Um passeio pelo universo lúdico de Kandinsky

Fonte: O Estado De São Paulo

Cores e formas ganham vida e emoção no espetáculo infanto-juvenil concebido e dirigido por Miriam Druwe

Helena Katz

Transformar, em um espetáculo de dança, a intrincada conversa filosófica que Vassily Kandinsky (1866- 1944) propôs no Do Espiritual na Arte, livro que publicou em 1912, não poderia mesmo ser uma tarefa simples. Pensar em fazer dele uma produção destinada ao público infanto-juvenil seria ainda mais inusitado. Pois foi esse o desafio que resultou em Lúdico, em cartaz na Sala Jardel Filho do Centro Cultural São Paulo hoje e amanhã, e no Teatro Humboldt, no dia 28, às 20 horas, com ingressos de R$ 7,50 a R$ 15.

A obra, que dura 60 minutos, foi contemplada com o 3º Fomento Municipal à Dança da cidade de São Paulo, e tem reunido crianças de todas as idades na sua platéia. A direção imprimida por Miriam Druwe e Cristiane Paoli-Quito tem o mérito de propor uma comunicação que parece produzir nelas aquele estado especial que o pintor chamava de “vibração da alma”, tamanho o silêncio com que o espetáculo é recebido. Essa terminologia, Kandinsky tomava emprestado da música que tanto amava, e que pautava a sua pintura.

Em Lúdico, a inspirada música de Fabio Cardia também tem um papel importante, pois constrói um ambiente harmonioso com a narrativa. A proposta de trabalhar a tela branca na sua plena materialidade, além da beleza plástica da sua solução cênica, estimula importantes divagações sobre o branco como presença, e não somente como uma experiência transitória, a ser coberta pelas outras cores.

O ponto, a linha e o plano, que foram transformados em teoria no livro de 1926, aqui viraram personagens. A reta trabalha seus movimentos a partir da certeza de que é uma junção de pontos; a curva se mostra sempre elástica e sinuosa; e o ponto, que se entende como o marco inicial, de onde a pintura partiria, faz com que a tela branca fuja dele, porque deseja manter-se branca. A movimentação, todavia, poderia ter agregado mais complexidade às cores e formas-personagens, caso explorasse mais as sobreposições de planos trabalhadas por Kandinsky, o que perfuraria um pouco mais a dominância da frontalidade. Nos momentos em que a perspectiva renascentista é abandonada, o espetáculo chega à sua plenitude.

Há, talvez, alguns bê-á-bás excessivos na transcrição dos estados psicológicos propostos por Kandinsky para as cores, como o fato de o círculo preto ser sisudo, e o círculo vermelho, apaixonado. Por outro lado, surgem soluções poeticamente poderosas, como a do pintor ser engolido pela obra e, sobretudo, o competente relacionamento entre a iluminação de Marisa Bentivegna e a cenografia e figurinos de Marco Lima, que produz texturas e relevos nas cores, nas sombras, nas formas.

Concebido e coreografado por Miriam Druwe, que também o dirige, em parceria com Cristiane Paoli-Quito, apresenta bons intérpretes-criadores: a própria Miriam Druwe, Adriana Guidotte, Tatiana Guimarães, Luciana de Carvalho, Sérgio Luiz, Bruno Rudolf, além de Luciana Paez (atriz convidada) e Cristiana Uehara e Leandro Breton (estagiários).

A produção é impecável em todos os detalhes e o elenco, felizmente, desempenha suas tarefas sem cair nos temíveis clichês que marcam certas obras criadas para crianças. Como se trata de um espetáculo de dança infanto-juvenil, gênero para o qual ainda não se construiu uma dramaturgia própria, dada a raridade de produções a ele dedicadas, a proposta apresentada por Cristiane Paoli-Quito e Miriam Druwe para a montagem de Lúdico pode ser tomada como uma referência. Uma iniciativa de tal qualidade e importância deve ser apoiada por todos os que se interessam pelo fortalecimento da dança no nosso país. Quem sabe, possa vir a estimular uma bem-vinda exploração desse segmento.


(SERVIÇO)Lúdico. Centro Cultural São Paulo - Sala Jardel Filho (324 lug.). Rua Vergueiro, 1.000, 3383-3402. Sáb. e dom., 16 h. Grátis. Até 22/6