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Cidade inacabada
Guilherme Wisnik

9 de julho a 16 de outubro de 2016

Qual é a verdadeira cara de São Paulo? Quais os seus limites? Será possível figurar na mente uma imagem qualquer dessa massa informe e tentacular que desafia, por sua escala e complexidade, qualquer esforço de cognição humana?

Essas são perguntas sem resposta, e que só podem ser levadas a sério através de duas posturas aparentemente opostas: a ficção, por um lado, ou o experimento científico, por outro. Partindo de regras e métodos muito claros, o trabalho de Tuca Vieira flerta claramente com o segundo caminho. O fotógrafo queria conhecer melhor a cidade na qual nasceu e vive, e, ao mesmo tempo, ser capaz de registrá-la fotograficamente. Mas como fazê-lo? Por onde começar? Diante da evidente impossibilidade da empreitada, escolheu um critério objetivo e impessoal: basear-se no guia de ruas da cidade. Isto é, seu trabalho consiste em produzir uma foto para cada página dupla do guia, que, por sua vez, corresponde a um número. Assim, cada número, ou página dupla, representa uma seção quadrada que divide a mancha urbana da região metropolitana de São Paulo em 203 partes iguais. 

Note-se que a escolha do guia de ruas não é um critério qualquer. Ao mesmo tempo que dá conta de quase toda a extensão da mancha urbana da metrópole, o guia permite também uma apreensão palpável da cidade, uma vez que sua escala é feita para possibilitar a identificação de todas as suas ruas e praças. Tem-se, portanto, através do guia, um trânsito possível entre as partes e o todo da cidade, algo que era chave para a realização desse projeto de mapeamento. Entra em cena aqui um elemento crucial do projeto: a experiência real do espaço. Afinal, para que visitar ao vivo lugares que estão plenamente mapeados pelo Google e pelos sistemas de georreferenciamento da cidade? 

Daí o aspecto algo quixotesco do projeto. Podemos imaginar o grau de infortúnios cotidianos enfrentados para a consecução da tarefa, que envolve imensos deslocamentos, congestionamentos, gastos com combustível e equipamentos, cansaço e eventuais problemas com segurança. E assim como o guia de ruas é um instrumento em total desuso nos dias de hoje, também o fotógrafo opta por registrar a cidade não através de máquinas leves e portáteis, e sim com uma câmera artesanal de grande formato com chapas individuais, montada cuidadosamente sobre um tripé, o que torna cada foto um ritual cênico claramente anacrônico. 

Aqui retomo o aspecto ficcional do trabalho. Pois Tuca Vieira tempera o método científico empregado com um importante halo de ficcionalidade, próprio de quem sabe não haver respostas exatas, muito menos únicas, para o problema em questão: o retrato da cidade. Resulta daí um esforço de Sísifo, algo inglório, para se realizar um trabalho cujo sentido parece escapar ao bom senso.

Afinal, podemos pensar a sua ação de catalogação como um ato silencioso de construção paralela de outra cidade latente que nós ainda não vemos, enquanto a cidade que vemos continua se transformando continuamente. A propósito, como bem notou o ensaísta francês Georges Didi-Huberman, “se o atlas aparece como um trabalho incessante de recomposição do mundo, é, em, primeiro lugar, porque o mundo mesmo sofre decomposições constantes”.

An Unfinished City
Guilherme Wisnik

What is the true face of São Paulo? What are its borders? Is it possible to get any sort of mental picture of this formless, tentacular mass which by its scale and complexity defies any effort of human cognition?

These two questions without an answer can only be seriously considered by way of two apparently opposite standpoints: on the one hand, fiction, and on the other, scientific experiment. Based on very clear rules and methods, Tuca Vieira’s work clearly flirts with the latter path. The photographer wanted to better know the city in which he was born and lives, and, at the same time, to register it photographically. But how could he do that? Where could he begin? In light of the evident impossibility of the undertaking, he chose an objective and impersonal criterion: he based his work on a guidebook to the city’s streets. His work consists of producing a photo for each double page of the guidebook, which, for its part, corresponds to a number. Thus, each number, or double page, represents a square section that divides the amorphous area of the São Paulo Metropolitan region into 203 equally sized parts.

Note that the choice of the street guide is not just any criterion. At the same time that it covers nearly the entire extension of the metropolis’s urban area, the guide also allows for a tangible grasp of the city, since it is made on a scale that allows for the identification of all its streets and public squares. The guidebook thus provides a link between the parts and the whole of the city, something that was essential for carrying out this mapping project. A crucial element of the project enters here: the real experience of the space. After all, in what sense is it necessary to visit locations in the city which are fully mapped by Google and geo-referencing systems?

This lends the project a quixotic aspect. We can imagine the degree of day-to-day problems and setbacks faced in the consecutive steps of the task, involving extensive travel, costs for fuel and equipment, tiredness and eventual security risks. And just as the street guidebook is a tool that has fallen into disuse nowadays, the photographer also chose not to record the city through lightweight and portable devices, but rather with an artisanal, large-format camera with individual photographic plates, carefully mounted on a tripod, which makes every photo a clearly anachronistic scenic ritual.

Here I return to the work’s fictional aspect, because the scientific method used by Tuca Vieira is tempered with an important halo of fictionality, proper to someone who knows that there are no exact or exclusive answers to the task in question: the portrait of the city. This gives rise to a Sisyphean and somewhat inglorious effort, to carry out a work whose sense seems to be at odds with common sense.

We can ultimately consider his action of cataloging as a silent act of construction running in parallel with another latent city that we do not yet see, while the city we do see continues to be continuously transformed. As noted by French essayist Georges Didi-Huberman, “If the atlas appears as an incessant work of re-composing the world, it is first of all because the world itself does not cease to undergo decomposition upon decomposition.”




A caixa de sombras de Felipe Russo
Abilio Guerra

9 de julho a 16 de outubro de 2016 

A objetiva da máquina fotográfica aparta e reúne dois mundos: o do observador e o do objeto observado. Diante da multiplicidade quase infinita de coisas animadas e inanimadas, que na sua combinação conformam as paisagens possíveis, o olhar estético enquadra algo que já existe, mas que passa a existir de outra maneira. Algo como uma bexiga de borracha inerte que ganha graça ao ser inflada com ar. Compreender a imagem fotográfica é uma busca do sopro que une os dois mundos.

O primeiro olhar voltado para os registros apresentados na exposição Garagem Automática se depara com empenas cujo reboco parcial revela em suas faces externas vigas e pilares de concreto preenchidos com tijolos e blocos. Edifícios incompletos ou arruinados, sem virtudes formais e técnicas. E a penumbra densa e fria dos interiores vazios sugere uma hecatombe em que foi varrida a vida humana.

O incômodo nos leva ao segundo olhar, agora atento aos detalhes, aos vestígios, examinando sinais que denunciem significados ocultos. A série nos traz o conforto de conhecer para além do mundo gélido descortinado pela foto isolada. Luzes artificiais iluminam planos que brotam do breu; cabos de aço, correntes, roldanas e polias em bom estado de manutenção sugerem o movimento monocórdico do elevador, o passar lento do automóvel, o vaivém atribulado do manobrista; painel com luzes vermelhas manifesta uma operação em curso.

Felipe Russo, fotógrafo atípico, é biólogo que trabalha como pesquisador durante os anos 2000. Como auxiliar de pesquisa no Instituto de Biologia da USP, produz documentos fotográficos, além de separar e catalogar material coletado nas saídas de campo. Hábitos arraigados em sua sensibilidade: observar paciencioso fenômenos invisíveis aos olhos despreparados, classificar uma espécie a partir de semelhanças entre espécimes diferentes, entender um ecossistema como universo onde interagem meios biótico e abiótico.

Na sua construção estética se verificam as marcas indeléveis da formação científica do fotógrafo quando jovem. Ao invés do virtuosismo no uso de recursos de sua arte –enquadramento, iluminação etc. –, verifica-se uma calma busca do extraordinário e do estranho na reiteração do quase igual. Graças à coleção de “espécimes” que habitam aquela enorme câmera obscura, obtém uma garagem anônima, prototípica.

O robô automatizado que manipula automóveis – “a máquina que guarda máquinas”, na definição do autor – é registrado por câmera de grande formato, com negativos coloridos de 10 x 12 cm, de longa exposição. A excelente definição resultante permite grandes ampliações, onde se vê a estampa de fumaça de escapamento na parede, a marca de pneus no chão, a fuligem e a poeira grudadas nos objetos.

A Garagem Automática de Felipe Russo é um registro do tempo estendido, subjetivo, decalcado nos artefatos do homem.

Felipe Russo’s Box of Shadows
Abilio Guerra

The lens of the photographic camera both separates and unites two worlds: that of the observer and that of the object observed. In face of the nearly infinite multiplicity of animate and inanimate things, which in combination form the possible landscapes, the aesthetic gaze frames something that already exists, but which begins to exist in another way. Something like an inert rubber balloon that takes on an entirely new graceful aspect when inflated with air. Understanding the photographic image is a search for the breath of air that unites the two worlds.

