Incentivo ou renúncia?

Fonte: Folha De São Paulo

CARLOS AUGUSTO CALIL


Nossa política cultural se meteu numa armadilha. O incentivo à iniciativa privada não pode corresponder à renúncia do setor público
 

A ADOÇÃO indiscriminada de incentivos fiscais na cultura levou à atrofia dos orçamentos públicos e à inibição da atuação do poder público, que se tornou refém de um processo cuja dinâmica não necessariamente leva em consideração o interesse público.
A agenda dos projetos incentivados não contempla o universo amplo das necessidades do setor, privilegiando, em alguns casos, investimentos de duvidosa legitimidade. Um volume considerável (40% em 2007, cerca de R$ 400 milhões) de recursos incentivados provém da renúncia fiscal de empresas estatais, em conseqüência do refluxo do interesse do setor privado, apesar das vantagens oferecidas.
A privatização do uso de recursos públicos criou uma rede de instituições privadas e empresas de prestação de serviços que inflacionou custos e salários no setor. Além disso, o incentivo fiscal tem sido utilizado na manutenção de órgãos públicos por meio de projetos incentivados.
A política cultural brasileira há tempos se meteu numa armadilha da qual até hoje não vislumbrou a saída.
Desde o fim do regime militar, acompanhamos a sucessão de acontecimentos que, ao pretender responder à legítima demanda por liberdade de criação artística e participação da sociedade, instituíram um regime de descrédito da ação governamental.
A instituição da lei de incentivos fiscais se deu sob o pretexto de evitar o dirigismo cultural autoritário. A Lei Sarney, que concedia renúncia fiscal a empresas apenas cadastradas no ministério, sem controle efetivo sobre o seu uso, ensejou um sem-número de expedientes pouco ortodoxos que a desmoralizaram.
A Lei Rouanet, que sucedeu a Lei Sarney em 1991, era mais sóbria na sua origem e pressupunha a saudável parceria entre recursos públicos e privados. Durou pouco em sua forma canônica e foi bombardeada pelos lobbies das categorias artísticas que, aos poucos, a foram desfigurando.
Ao elevar a renúncia fiscal da Lei Rouanet a 100%, o governo federal, na verdade, criou um mecanismo automático de transferência de investimentos ao setor privado. Agiu desse modo para contornar as restrições orçamentárias, já que o Ministério da Cultura dispunha de um orçamento muito aquém de suas necessidades.
Mas foi sobretudo para escapar do contingenciamento que se praticava no governo federal visando à criação de um superávit primário.
Enquanto preservava a capacidade de investimento, o ministério via as bases de uma política cultural escapar de suas mãos na irracionalidade de projetos que, embora ocasionalmente meritórios, não tinham compromisso com a defesa do Tesouro ou o interesse público.
Alguns artistas com aversão ao marketing atacaram as leis de incentivo alegando que elas privilegiavam o mercado e as obras a ele destinadas. O argumento revelou-se uma falácia. Quem dera que os mecanismos de incentivo fiscal tivessem criado um sólido mercado cultural no país. Se assim fosse, ao poder público restaria cuidar do patrimônio histórico e das manifestações não comerciais.
Não é isso o que se vê. O cinema, de todas as modalidades a mais incentivada pelo governo federal, não avançou na sua sustentabilidade, pelo contrário. A questão fica ainda mais incômoda se nos detivermos sobre o segmento das artes visuais contemporâneas. É menos incentivado e desfruta de valor de mercado.
Se a cultura é norma e a arte, ruptura, como lembra Godard, um regime de financiamento à cultura e à arte que cria dependência quase absoluta de recursos públicos colabora na domesticação dos impulsos de ruptura pela via da institucionalização.
Em seus diversos estratos, a sociedade clama por vocalização. Iniciativas de todos os tipos, de governos e entidades do terceiro setor ou mesmo de empresas com consciência "cultural", obtêm êxito na medida em que vão ao encontro de demandas reprimidas da sociedade.
A perspectiva de atendimento desse clamor depende da construção de uma política cultural em que se alcancem equilíbrio e complementaridade entre as ações diretas do poder público e as indiretas, por meio das leis de incentivo e das parcerias com o setor privado.
Para isso, será imprescindível recuperar o papel do poder público, por intermédio do investimento direto nas ações de interesse público, com a inevitável ampliação dos recursos orçamentários e foco na sua gestão. O incentivo à iniciativa da sociedade não pode corresponder à renúncia do setor público.

CARLOS AUGUSTO CALIL , 57, é secretário municipal de Cultura de São Paulo. Documentarista e escritor, é professor da Escola de Comunicações e Artes da USP. Foi diretor da Embrafilme (1979-86) e do Centro Cultural São Paulo (20001-2005).

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