem dúvida, a renovação e o enriquecimento da língua literária', afirma Walnice. 'Nenhum outro autor brasileiro alcançou esse resultado, nem em poesia, nem em prosa, nem em dramaturgia, nem em nada.'

Embora inevitavelmente associado a uma região brasileira, o autor de Grande Sertão: Veredas se fez universal, característica nascida na erudição tanto literária quanto poliglota, segundo Walnice, que está lançando Mínima Mímica, conjunto de ensaios sobre a obra rosiana. O que surpreende na ficção de Rosa é a capacidade de reproduzir misteriosos processos de criação da língua, como se o escritor estivesse simultaneamente visitando o começo e o futuro da mais alta literatura.