A first look at the shots presented at the exhibition Garagem Automática [Automatic Garage] will see side walls of buildings with pockmarked surfaces revealing parts of their internal structures of concrete columns and beams, interspersed with bricks and cement blocks. Incomplete or dilapidated buildings without formal and technical virtues. And the dense and cold shadow of the empty spaces within them suggests a slaughter that swept away all the human life.

Our uneasiness compels us to take another look, now attentive to the details and traces, examining signs that reveal hidden meanings. The series allows us the comfort of gaining this knowledge while remaining outside the gelid world unveiled by the isolated photo. Artificial lights illuminate planes that emerge from the darkness; steel cables, chains, rollers and pulleys in a good state of repair suggest the monotonous movement of an elevator, the slow passing of an automobile, the stressful coming and going of the driver; a panel with red lights manifests an operation underway.

Felipe Russo, an atypical photographer, is a biologist who worked as a researcher during the 2000s. As a research assistant at the Biology Institute of USP, he produced photographic documents besides separating and cataloging material collected on field trips. In these activities he acquired habits that became  rooted in his sensibility: patiently observing phenomena which are invisible to unprepared eyes, classifying a species based on resemblances between different specimens, understanding an ecosystem as a universe where biotic and abiotic environments interact.

In his aesthetic construction we see the indelible marks of the scientific training the photographer underwent in his youth. Instead of the virtuosity of the use of the resources of his art – framing, lighting, etc. – we see a calm search for the extraordinary and for the strange in the reiteration of the nearly identical. Thanks to the collection of “specimens” that inhabit that enormous camera obscura, an anonymous, prototypical garage is obtained.

The automated robot that manipulates automobiles – “the machine that stores machines,” in the definition of the author – is recorded by a large-format camera, with 10 x 12 cm colored long-exposure negatives. The excellent definition resulting from this procedure allows for very large-format enlargements, where one sees the imprint of muffler smoke on the wall, the mark of tires on the floor, the grime and dust coating the objects.
Felipe Russo’s Garagem Automática is a record of an extended, subjective time which leaves its traces in the artifacts of man.




Exposição FOTOiMAGENS
9 de abril a 12 de julho de 2016

Talvez o nome escolhido para esta mostra, a mais abrangente de Ana Vitória Mussi até o presente momento, seja a primeira significação desta poética transversal. Poética esta que atualiza a passagem e a comunhão da fotografia com a imagem (e vice-versa), que lhe confere o estatuto de obra híbrida, cuja exploração linguística reflete outra corporeização visual: dá-se outro lugar para as imagens. 
Estamos, assim, diante de um trabalho pioneiro, em vários sentidos, já que o que se vê é uma fotografia além da fotografia, que sabe estar em ambos os lados, o da história e o da ontologia em movimento. Se antes seus valores modernos primavam pela verossimilhança da verdade ou do momento instantâneo, agora se reconhece muito mais a complexidade do real, a sua multifacetada presença e ficção, e até mesmo a idiossincrasia mutante de seus objetos estéticos. A consideração da imagem como criação e signo não descansa mais no exclusivo registro (a pós-produção visual aumentou muito seu papel) nem em uma apresentação bidimensional, pois se reconhece o valor da construção imagética, além do consabido objetivo do aparelho... Reconhece-se, por conseguinte, seu ser de fotografia ampliada, transversa, que ultrapassa territórios comuns do gênero por meio da intensa intervenção nas imagens, da revalorização de todos os elementos materiais da fotografia, do metamórfico local de ação visual, da mutação de suas superfícies e espaços, da dinâmica de trabalho com imagens de segunda geração ou da comunhão de imagens em movimento e fixas, entre outros aspectos cognitivos que mudam nossa percepção. Desde muito cedo (1968), a fotógrafa e artista – nessa ordem – realiza imagens mistas, paradoxais, nas quais a fotografia é o ponto de partida, mas não exclusivamente de destino, não mantendo, assim, o estado da aura no mesmo lugar em torno das fotos. 

Tudo visa à transformação de nossa percepção via experimentação fotográfica (o que desloca certo mitificado divisor de águas entre fotógrafos-artistas e artistas-fotógrafos). Surpreende, então, a multiplicidade de experiências inscritas em FOTOiMAGENS e sua inquietante mudança de modus operandi e razão poética, a alteridade imagética em curso (esse outro da imagem em jogo) que aí vemos. A “impureza” visual de tantas aproximações – tão alheias ao cânone – ilustra a falta de ensimesmamento artístico pelo número de suportes, dispositivos e objetos de visão que são trazidos à tona. Sair da imagem domesticada, do corpus burocrático de certos hábitos visuais clichês, leva a uma contínua exploração e itinerância. Não há um horizonte único, mas uma alternada sucessão de miradas, de índole e tipologia diversas: um sinuoso roteiro de negativos, kodalites, slides, cópias desnaturalizadas, séries de técnica mista, instalações, apropriações ou então uma fotografia objetual que também se deixa permear pela arquitetura, ou ainda é acionada em uma simbiose foto-cinema, estática e movimento.  

Entre uma realidade deflacionada (à baixa) e uma sociedade estetizada (à alta), FOTOiMAGENS habita certa ressurreição visual, devolve a encarnação mágica nas imagens, como aludia Vilém Flusser (inclusive em imaginários saturados como o do esporte), e religa uma instigante condição limiar da fotografia: sua capacidade de estar entre-mundos (ser marca, espelho, sombra e visão), colocando, de novo, o trabalho fotográfico em uma viva experiência de limites, pois, como escritura analógica e digital sui generis, ela se faz mais valiosa como poiesis (invenção mais de linguagem do que de discurso), como convite para nossa animação simbólica das imagens, para restabelecer a potência de seu lugar cultural, e, ainda, como conjuro do inefável. 

Adolfo Montejo Navas 


ESPORTE ATRAVÉS 

Não só o esporte, um dos imaginários mais revisitados da contemporaneidade, mas todo o projeto artístico de Ana Vitória Mussi baseia-se nesse “através”, em uma operação perceptiva de atravessamento do olhar e da distância. A atenção dada ao universo contingente e ao mesmo tempo ritualístico de numerosas disciplinas esportivas (futebol, boxe, esgrima, natação, patinação, ginástica...), relembra as vicissitudes hercúleas de qualquer atividade, o desafio da condição humana. De fato, é o élan vital desses esforços, sua simbologia mítica para um corpo (apolíneo e dionisíaco ao mesmo tempo) o que nos atrai no olhar da artista. E isso independente da mercadotécnica ou espetacularização da época globalizada, apesar de obter a maioria das imagens da TV, de ver através, nas frestas de outro meio visual, oferecendo imagens tão híbridas e dinâmicas em sua representação (suporte) quanto em sua visão (conceito). Na mesma sala introdutória desta biografia artística, encontra-se Ossos, série emblemática cuja dramaticidade não se esconde, e que explicita muito cedo o caminho de interferência visual da artista sobre ocorpus da fotografia, seu grau de pós-produção. Aí também se constata o uso permanente do preto e branco (suas luzes e sombras, certamente), tanto como um princípio de realidade (gravidade) como de desejo (pulsão). 

ARQUITETURA DA MEMÓRIA E MEMÓRIA DA ARQUITETURA 

Arquitetura e memória são duas linhas que convergem na obra de Ana Vitória Mussi, atingindo experiência espacial e superpondo-se camaleonicamente. Neste intervalo imagético (este entre tempo e espaço que faz sua própria troca, seu próprio câmbio de signo e influência) inscreve-se tanto a paisagem exterior quanto a interior, uma configuração tão reconstrutiva (geometrias) quanto de escrita serial da luz (mutações) – seja na trama de Olhando a paisagem ou em Fuit Huic, o que evidencia outro sentimento do tempo-espaço, e vice-versa.  Quanto à presença humana, tão frequentemente elíptica, anônima, coletiva, visível apenas por meio da notória fragmentação de nosso tempo, ela ganha densidade, dramaticidade quando aparece, o que está em sintonia com a complexidade do real, da vida em todas suas instâncias. 
Ao lado, o paradoxo visual do díptico Autorretrato de areia (qual não é?) eleva a condição humana de qualquer pessoa a uma sensualidade metafórica, com a sua correspondente pele do tempo. A imagem do ser humano nesta poética, aliás, é tida como aparição, fulguração – daí o fato de que nossa figuração social tenha tanta onipresença quanto nossa ausência como sujeitos. O lugar das imagens, o espaço, recebe aqui múltiplas formas e uma grande dilatação visual, como é possível descobrir através deste percurso. 

UM NOVO LUGAR DAS IMAGENS 

A presença que os objetos têm na fotografia tridimensional deAna Vitória Mussi, seja em regime escultórico ou instalação, amplia os caminhos da percepção com novas cesuras da representação e favorece outra dialética entre a fotografia e a imagem. Trata-se aí de um mergulho físico diferente, em uma visualidade que já exige  de nós certa implicação sinestésica, e não apenas sua contemplação. Neste sentido, o uso de diversos materiais nunca diz respeito apenas ao suporte, mas, sobretudo, à transformação corporal da fotografia, à instauração de um novo lugar das imagens, de seu acontecer: é o que podemos observar em Por um fio ou, no terraço, emMergulho na imagem. Além disso, outros sendeiros fulcrais desta obra passam pela sincronia entre imagens fixas e em movimento, pela instigante aproximação com os fotogramas, a relação às avessas entre fotografia e cinema (cinema virando fotografia, videoinstalação), ou a  fotografia móbil, sequencial apropriada da TV. Em suma, favorece-se aí um continuumimagético que tem um lado abissal como linguagem cruzada deentre-imagens: é o que acontece em Bang, um filme-colagem sobre a violência e o olhar; em Box na TV, exibido no térreo; em Heteronímia, especulação visual que escaneia um imaginário rarefeito de nossa época, deslocado, em crise, e nopatchwork abre-alas Atalhos e desvios – todos frescos contemporâneos em que (se) coabitam vários tempos e espaços críticos.  

