A instigante arte de Jorge Garcia

Fonte: O Estado De São Paulo

Crítica Helena Katz

O percurso profissional de Jorge Garcia como coreógrafo vem sendo solidamente construído, obra a obra. Na mais recente, Um Conto Idiota, recém-estreada na Galeria Olido, deixa muito mais claro o nascimento de uma escrita própria. Ela ainda vai se desenvolver, mas já evidencia algo de muito autoral. Um jeito de usar o movimento, o modo de construir as cenas, mas, sobretudo, o que faz com os personagens. Mesmo embrionária, sua dramaturgia é muito instigante.

Quem acompanhou as duas outras criações que fez para a sua companhia, Cantinho de Nóis (2005), muito próxima da arte popular do Recife, e Histórias da 1/2 Noite (2006), em torno do universo de Machado de Assis, tem a possibilidade de perceber intensidades novas no que seriam os personagens de Um Conto Idiota. O movimento, em vez de ser usado para definir cada um dos personagens, como que se compartilha entre os dez intérpretes (seis bailarinos e quatro estagiários). Assim, impede que cada um venha a ser identificado com o seu personagem exclusivo, porque justamente demonstra que não existe nenhum conjunto de características a ser representado por um só corpo. É como se todos cuidassem de apresentar traços de um mesmo tipo de palhaço: aquele do bizarro, do grotesco, habitante de um mundo sombrio.

O palhaço, curiosamente, não funciona como um personagem a ser representado, mas como uma metáfora da situação na qual vivemos. No texto do programa, Jorge Garcia pergunta: 'Onde está o respeitável público?... Quem é o idiota nesse Jogo?... Quem está por cima, quem anda na corda bamba, quem pula e faz firula?... Quem sonha com os olhos abertos e fecha os vidros para não levar um tiro?... Lutar, sim, sempre, mas as armas são iguais?'

O elenco, competentemente engajado no que faz, consegue se manter afastado daquilo que se entende habitualmente por coreografia e por personagem. Passos e gestos parecem acontecer ao corpo como se o corpo não os buscasse - como se o movimento nascesse de material pesquisado e depois reunido ao acaso, desvestido de toda impostação.

Ao longo da obra, essas séries curtas de movimento vão passando pelos corpos, se sobrepondo, em diálogo com o modo como os figurinos, criados por Danubia Costa, se montam e desmontam. O ambiente é clownesco, e guarda muita familiaridade com as fotografias de Jan Saudek (o fotógrafo tcheco do bizarro), uma das referências que o elenco estudou.

A proposta de Fabio Marcoff para a cenografia também promove esse efeito de deslocamento quando organiza espacialidades em sobreposição - o virtual no canto, como se fosse um furo para outra dimensão, sem que se saiba onde é a entrada, onde é a saída; e o fora da cena que fica dentro da cena porque não existem coxias. O design de luz de Ari Buccioni vai na mesma direção quando tonaliza as cenas nos fazendo crer que tudo, de tão natural, não passa de uma ação do nosso olhar.

Mas o grande regente dos recursos cênicos envolvidos é a trilha sonora de Aguinaldo Bueno, que nos faz ouvir timbres muito novos nos deslizamentos que instaura em Bach e na música de Jim Morrison/The Doors. O ambiente sonoro tem a dose justa de sombreamento que a obra pede.

Um Conto Idiota vem mais carregado de capoeira e de aikidô do que as peças que a antecederam, e talvez o aumento da dose dessas fontes de treinamento tenha colaborado no refinamento dos processos de composição de Jorge Garcia. Vale continuar de olho no seu trabalho, porque suas misturas prometem.