A busca difícil pela simplicidade

Fonte: O Estado De São Paulo

Cenários, direção, figurinos e canto se articulam na recriação de Madame Butterfly, de Puccini, que estréia no sábado

João Luiz Sampaio

De um lado, o gestual delicado, a suavidade dos movimentos da herança japonesa; de outro, o que a ópera italiana tem de melhor em termos de força dramática. Não deixa de ser um conflito interessante para uma ópera que fala do olhar ocidental sobre a tradição oriental. 'Mas ele só atrapalha se você quiser aparecer mais que a música de Puccini', diz a soprano Eiko Senda. 'Se você se atém à força da música, ao que ela sugere, não há incoerência', acrescenta o diretor Jorge Takla. 'Música e texto se articulam de tal maneira que o caminho dramático se revela à nossa frente', completa o maestro Jamil Maluf. É com esse objetivo em mente que a trinca encabeça a nova produção de Madame Butterfly, que estréia sábado no Theatro Municipal.

Dizer que soprano principal, diretor e maestro encabeçam a montagem costuma ser correto, mas, aqui, conta apenas parte da história. Os cenários são da artista plástica Tomie Ohtake, os figurinos, de Fábio Namatame, a coreografia e movimentação, de Susana Yamauchi. A referência a eles é obrigatória porque, de alguma forma, todos esses elementos se articulam de maneira integrada na produção, cujo ensaio pré-geral o 'Estado' acompanhou na noite de sexta. Butterfly é uma das grandes heroínas da história da ópera. Apaixona-se pelo marinheiro americano Pinkerton; após uma história intensa de amor, ele volta para os Estados Unidos; e ela permanece no Japão, lutando contra a tradição e esperando, com o filho que teve dele, sua volta, apenas para, no momento do reencontro, descobrir que ele se casou e que ela está só. A diversidade de elementos resulta em uma simplicidade desconcertante. E o drama da história se constrói por meio da força dos intérpretes.

'Depois de trabalhar com dois musicais e um aparato cênico, técnico e pirotécnico muito amplo, estou buscando nessa volta à ópera o despojamento', explicava Takla no fim da noite de terça-feira, depois do ensaio. 'Já dirigi Butterfly antes e utilizei muitos recursos, ondas, portas, efeitos. Funcionou naquela época mas, agora, meu momento é outro. Quero encontrar na música a essência da ação. Está tudo nela, a dramaturgia musical de Puccini é fantástica. E, nesse sentido, trabalhar com os cenários da Tomie foi uma experiência incrível. Essa essência também está nas suas linhas, na sua proposta de cores, apropriada também pelo Fábio Namatame.'

'A produção procura uma sensibilidade e uma simplicidade comoventes, e isso nos deixa nus sobre o palco, o que é um enorme desafio', diz Eiko, que vive sua 20ª montagem da ópera, acompanhada pelo tenor Paul Charles Clarke, a meio-soprano Sílvia Tessuto, o barítono Lício Bruno, o baixo Pepes do Valle e o tenor Sergio Weintraub (nas récitas dos dias 23 e 27, Laura de Souza e Marcelo Vanucci assumem os papéis principais). E quem é Butterfly? 'Uma mulher louca', brinca a soprano. 'Mas é uma louca boa, uma mulher que resolve se entregar ao amor, que acreditou na sua possibilidade.' Maluf acrescenta. 'De todas as heroínas de Puccini, Butterfly é a mais pungente.' Takla completa. 'Mas é também a mais forte na sua fragilidade. A decisão de se matar no fim da ópera nada tem a ver com a decepção amorosa que sofre. Ela se retira de cena para que seu filho viva com o pai longe da desonra da mãe', completa Takla.

Essa é a quinta ópera feita em conjunto por Jamil Maluf, à frente da Orquestra Experimental de Repertório, e Jorge Takla. 'Já somos um velho casal', brinca o maestro. Eles explicam o processo de trabalho que os une. 'Tudo nasce junto, o Jamil acompanha os meus ensaios e vice-versa. Às vezes é difícil, porque eu fico puxando para a cena, ele puxa para a música. Mas, quando nos entendemos, assim que levamos todos os elementos para o palco, funciona, pronto. E é bom trabalhar com um maestro que gosta e entende de teatro', diz o diretor. 'Não é por acaso que só cheguei à Butterfly depois de reger outras obras de Puccini', diz Maluf. 'Nela, a relação entre teatro e música é muito importante. Meu trabalho como maestro começa com o texto, com a palavra cantada. Leio e releio o libreto, quero saber como aquelas palavras seriam faladas. A escolha do tempo da interpretação musical tem tudo a ver com a cena, então, se você não está atento ao fluxo do texto, escolhe o tempo errado. Não há outra maneira de fazer essa ópera que não buscando a sintonia completa, compasso a compasso', completa Maluf que, musicalmente, elogia a capacidade de Puccini de distribuir as idéias musicais pelos instrumentos da orquestra. 'Ele mostra como nunca sua capacidade de orquestrador, o maior da ópera italiana, talvez com exceção do Giuseppe Verdi do Falstaff.'

As Cores de Tomie

ENCANTO: 'Está tudo muito lindo', diz uma sorridente Tomie Ohtake no ensaio de Madame Butterfly, no Municipal. Gostou do resultado final dos cenários? 'Ficou lindo, a luz é linda, gostei da regência, da soprano, da integração dos elementos', ela responde, acompanhada do filho Ricardo Ohtake. A responsável pela coreografia, Susana Yamauchi, quer se levantar, ela não deixa; o figurinista Fábio Namatame passa e ela o faz se sentar. Não quer falar sozinha, diz. O espetáculo é deles. Eles gentilmente discordam, mas a conversa ganha com a presença de todos. 'Meu trabalho foi criar uma movimentação cênica que ocupasse da melhor maneira o espaço criado pela Tomie', diz Susana. 'Segui o padrão de cores sugerido por ela, é como se fosse um pintura', completa Namatame. Tomie fala então do trabalho com um conjunto de cores. E encerra, o mesmo sorriso no rosto. 'Está tudo lindo.'