UM GRAU ZERO DA FOTOGRAFIA 

Nada mais sintomático que se encontrar aqui com negativos,kodalites, slides, rolos de filmes como objetos estéticos, proposta com nome próprio de uma fotografia que olha tanto para fora quanto para dentro: a imagem exterior que sonhamos como realidade e sua semente  matérica feita resultado. É como se o final da imagem fotográfica estivesse contida em seu começo, deixando, assim, os a priori e aposteriori confundidos, para manter nossa necessária liberdade imaginativa, fora da domesticação. A vida ignota que contém esta produção parece regressar a um grau zero da fotografia, a matrizes físicas, inaugurais, de pré-logos, pré-linguagem... Ou ao bastidor e índice de tudo o que é marca, rastro, sinal. Assim, o peso dos negativos como signos expositivos – e positivos – é outra ironia formal, outra impureza estética desta poética que, em algumas obras-memória de celebridades, resulta em um raro poder político, dado seu viés des-construtivo (ainda mais por ironizar estamentos sociais que operam com o privilégio como natureza). A tua imagem ou Por um fio parecem dizer,Sotto voce: finis gloriae mundi – legenda de certa pintura barroca –, pois, como naturezas-mortas metonímicas, mostram o negativo (oxidação) de um positivo (glamour) decorrido, nas quais é reconhecida a melancolia, algo sempre próprio da fotografia como arte elegíaca, crítica e fiel com nosso desassossego e memento mori.  

FANTASMÁTICA 

O ato de fotografar (de retratar, mais concretamente) entre duas mesas-placas serigráficas faz parte de uma ação histórica de Ana Vitória Mussi, que está presente em FOTOiMAGENS, e que visa a integrar e vincular fotografia, performance e gravura, sem contraindicações. Como obra in situ, a artista levará a termo esta ação em dois momentos da mostra: na inauguração (em 09 de abril) e durante o lançamento do livro de artista (em 29 de abril), expondo seus resultados nos dias seguintes, na parede exterior do local, como se fosse uma galeria de retratos pública, cuja aura fantasmática faz deRecortes uma obra sui generis e até mesmo inquietante. Durante esse intervalo operativo de tempo, a sala viabilizará um vídeo que registra a atividade de Mussi e dos momentos citados. De novo, e como na sala contígua, mas de outro modo, a materialidade física da imagem, sua aura evanescente e a rarefação da representação (seu grau de enigma) sobrepujam qualquer aproximação fidedigna, naïf ou meramente transparente. A sombra e o opaco da visualidade geram, aqui, certa ironia do positivismo realista, abrigam uma reserva de sentido e de mistério – a salvo de qualquer mediatização visual.




Exposição Paisagens oficiais 
9 de abril a 12 de julho de 2016 

A cidade não é apenas um espaço físico mas uma forja de relações. É o centro de um tempo onde se fabricam e refabricam as identidades próprias.

Mia Couto1



O Museu da Cidade de São Paulo está em processo de retomada de sua vocação de instituição promotora da reflexão e do debate sobre a própria cidade. Para tanto, tem buscado colocar em relevo os acervos móveis e imóveis sob sua guarda, além de dialogar com referências patrimoniais e problemáticas urbanas. 
Como sede histórica e núcleo central do MCSP, o Solar da Marquesa de Santos deve consolidar-se como espaço para exposições e ações educativo-culturais que tenham como objeto a urbis e as identidades paulistanas, considerando sua complexidade e diversidade, seu passado e seu presente. 
Inspirados pelo tema “Museus e Paisagens Culturais”, proposto pelo Conselho Internacional de Museus - ICOM e acolhido pelo Instituto Brasileiro de Museus – IBRAM para as comemorações do Dia internacional de Museus, os curadores Henrique Siqueira e Mônica Caldiron propõem a apreciação e a reflexão sobre as transformações da paisagem cultural paulistana e a estética (pouco protocolar) dos registros oficiais da Seção de Iconografia do Departamento de Cultura, entre o final da década de 1930 e início dos anos 1950. 
A exposição “Paisagens Oficiais” pretende proporcionar aos habitantes e visitantes dessa megacidade ambiente e oportunidade para a meditação e, possivelmente, um estímulo à interpretação, conscientização e apropriação de São Paulo. 

1- COUTO, Mia. Pensatempos – Textos de opinião. 2ed. Lisboa: Caminho, 2005. 


Beatriz Cavalcanti de Arruda 
Diretora



Paisagens oficiais  

A Coleção de Fotografia Iconográfica do Museu da Cidade de São Paulo ilustra a extraordinária transformação urbana da capital. Iniciada com poucas centenas de imagens a pedido do prefeito Washington Luís Pereira de Sousa, o pequeno acervo foi adquirido na gestão de Fábio da Silva Prado e ampliado nas décadas seguintes com a doação das fototipias de Guilherme Gaensly e dos arquivos de Ivo Justino e Aristodemo Becherini. 


Uma parte significativa desta coleção está relacionada a Benedito Junqueira Duarte. Tendo ingressado na Seção de Iconografia, onde trabalhou até a aposentadoria, em 1964, Benedito realizou as primeiras ações de preservação, redigiu a preciosa identificação das imagens e foi responsável por sua catalogação. Fotografou as atividades do Departamento de Cultura no período em que este foi dirigido por Mário de Andrade, registrando os parques infantis, as bibliotecas Monteiro Lobato, Mário de Andrade e Circulante, a Discoteca Municipal, as manifestações populares, os cortiços e uma boa parte dos prédios históricos que ainda existiam. Dentre as muitas atividades que desenvolveu, é lembrado, no entanto, por seu amor ao seu ofício e por ter iniciado o serviço de documentação fotográfica na prefeitura de São Paulo, certamente sua maior contribuição. 


A abertura desta perspectiva e o pensamento moderno irradiado na fotografia paulista daquele momento possivelmente estimularam a formação da equipe que se associou a Benedito Junqueira nos anos seguintes, entre eles Gabriel Zellaui, Sebastião de Assis Ferreira e Edson Pacheco Aquino, responsáveis pelo registro da implantação do plano de obras viárias de Prestes Maia. Nesta extensa série, conhecida por seu caráter “oficial” devido à subordinação à agenda de obras do prefeito, e que possuem inestimável valor histórico, estão guardadas imagens que impressionam pela qualidade estética. Nos exemplos aqui reunidos, os fotógrafos parecem interromper o burocrático exercício da pauta cotidiana para capturar uma São Paulo inusitada, em processo de verticalização, cortada por artérias, fluída pelo trabalho, por automóveis, generosos espaços de convivência e ângulos desafiadores. Não se nota digressão nestas imagens. O passado colonial e os indicadores sociais são negados, como atestaram as imagens que o próprio Duarte fez nos anos anteriores, nas quais destacou a figura humana como elemento primordial da composição. 


Esta coleção, que hoje atinge 74 mil documentos visuais, testemunha a constante mutação de nossa cidade, e também faz perceber a diversidade de possibilidades, públicas e privadas, de construção do olhar fotográfico nos últimos 156 anos. 


Henrique Siqueira e Monica Caldiron 


Exposição de Nair Benedicto

7 de novembro de 2015 a 20 de março de 2016


Um verso para o tempo interminável


Diógenes Moura, curador


Na sala da sua casa, no bairro da Vila Mariana, em São Paulo, Nair Benedicto me diz que nunca fez uma fotografia para ser a mais importante de todas as imagens: “Quero que seja a melhor representação do que estou vendo. Se você se liberta de tudo, a fotografia acontece. Determinadas fotos me dão tanta querência que não me preocupo com o ‘estilo’ em que ela poderá ser definida”. Em torno da mesa redonda onde estamos há o silêncio da sala, os livros, os pequenos bancos indígenas, os móveis de família, os retratos dos filhos, netos e antepassados, os vasos com galhos de urucum recolhidos no jardim.

Foi dali, próximo à janela, que foram feitas as duas últimas imagens que estão em Por Debaixo do Pano: uma cena impregnada de cinza, paulistana entre fuligem e capitalismo, com quase nenhum reflexo do janelão vazado por onde se vê o lado de fora da rua invertido, os prédios de cabeça para baixo. A fotografia foi pensada para finalizar a série sobre a ditadura militar. Foi daquela forma, presa ao pau de arara, que Nair Benedicto foi torturada, em 1969. Lá, sem nenhuma chance, ela enxergava o mundo ao redor virado ao contrário. Portanto, a série de imagens invertidas foi concebida para não esquecermos que cicatrizes não se transferem e que depois desse período de ‘guerra’ pelo qual passamos tivemos que espremer a liberdade para não sermos transformados em coisa pela sombra monstruosa dos que nos perseguiram durante 21 anos seguidos. Livre, Nair Benedicto escreveu sua história com as próprias mãos.

Por isso ela sussurra em cada uma das suas imagens, como um segredo guardado dentro do outro. Quanto mais olhamos, mais descobrimos. Nada em seu espaço visual fica parado no tempo. Parado na memória, sim. Como deve ser a verdadeira fotografia. O mundo está à beira, quase sem saída, impregnado por uma falsa moral digital, pífia, sinistra. Ultrapassar poderá ser um verbo futurista. Assim é Por Debaixo do Pano. O pensamento de uma artista diante dos seus dias: a mulher que se põe (despida) diante da nossa avassaladora existência humana. Esse, o contorno estupefato e ao mesmo tempo aveludado que conduz sua criação pelo menos nas últimas cinco décadas. “Trabalho com o que acho importante, com o que quero. Isso é um privilégio, estar diante do mundo e deixar que ele interfira no meu olhar. É essa sensação que provoca em mim o desejo de compartilhar o que vi e vivi. Atualmente as pessoas definem seus trabalhos a partir de resultados financeiros. Eu pude usar a minha paixão para traçar o meu destino, político, social”, disse-me outra vez com o seu jeito ciber-caboclo-pan-amoroso.

Nada em Por debaixo do Pano vaza para limites exteriores. Um título que estatela diante de nós a realidade falsamente camuflada e desnuda da nossa vida cotidiana rachada ao meio, onde a mentira e as palavras dissimuladas precisam ser incendiadas em cada amanhecer. Sabendo disso Nair Benedicto revê as famílias; as tribos indígenas; as manifestações populares; o grito dos movimentos nas ruas/o corpo/o gesto/o músculo da vida cotidiana em chamas; a coragem do outro no gênero possível, real, múltiplo e do próximo gênero que ainda está em construção. Olha adiante como olha para si mesma. Escreve numa exposição o lhe perturba nos tempos atuais. Por tudo isso Por Debaixo do Pano não é apenas fotografia: é também navalha na carne, a noite dos tempos, o corpo líquido, o músculo em chamas, um poema nascendo, o cinema transcendental, a garganta das coisas.

 

A verse for interminable time

In the room of her house, in the neighborhood of Vila Mariana, in São Paulo, Nair Benedicto told me that she never took a photograph for it be the most important image of all: “I want it to be the best representation of what I am seeing. If you free yourself from everything, the photograph happens. Determined photos overwhelm give me so that I am not worried about the ‘style’ in which it can be defined.” Surrounding the round table we are seated at is the silence of the room, the books, the small indigenous benches, the family furniture, the portraits of children, grandchildren, and ancestors, vases with urucum branches collected in the garden.

It was there, near the window, where the last two images in Por Debaixo do Pano were taken: a scene impregnated with grey, São Paulo between soot and capitalism, with almost no reflection in the large clear widow in which you can see the road outside inverted, the buildings upside down. The photograph was intended to finalize the series about the military dictatorship. It was in that way, tied to the pau de arara, that Nair Benedicto was tortured in 1969. There, without any hope, she saw the world around her turned upside down. Thus, the series of inverted images was conceived so that we will not forget that scars are not transferred and that after this period of ‘war’ which we went through we had to curb liberty in order not to be transformed into a thing by the monstrous shadow of what pursued us for the following 21 years. Free, Nair Benedicto wrote her history with her own hands.

For this reason she whispers in each of her images, like a secret kept within the other. The more we look, the more we discover. Nothing in her visual space is frozen in time. Frozen in memory, yes. As real photography should be. The world is on the brink, with almost no way out, impregnated by a falsa digital morality, despicable and sinister. Overtaking can be a futurist verb. Por Debaixo do Pano is like this. The thought of an artist facing what is going one: the woman who places herself (naked) in front of our overwhelming human existence. This, the astonished, and at the same time mellow, outline which had led her creativity for the last five decades at least. “I work with what I think is important, with what I want. This is a privilege, to be before the world and not let it interfere with my perspective. It is this sensation which provokes in me the desire to share what I have seen and experienced. Currently people define their work on the basis of financial results. I have been able to use my passion to trace my political and social destiny,” she told me on another occasion, in her cyber-Caboclo-pan-amorous manner.

Nothing in Por Debaixo do Pano escapes the exterior limits. A title which places before us the falsely camouflaged reality and strips bare our daily life torn in half, where the lie and dissimulated words need to be burned at every sunrise. Knowing this Nair Benedicto revisits families; indigenous tribes; popular events; the shouts of movements on the streets/the body/the gesture/the muscle of daily life in flames; the courage of the other in the possible, real, multiple genre and the next genre which is still being built. Looking ahead as well as looking to oneself. Writing to expose what disturbs her in the current day. For all of this Por Debaixo do Pano is not only photography: it is a razor blade cutting into the flesh, the night of time, the liquid body, the burning muscle, a poem being born, transcendental cinema, the throat of things.

 

Ventos na superfície do oceano

Nair Benedicto

O que eu sempre quis na vida foi ser protagonista. Nasci em São Paulo. Meus primeiros 10 anos vivi no bairro da Liberdade. Os vizinhos eram descendentes de italianos como eu, ou espanhóis, negros, japoneses, árabes. Meu primeiro namorado foram dois irmãos japoneses. Sem drama! Num dos primeiros boletins de avaliação da ótima escola pública que eu frequentava, tentei transformar minha nota 3 em 8. Minha mãe foi chamada. Não fui punida pela escola, nem pela minha mãe (já viúva), mas percebi que estudar e aprender eram oportunidades que não deviam ser desperdiçadas.

Adolescente, arrumei correspondentes em vários países da América Latina, Europa e Ásia. Alguns deles conheci pessoalmente. Infelizmente, a polícia dos anos 1960, quando invadiu minha casa, apreendeu fotos e cartas desse período bonito da minha vida, como comprovantes de minha subversão. Formei-me em Rádio e Televisão cursando a FAAP e a USP. A ditadura dos anos 1970 tornou impossível o exercício da profissão nos canais normais. Tornei-me fotógrafa!

Tenho nojo ao ver pessoas empunhando bandeiras nas ruas e nas redes sociais pela volta dos militares. Mas é fácil de entender: 30 anos de ditadura, matança generalizada de lideranças rurais, operárias e estudantis. Exílio de cabeças pensantes como Paulo Freire, Oscar Niemeyer, Celso Furtado, Darcy Ribeiro e outros. Cargas tributárias sobre consumo e produção. Uma elite vivendo sem trabalhar, apenas administrando heranças e o próprio capital, habituada a tratar o bem público como se fosse privado, socializando dívidas e privatizando ganhos. A Constituinte de 1988 não chegou sequer a arranhar alguns problemas básicos: revisão das concessões dos meios de comunicação, reforma política, reforma agrária, imposto sobre fortunas. A Nova República nasceu morta, aglutinando os remanescentes da Ditadura. Deu no que deu!

Sou contra a corrupção. Mas ela precisa ser atacada sem cinismo nem hipocrisia. Corrupção é corrupção! Corrupto precisa deixar de ser apenas o OUTRO: o outro indivíduo, o outro partido, o outro time. Mensalão, trensalão, Banestado, Metrô de São Paulo, Vale do Rio Doce, compra de votos, sonegação de declaração do Imposto de Renda, subornos de guardas. A corrupção acaba com a noção do bem comum. Acaba com a política. Além da crise econômica e social, vivemos um momento de falta de representatividade. Na periferia, entre outras coisas aprendi que não existe bala perdida. A bala é artefato feito para matar. Não temos lei da pena máxima na legislação, mas ela existe na prática. A polícia em São Paulo e no país todo está matando: índios, líderes rurais, negros, mulatos e pobres de qualquer cor.

Apesar de tudo, as pessoas da periferia estão criando: música, poesia, grafites, literatura, contos. Votar de vez em quando não basta. Estão surgindo novos protagonistas, e isso incomoda demais nossa elite do dinheiro, dos filhos de sicrano, dos netos de beltrano. Essa elite quer vassalos, não interlocutores. Num dos audiovisuais que produzi nos anos 1980, sobre propriedade de terra e moradia, uma mulher, liderança dos favelados, terminou sua fala com uma frase que nunca esqueci: “Neste período todo de nossa luta, descobri que sou gente! E isto não tem volta!”.

Precisamos repensar os modos de vida. A sobrevivência exige muito mais que esse empedernido ser humano que se vê como o centro do Universo. Precisamos uns dos outros. Precisamos exercitar a tolerância que tanto nos está fazendo falta neste mundo impregnado de ódio, em que fomos atingidos pela mídia em geral. Tolerância não significa apenas o esforço de aguentar o diferente de nós. A diferença nos enriquece como seres humanos. Aprender a ser gente! Ir além do Homem. É em nome desse valor que devemos nosso respeito à terra, à água, aos animais, às arvores, às flores e a todos os viventes deste planeta onde vivemos. Já perdemos tempo demais. Mãos à obra!

 

Winds on the surface of the ocean

What I always wanted in life was to be the protagonist. I was born in São Paulo. For my first ten years I lived in the neighborhood of Liberdade. My neighbors were descendants of Italians, like me, or Spanish, blacks, Japanese, Arabs. My first boyfriend was actually two Japanese brothers. No fuss! In one of my first school report cards from the excellent public school I went to, I tried to change my mark from a three to an eight. My mother was called. I was not punished by the school, nor by mother (already a widow), but I realized that studying and learning were opportunities which should not be wasted.

As an adolescent, I found correspondents in various countries in Latin America, Europe, and Asia. I met some of them personally. Unfortunately, in the 1960s when the police invaded my house, they confiscated photos and letters from this beautiful period of my life as proof of my subversion. I graduated in Radio and Television, studying in FAAP and USP. The 1970s dictatorship made the exercise of this profession impossible via the normal channels, so I became a photographer!

Seeing people waving banners in the streets and the social networks calling for the return of the military makes me sick. But it is easy to understand: 30 years of dictatorship, the generalized killing of rural, worker, and student leaders. The exiling of thinkers such as Paulo Freire, Oscar Niemeyer, Celso Furtado, Darcy Ribeiro, and others. Tax burdens on consumption and production. An elite living without working, only administering inheritances and their own capital, used to treating public goods as if they were private, socializing debts and privatizing profits. The 1988 Constituent Assembly did not even make a dint in some basic problems: revision of concessions of the means of communication, political reform, agrarian reform, wealth tax. The New Republic was born dead, bringing together the remnants of the Dictatorship. Look at what happened!

I am against corruption. But it needs to be attacked without cynicism or hypocrisy. Corruption is corruption! The corrupt need to stop being only the OTHER: the other individual, the other party, the other team. Mensalão, trensalão, Banestado, Metrô de São Paulo, Vale do Rio Doce, purchase of votes, evading tax in income tax declarations, bribing police. Corruption corrodes the notion of common good. It destroys politics. In addition to the social and economic crisis, we are experiencing a moment of lack of representativeness. On the periphery another thing I learnt was that there are no stray bullets. A bullet is something made to kill. In our legislation there is no capital punishment, but it exists in practice. The police in São Paulo and all over the country are killing: Indians, rural leaders, blacks, mulattos, and the poor of any color.

Despite everything, the people from the periphery are creating: music, poetry, graffiti, literature, stories. Voting once in a while is not enough. New protagonists are emerging, and this really bothers our moneyed elite, the sons of so-and-so, the grandchildren of someone. This elite wants vassals, not interlocutors. In one of the audiovisuals I produced in the 1980s, about land ownership and housing, a women, a leader of the favelados, ended her talk with a phrase I have never forgotten: “In this time of our struggle, I discovered that I am someone! And there is no turning back!”

We need to rethink our way of life. Survival demands much more than this callous human being who sees himself as the center of the universe. We need each other. We need to exercise the tolerance which is so missing from this world impregnated with hated, in which we have been so affected by the media in general. Tolerance does not only mean the effort of putting up with what is different from us. The difference which enriches us as human beings. Learn to be people! Go beyond mankind. It is in the name of this value that we owe respect to the land, the water, the animals, the trees, the flowers, and to all the beings on this planet where we live. We have wasted too much time. Get to work!




Exposição de Daniel Malva
7 de novembro de 2015 a 20 de março de 2016

Há cerca de 200 anos, pelas ruas que cercam o Solar da Marquesa de Santos, trilharam caminho John Mawe (1807), Gustavo Beyer (1813), Martius e Spix (1817) e Saint-Hilaire (1818), entre outros viajantes e naturalistas que buscavam informações para suprir a catalogação do mundo que se desenvolvia na Europa. 

Nas fotografias de Daniel Malva vemos algumas espécies exóticas e outras encontradas na fauna brasileira, que foram localizadas em coleções de história natural, exemplares que auxiliam o reconhecimento do elo com o pensamento científico do passado e sua tentativa de classificação das formas vivas. Entretanto, contradizendo as práticas descritivas – e da fotografia documental –, estas imagens surpreendem pela opacidade que impede a leitura de seus detalhes. Realizada entre 2008 e 2014, Museu de História Natural foi integralmente captada com uma lente desenvolvida para a série, sendo o software da câmera digital reprogramado. Juntas, essas alterações criaram imagens embaçadas, nas quais a identificação do objeto é apenas sugerida. O resultado alude ao olhar contemporâneo que, frente a tantas informações, refuta a leitura integral do mundo. 

Em OJardim, série exposta ao público pela primeira vez, Malva utilizou filme de grande formato e retomou o uso do equipamento analógico. Entretanto, a reconciliação com o foco, resultado de outra lente construída pelo artista, subordina-se ao confronto com a morte, representada pelas partes dissecadas do corpo humano, que o autor encontrou em laboratórios de anatomia. A visão dissonante – e por vezes amarga – reintroduz o argumento inicial sobre a passividade do olhar, mas o visitante que se envolve com a seriedade do que vê à sua frente é recompensado com imagens de grande eloquência. 

No trabalho de Daniel Malva observamos um padrão de construção que enfatiza a criação do discurso e a elaboração da metodologia de registro antecedendo a produção das imagens, estratégia que o posiciona no âmbito da narração. São imagens que se distanciam das regras clássicas da composição, que incorporam a pesquisa e a experimentação dos limites da técnica e da beleza, este múltiplo e questionável conceito. Em suas fotografias, tudo converge ao objeto, transformando-o no universo de sua expressão. Para Malva, parte dele a medida do tempo das coisas.


The measure of the time of things

About 200 years ago, the streets surrounding the Solar da Marquesa de Santos were tread by John Mawe (1807), Gustavo Beyer (1813), Martius and Spix (1817), Saint-Hilaire (1818), and other traveling artists and naturalists who sought information to supply the cataloguing of the world that was being carried out in Europe.

Daniel Malva’s photographs feature exotic species of fauna and many others which are endemic to Brazil, which were found in collections of natural history and serve as links that recall the scientific thought of the past and its attempt to classify forms of life. But unlike the descriptive practices – including those of documentary photography – these images have a surprising opacity that prevents the reading of their details. Produced between 2008 and 2014, Museu de História Natural [Museum of Natural History] was entirely captured with a lens especially developed for the series, coupled with the use of reprogrammed digital camera software – modifications that give rise to foggy images, where the object’s identity is merely suggested. The result alludes to the contemporary gaze where the surfeit of information prevents any complete reading of the world.

In OJardim [TheGarden], a series being shown here for the first time, Malva went back to the use of analog, large-format film photography. The reconciliation with the focus, resulting from another lens constructed by the artist, however, is subordinated to the confrontation with death, represented by desiccated parts of the human body that the artist found in anatomy laboratories. The dissonant and sometimes bitter view reintroduces the initial argument concerning the passiveness of the gaze, but any visitor who painstakingly observes these photographs will be rewarded with highly eloquent images.

In Daniel Malva’s work, we observe a pattern of artistic construction that emphasizes the creation of the discourse and the elaboration of a particular method of photographic capture that precedes the production of the images, a strategy that positions it in the field of narration. Far from the classic rules of composition, the resulting pictures spring from research and experimentation with the limits of both technique and beauty – that multiple and questionable concept. In his photographs, everything converges on the object, transforming it within the world of his expression. For Malva, the object is the basis for measuring the time of things.


Uma Mulher Moderna – Fotografias de Gertrudes Altschul

de 7 de março a 21 de junho de 2015 

Casa da Imagem


Gertrudes Altschul

Isabel Amado

Folhas secas, flores de plástico e de papel, confeccionadas no pequeno atelier que Gertrudes mantinha com o marido – ofício trazido junto com a bagagem da Alemanha numa forma de sobrevivência, foram de fato referências inspiradoras, que ressignificadas através da fotografia, resultam em um trabalho de profundo rigor estético, que incluiu experiências como sobreposições de negativos, construção de pequenos cenários (table top) ou simplesmente tomas diretas que não por isso deixam de buscar a perda do referente.

As folhas solarizadas, as linhas, os contornos dos objetos, indicam uma carga de respeito – carregada de expressão – à forma, e ao que está subentendido nela; o que é real? O que é palpável? Sua obra oferece liberdade total à criação. Assim como para a maioria dos fotógrafos participantes do movimento conhecido como a Escola Paulista, a fotografia não era a principal atividade de Gertrudes, mas foi através dela que a artista extrapolou os conceitos do ofício, aplicou sua experiência do artesanal e se utilizou de um dos instrumentos mais modernos da época, a câmera fotográfica, como recurso de compreensão e ferramenta de transformação do que se pensava ser um caminho para a arte.

Os urubus solarizados aqui se transformam em gaivotas, na intenção de poetizar a crueldade da sobrevivência; os galhos que despontam espremidos do lado direito da imagem mostram uma sensualidade que parece à flor da pele; a teia de aranha descortina a trama do inseto e se transforma em véu.

Rever conceitos se tornou um hábito na vida desta artista, que saiu do seu país de origem fugindo da guerra e ficou um ano sem ver o filho pequeno e que não por acaso guarda até hoje o acervo de Gertrudes.

Não era a única, não foi a primeira. Uma mulher num clube estritamente masculino, e aqui me refiro ao da fotografia como um todo, é no mínimo inusitado e abre caminho para pesquisas mais aprofundadas de quem eram essas mulheres.


Gertrudes Altschul, a reinvenção da vida 
Henrique Siqueira,

Martha Gertrud Altschul (Gertrudes Altschul, nome artístico) nasceu em 1º de janeiro de 1904, na Alemanha, filha de Karl Leszczynski e Helene Leszczynski.. Casa-se com Leon Altschul e, em 1930 nasce o único filho, Ernst Oscar Altschul.

Como tantos outros judeus que perceberam na escalada do Nazismo uma ameaça à sobrevivência, a partir de 1936 a família começou a planejar a saída da Alemanha. Seu primo Franz Purwin e o tio, Walter Leszczynski, fixam residência no Rio de Janeiro e São Paulo, encarregando-se inicialmente pelo chamamento da mãe e, posteriormente, de Gertrudes e leon. Em 1939, por intermédio da Kindertransport (organização humanitária para o transporte de crianças sem os pais) o filho Ernst é encaminhado para Londres. No mesmo ano, Gertrudes e Leon embarcam para o Rio de Janeiro, mas em uma escala em Bordeaux (França), devido à guerra entre os dois países, Leon é detido pela polícia. Após algumas semanas, Gertrudes parte sozinha para o Brasil, onde, na capital paulista, aguardou a liberação do marido e o demorado reencontro com o filho que só aconteceu em 1941.  

Em São Paulo o ideal de trabalho e desenvolvimento econômico, urbano e social foi notável entre as décadas de 1940 e 1950, culminando com a comemoração do IV Centenário de Fundação da Cidade. Na região central prosperavam sofisticados estabelecimentos comerciais, como a Casa Alemã (Galeria Paulista), Sloper e Mappin. Ainda nesta região instalaram-se as principais instituições culturais – os palácios da Cinelândia, os teatros, as livrarias, a Biblioteca Mário de Andrade e Monteiro Lobato, e o Museu de Arte de São Paulo e Museu de Arte Moderna. Neste cenário de crescimento, rapidamente o casal Altschul reiniciou a vida com a produção de flores para chapéus que eram distribuídas nas lojas de moda. 

O cotidiano da cidade e do trabalho, e as atividades da família foram registrados por Gertrudes com uma câmera 35mm e as imagens editadas em álbuns. Este momento marca sua primeira aproximação com a fotografia, relação que será intensificada quando, no início da década de 1950, passará a frequentar as reuniões do Foto Cine Clube Bandeirante - FCCB, submetendo seus trabalhos à análise crítica e avaliação dos membros, que a aceitarão com a emissão da carteira de associado em julho de 1952. Neste ano, após uma viagem à Argentina, decide melhorar sua estrutura de trabalho ao adquirir uma câmera Contax e, mais tarde, uma Roleiflex, equipamentos com os quais obterá melhor qualidade técnica na captação e mobilidade na operação, assim como instala um laboratório em casa para desenvolver pesquisa com ampliações, como o contato, a solarização e as montagens. 

Embora não tenha deixado relatos escritos sobre seu processo criativo, os arquivos de negativos permitem compreender o embate entre o plano aberto, quase sempre voltado à captação de cenas urbanas, e a restrição do plano de enquadramento, possibilitando exercitar ângulos, geometrismos e formas projetar a iluminação e as sombras, além da construção de cenas em table top. Em ambos os casos, entretanto, o formalismo característico do pensamento moderno da fotografia paulista mostra-se hegemônico. 

A produção de Gertrudes coincide com a fase de institucionalização da fotografia paulistana. Em 1947 o Museu da Arte Moderna de São Paulo organiza a exposição de Tomaz Farkas e em 1950 Geraldo de Barros expõe no Museu de Arte de São Paulo. Nos anos seguintes sua produção é reconhecida com a publicação de trabalhos no Boletim no 84 e no Anuário de 1957 do FCCB. Participa ativamente do circuito de exposições fotográficas, como o 2º Salão de Arte Fotográfica organizado pelo Foto-Cine Clube de Jaboticabal (1954, recebendo a menção honrosa), o 1º Salão Nacional de Arte Fotográfica de Santos (1955, obtendo o diploma de honra), 6º Salão de Arte organizado pela Sociedade Fluminense de Fotografia (1957, recebendo honra ao mérito) além do Salão Internacional de Arte Fotográfica na Galeria Prestes Maia e da Photokina - Exposição Internacional de Fotografia e Cinema de Colônia, Alemanha, em 1955. 

A morte prematura aos 58 anos interrompe a progressão das atividades na fotografia em 1962. Os documentos e o arquivo de negativos foram preservados por Ernst Altschul, que agora, em uma ação conjunta entre o Estúdio Madalena e o Museu da Cidade de São Paulo, sob curadoria de Isabel Amado, organizam sua primeira exposição individual na Casa da Imagem.


Travessia
Exposição de Guilherme Maranhão
7 de março a 21 de junho de 2015

Foi preciso uma longa gestação, cerca de vinte anos, para que uma película virgem se revelasse grávida justamente do tempo. Guilherme Maranhão, que nesses mesmos vinte anos desenvolveu um gosto particular por técnicas impuras, logo percebeu que ali já havia uma imagem latente. Não teve pressa em fazê-la aparecer. Mais do que se apropriar, deixou que essa imagem atravessasse sua história. 

Partiu em busca de lugares que pudessem sediar esse encontro. Com essa película em sua câmera, percorreu estradas do mesmo modo que percorre a técnica: estudando profundamente os mapas não para definir um ponto de chegada, mas para descobrir a parte do território que permanece movediça. Quanto mais domina seus instrumentos, mais se abre ao desvio. Coletou paisagens pelo caminho, algumas um tanto banais, resultado de um olhar contagiado pela mesma disponibilidade serena daquele filme esquecido.

Usar um filme vencido - assim como desmontar e remontar câmeras - não é se voltar contra a técnica. É libertá-la de seu uso dogmático, é fazer reaparecer aquilo que foi recalcado no uso dos dispositivos: uma natureza complexa da qual a ciência preferiu reter apenas as regularidades, um corpo desejante do qual muitos instrumentos um dia nasceram como extensões e, ainda, o imaginário que reinventa todas as funcionalidades e faz as engrenagens dos aparelhos operarem sempre com jogo. Menos do que iluminar o aparelho, trata-se de permitir a manifestação de suas regiões mais obscuras, aquelas que continuam trabalhando quando tudo já foi decidido e os mecanismos parecem estar em repouso. O que foi recalcado da técnica só se torna imagem como velatura.

O que significa dizer que um filme está vencido? Que ele não está apto a gerar uma imagem? Ao contrário: ele se tornou sensível demais para responder a razão que constrange os potenciais da técnica. O que se esgotam é apenas a responsabilidade e a autoridade da indústria sobre um produto: sem contrato, a matéria volta à sua condição de rebeldia. A palavra vencido esconde a arrogância de uma civilização que só consegue pensar a cultura como derrota da natureza: ou ela se comporta conforme o acordo que lhe é imposto ou é declarada obsoleta.

Com seu apreço pelas ruínas, o procedimento do artista se assemelha ao de um arqueólogo amador que usa as próprias fantasias como motor de suas descobertas. As imagens que Guilherme Maranhão capta têm sua força própria, mas funcionam também como ferramentas de escavação: são elas que trazem à superfície as marcas que a película acumulou em sua espessura. Dessa emulsão escavada em demasia, restam imagens escuras, mas muito bem ajustadas à tensão entre as paisagens e as manchas que nelas se sobrepõem. Às vezes, elas simplesmente se fundem, às vezes, uma ou outra reivindica sua prioridade.

As manchas já estavam lá, ocupando também os espaços que a futura exposição do filme definiria como bordas. Em respeito a essa preexistência, Guilherme Maranhão deixa muitas vezes que as manchas decidam o enquadramento das imagens. Em retribuição, elas emprestam suas texturas e desenhos às cenas captadas pelo artista e inventam passagens que ligam tomadas distintas. 

Encontramos aqui uma matéria que se mostrou sensível a diferentes formas de manifestação do tempo: à espera paciente de uma película que demorou a encontrar a luz, a um gesto de criação maturado na desmontagem de tantos aparelhos, a um olhar que permanece irrequieto diante de todo o saber consolidado, a esse longo processo de revelação de uma imagem que, mesmo impressa, não cessa de se construir.

Ronaldo Entler


Juca Martins
Org. Henrique Siqueira, textos de Rubens Fernandes e Fernando Morais

Livro de Juca Martins enfatiza o destaque do humano na fotografia e reúne imagens dos principais acontecimentos que marcaram o Brasil nas décadas de 1970 e 1980. A edição viabilizada pela parceria entre o Museu da Cidade de São Paulo e a Editora WMF Martins Fontes encontra-se a venda nas principais livrarias do país.

Na publicação, as imagens desenham uma cronologia dos movimentos que reivindicaram o retorno da democracia durante a ditadura militar e resgatam as pautas que marcaram o período, como o garimpo de Serra Pelada, a crise ambiental de Cubatão, a seca no nordeste e o trabalho infantil, entre outros temas.   

Integra o livro um amplo texto do crítico Rubens Fernandes Junior que contextualiza a produção de Juca Martins na história da fotografia brasileira demonstrando seu interesse pela figura humana, personagem central de sua produção e olhar fotográfico. Segundo Fernandes, “Longe da tradição do fotojornalismo praticado no Brasil nas primeiras seis décadas do século XX, (Juca Martins) tornou-se um profissional independente por opção política e buscou produzir uma fotografia que colocasse em permanente confronto o poder instituído, seja ele de qualquer origem, com os excluídos e marginalizados socialmente. Um gigante que nunca se acovardou diante dos desafios e dos imprevistos: encontramos em seu trabalho tanto o drama cotidiano quanto a poesia; tanto a crítica social que reverbera em nossa consciência, quanto o silêncio perturbador de algumas de suas imagens.”




Jaraguá
Caio Reisewitz
Casa da Imagem
25 de outubro de 2014 a 08 de março de 2015 
Terça a domingo, das 9 às 17h

 
Tema recorrente na fotografia de Caio Reisewitz, a paisagem, retratada com exatidão técnica e frequentemente apresentada em grande formato, produz um indisfarçável sentimento de distanciamento do mundo contemporâneo, em alguns casos motivado pela exuberância da natureza, cada vez mais escassa, circunstância que a torna, de certa forma, exótica. Estes cenários também expressam o posicionamento crítico em relação à atuação do homem, uma das características mais contundentes na obra do autor. 
 
Foi a pintura de um artista brasileiro ligado à representação da paisagem, Jorge Furtado de Mendonça, que estimulou a pesquisa de Reisewitz em acervos e o desenvolvimento da exposição na Casa da Imagem. Nestas fotografias, duas operações dimensionam a escala monumental de abordagem do Pico do Jaraguá. Protagonista na topografia de São Paulo (“ponta proeminente”, “protetor do vale”, na língua tupi-guarani), a elevação encontra-se seccionada, na atualidade, da mancha urbana que a cerca; um gesto proposital em circunscrevê-la no âmbito da idealização e de impelir autonomia no discurso poético. Por consequência, a imagem do Jaraguá repete-se sucessivamente, alternada em formatos diferentes e, em alguns casos, dispostos lado a lado, estratégia interpretativa que ressalta o caráter instalativo da mostra – claramente afastado de um partido documental e do esperado recorte da cena em uma única janela. 
 
Abraçado pela multiplicidade de visões, momentaneamente o observador se perde em indagações acerca de sua temporalidade, hesitação resultante do confronto com a memória geográfica, uma vez que são imagens distintas das que se avistam ao cruzar viadutos e estradas da cidade. A desconfiança é reforçada pelas cores atenuadas, típicas das pioneiras ampliações coloridas obtidas através do processo desenvolvido pela indústria Agfa. 
 
Lidar com a escala monumental e despertar a incerteza no observador também foi um recurso utilizado no Panorama da Cidade de São Paulo, emblemática fotografia de Valério Vieira, apresentada na Exposição Comemorativa do Centenário da Independência, no Rio de Janeiro, cujo retoque de pintura sobre a fotografia e a junção de cinco grandes negativos causam um estranhamento na perspectiva do bairro de Campos Elíseos.  
 
1. Jorge de Mendonça (1879-1933)
Sem título (Pico do Jaraguá), s/d
Óleo s/ tela, 0,82 x 1,31 m
Coleção de Arte da Cidade – Centro Cultural São Paulo
 
2. Valério Vieira (1862-1941)
Panorama da Cidade de São Paulo, 1922
Óleo s/ fotografia, 1,60 x 14 m
Coleção de Fotografia Iconográfica – Museu da Cidade de São Paulo


Hesitant landscape

A recurring theme in Caio Reisewitz's photography, landscape is always depicted with technical accuracy and often presented in large format, producing an unmistakable feeling of distance from the contemporary world, which, in some cases, is motivated by the exuberance of an increasingly scarce nature, a condition that makes it somewhat exotic. These scenarios also express a critical position in relation to the actions of man, one of the most striking features in the artist's works.

It was the work of a Brazilian artist, Jorge Furtado de Mendonça, connected to landscape representation, that stimulated Reisewitz's research in different collections and the development of his exhibition at Casa da Imagem. In these photographs, two operations register the monumental scale in approaching the Pico do Jaragua. Protagonist in the topography of São Paulo ("prominent tip", "protector of the Valley" in the indigenous language of Tupi-Guarani), the elevation is now sectioned from the urban sprawl that surrounds it; a deliberate gesture to circumscribe it within an idealization and propel its autonomy in poetic discourse. Consequently, the image of the Jaragua is repeated successively in different formats and, in some cases, arranged side by side; an interpretive strategy that highlights the installational character of the exhibit - clearly removed from a point of documentation and from the expected cut-out of the scence through a single window.
 
Embraced by a multiplicity of visions, the observer is momentarily lost in questions about temporality, a hesitation resulting from a confrontation with his or her geographical memory, since the images presented here differ from the ones seen when crossing bridges and roads of the city. The suspicion is reinforced by the attenuated colors, typical of the pioneer colored photo enlargements obtained through the industrial process developed by Agfa.

To deal with monumental scale and arouse the observer's uncertainty were also  resources used in Panorama da Cidade de São Paulo, the emblematic photograph by Valério Vieira presented at Exposição Comemorativa do Centenário da Independência (Exhibition in Commemoration of the Centennial of Independence), in Rio de Janeiro, of which the retouched paint, applied directly on the photograph, and the junction of five major photo negatives cause an estrangement on the perspective of the Campos Elíseos district.

1. Jorge de Mendonça (1879-1933)
Untitled (Pico do Jaraguá),  undated
Oil on canvas, 0,82 x 1,31 m
Collection of Art from the City – Centro Cultural São Paulo

2. Valério Vieira (1862-1941)
Panoramic of the city of São Paulo, 1922
Oil on photograph , 1,60 x 14 m
Collection of Iconographic Photography - Museum of the City of São Paulo


Memória Mutante
De 9 de outubro de 2014 a 1º de fevereiro de 2015
Terça a domingo, das 9 às 17h
OCA – Ibirapuera

Há pouco mais de 100 anos, São Paulo assistiu o desaparecimento da antiga igreja da Sé e todo o quarteirão em sua volta, operação que marcou o começo das grandes obras destinadas a edificação de uma cidade moderna e cosmopolita. O binômio demolir/construir, repetido no período da verticalização da área central, estendeu-se até a atualidade colocando os espaços públicos e privados em corda bamba, apagando paisagens, pensamento arquitetônico e processos de identificação com o passado. 

Com o espaço urbano em constante mutação a importância do registro fotográfico é amplificada. Buscando dimensionar as camadas de memória envolvida desde o surgimento da fotografia de rua em São Paulo, esta mostra propõe uma linearidade de leitura, juntando Militão Augusto de Azevedo (1862) e Ivo Justino (1970). Neste percurso, 210 fotografias pontuam o desaparecimento e surgimento de lugares afetivos da cidade, tais como a demolição do Belvedere Trianon, o incêndio da Estação da Luz, e a construção do Hangar do Campo de Marte. Em um núcleo especial, construções fabris e exemplos de residências atestam a capacidade transformadora paulista.

Todas as fotografias pertencem a Coleção de Fotografia Iconográfica do Museu da Cidade de São Paulo. O gesto oficial de colecionar fotografias na municipalidade se iniciou em 1938, com a aquisição do lote de negativos de vidro pertencente ao fotógrafo Aurélio Becherini, e neste momento fortemente relacionado ao ideal modernista de identificação e guarda de documentos históricos. Juntamente com a criação da Seção de Iconografia, Benedito Junqueira Duarte se encarregou da primeira catalogação das imagens adquiridas e realizou a primeira ampliação da coleção, documentando as atividades do Departamento de Cultura. Também registrou, juntamente com outros fotógrafos que integraram sua equipe, as obras públicas desenvolvidas nas duas décadas seguintes. Mais recentemente, as doações de Marília Azevedo, Araceli Becherini e Celina Monteiro trouxeram importante contribuição para esta coleção especializada na história visual da arquitetura e urbanismo da cidade, que hoje conta mais de 70 mil fotografias, acondicionadas em reserva técnica e disponíveis para consulta on line.


Curadoria: Casa da Imagem
Foto: Ivo Justino. Marginal Tietê, 1971


Sabotagem
Márcia Xavier + Letícia Ramos

Casa da Imagem
20 de setembro a 26 de outubro de 2014
Terça a domingo, das 9 às 17h

Quando Leticia Ramos e Marcia Xavier escolheram, no vasto acervo da Casa da Imagem, as fotos de destruição de uma sala de arquivos como ponto de partida para sua exposição conjunta naquela instituição, não sabiam bem do que se tratava.
Sabotagem? Vandalismo? Queima de arquivo?

As fotos, em preto e branco, traziam marcas da época e das circunstâncias em que foram tiradas. Mais do que um enfoque jornalístico, pareciam registros da ocorrência feitos pela polícia. Os grandes arquivos de metal com documentos de papel envelhecido sugeriam um cenário de meados do século passado.

Conseguiram localizar, num dos processos espalhados pelo chão do local depredado, o ano de 1944. Nas fichas da própria Casa da Imagem viram que a ocorrência se dera na sede da Prefeitura de São Paulo.

Pesquisando jornais da época (entre 1944 e 1950), encontraram, em O Estado de S. Paulo de 02/08/1947, a referência precisa na manchete: “Incêndios, apedrejamentos, correrias, tiroteios nas ruas e praças de São Paulo”, com o subtítulo: “Apedrejada e depois assaltada a sede da prefeitura na Rua Líbero Badaró”.

Viram então que se tratava de um desdobramento de manifestações de protesto contra o aumento de tarifas dos transportes coletivos naquele período. A assombrosa coincidência com o que ocorreu em São Paulo no primeiro semestre deste 2014 foi mais um dos laços de uma rede de investigações documentais e instigações artísticas, que as foi motivando.

A partir desse quebra-cabeça de fatos e fotos, Marcia e Leticia foram concebendo este ambiente-instalação, onde seis retroprojetores; um backlight composto com a luz de uma das janelas; um olho mágico; sons pré-gravados e microfones que captam ao vivo os passos de quem entra; um filme produzido e projetado em 16 mm, simulando fatos que apenas se intuem; e uma sequência de fotos estroboscópicas de um arquivo caindo no espaço compõem a densa e tensa atmosfera de sabotagem.

    O motor dessa criação não é a crônica, a fidelidade aos fatos ou a crítica social daquele contexto, mas a transmutação de vestígios e indícios em experiência sensível, no tempo presente.

    Não há uma narrativa clara, mas a apropriação de um universo de referências para criar um ambiente, a partir do qual eclodem sensações de deslumbre e medo, beleza e ameaça, vertigem e violência, ordem e desordem. Rastos, sinais, acenos de fatos ocultos. Como um filme noir sem enredo.

Diferentemente do “seja marginal/seja herói” de Hélio Oiticica, a apropriação aqui do universo criminal (ou da ruptura das normas sociais) não surge impregnada de um viés ideológico. Parece apenas uma inspiração.

A relação se faz mais por uma associação metonímica, em que as fotos não apenas passam a fazer parte da instalação (alteradas por projeções, distorções e aparelhos ópticos), mas também servem de impulso para a constituição de sua atmosfera. Manchas de caos no tecido da ordem social, motivando a alteração de nossas estruturas cognitivas preestabelecidas.

Em vez de uma mensagem, um clima. Em vez de uma narrativa, uma experiência sensorial – que envolve o visitante em som, luz, imagem, tato. Sabotagem dos sentidos.

O fato desse ambiente ser instaurado justamente numa instituição cuja finalidade é manter um acervo organizado de imagens antigas (memória materializada) estabelece um paradoxo que subverte nossa percepção do real.

Essa subversão evoca algo de sublime, ao nos jogar na vertigem de uma desordem atávica, instaurada num espaço de ordem onde estava arquivada sua fagulha.
Arnaldo Antunes


When Leticia Ramos and Marcia Xavier chose, from the vast collection of Casa da Imagem, the photographs of destruction of an archive room as a starting point for their conjoint exposition in that institution, they didn't know what those photographs were about. Sabotage? Vandalism? Destruction of evidence?

The black and white photographs carried marks of the time and circumstances in which they were taken. More than a journalistic approach, they looked like police records of the incident. The large metallic filing cabinets full of old paper documents suggested a scenery from the middle of the last century. 

They could locate, in one of the documents spread across the floor of the destroyed place, a year: 1944. In the very files of Casa da Imagem they found that the incident happened at São Paulo's City Hall's head office.

By research in newspapers of that time (from 1944 to 1950), they found, in O Estado de S. Paulo of August 2, 1947, the exact reference in the headline: “Fires, stonings, forays, shootings on the streets and squares of São Paulo”, along with: “The City Hall's head office on Líbero Badaró Street was stoned and then assaulted”.

Then, they discovered it was the aftermath of the protests against the rise of mass transit's fares at that time. The astounding coincidence with the events that took place in São Paulo in the first semester of 2014 was one more link in a net of documentary investigation and artistic instigation, which motivated the artists.

From this puzzle of facts and photographs, Marcia and Leticia started to conceive this environment-installation, where six overhead retroprojectors; a backlight with the light from one of the windows; a peephole; prerecorded sounds, and microphones that capture in real-time the steps of the ones that enter; a film produced and projected in 16 mm simulating facts that can be only intuited; and a sequence of stroboscopic pictures of a filing cabinet falling in space compose the dense and tense atmosphere of sabotage.

The motor of this creation isn't the chronicle, the fidelity to the facts, or the social criticism of that context, but the transmutation of vestiges and clues into a sensitive experience, in present time.

There is no clear narrative, but an appropriation of a universe of references in order to create an environment from which hatch sensations of dazzle and fear, beauty and menace, vertigo and violence, order and disorder. Traces, signs, nods of hidden facts. Like a film noir with no plot.

Different from Hélio Oiticica's "seja marginal/seja herói" ["be an outlaw/be a hero"], this appropriation of the criminal universe (or the breaking of social norms) doesn't come impregnated with an ideological bias. It seems only an inspiration. 
The relation is made more by a metonymic association, in which the photographs not only become part of the installation (changed by projections, distortions, and optical devices) but also serve as an impulse to the constitution of its atmosphere. Spots of chaos on the tissue of social order, motivating the changing of our preestablished cognitive structures.

Instead of a message, a mood. Instead of a narrative, a sensorial experience – which wraps the visitor in sound, light, image, touch. Sabotage of the senses.

The fact that this environment is set precisely in an institution which purpose is to keep an organized collection of old images (materialized memory) establishes a paradox that subverts our perception of real. 

This subversion evokes something sublime when it throws us in the vertigo of an atavistic disorder, set in the orderly space where its spark was archived.


24 de maio a 19 de julho de 2014
Archivo Cordero
Miguel López-Pelegrín

Esta exposição pretende dar a conhecer a relevância do trabalho de Julio Cordero realizado no início do século XX, em La Paz, capital da tão desconhecida como apaixonante Bolívia. Por esta seleção de pequenas cópias de época, pode-se dar contorno a um primeiro contato com o que, no futuro, viria a ser, sem dúvida, uma das referências essenciais para se compreender a trajetória da imagem fotográfica no continente latino-americano. O estúdio desse grande fotógrafo emerge tanto pelas suas contribuições estéticas quanto por seu conteúdo documental.

 É possível que tenha chegado o momento de redefinir de uma vez por todas a verdadeira história da fotografia latino-americana, e para isso seria preciso partir da compreensão da diversidade como elemento principal e da integração das áreas periféricas como essenciais. Como é possível que existam tantas histórias da fotografia latino-americana e que todas elas ignorem integralmente os fotógrafos bolivianos? Esta lacuna se produz não por uma ausência mas pelo desconhecimento da obra dos fotógrafos que historicamente trabalharam nas principais cidades da Bolívia. A história da fotografia latino-americana que conhecemos hoje baseia-se em poucos pilares, e não chegou a explorar a diversidade de abordagens das complexas sociedades que a acolheram ao longo dos últimos 150 anos.

 Nesta exposição – que é tão somente uma pequena e discreta aproximação ao imenso e complexo mundo de imagens que ainda permanecem escondidas no Archivo Cordero de La Paz, neste momento em fase de estudos –, abre-se uma porta para a história de um país belo e riquíssimo de valores humanos; um país que está constantemente buscando um lugar possível em um mundo competitivo e devastador, ao qual não parece pertencer. A Bolívia, como tantos outros países que estão mais além até mesmo do chamado “terceiro mundo”, que nós, a partir de nossas brilhantes cúpulas, desenhamos, abre-se para um novo século com os mesmos problemas endêmicos com os quais abandonou o anterior, mas com a esperança de encontrar um espaço em que possa viver e desenvolver-se com a dignidade que merecem todos os povos.

Por estes retratos, da firmeza e da temperança com que as pessoas posam diante da câmera de Julio Cordero, pode-se figurar um itinerário através de uma etapa da história cotidiana desse povo. Casais de namorados, famílias completas, colégios, casamentos, reuniões familiares, celebrações campestres, documentos policiais, registros militares, mas, antes de tudo, rostos que olham, muitas vezes pela primeira vez, para uma câmera que vai fixá-los para um futuro que os terá para sempre como passado.

Com essas poucas cenas fotográficas, é fácil ter uma ideia da sociedade boliviana no início do século XX e observar as contradições nas quais se encontra encravada. A Bolívia é um país no qual, de forma contrastada, convivem duas culturas radicalmente diferentes: a ocidentalizada, proveniente de sua herança europeia, com valores centrados no cristianismo e no capitalismo, e a multicultural indígena, com sua Pachamama comum, que como em nenhum outro lugar do continente americano segue tão presente e luta para não sucumbir diante da avassaladora força da economia globalizada.
Esta exposição é dedicada a todos os que fazem dos sonhos um lugar de luta de cada dia, e sobretudo aqueles que são capazes de projetar horizontes ante evidentes muros.

Julio Cordero

Julio Cordero nasceu em Pucaraní, província em meio ao altiplano boliviano, em 17 de agosto de 1879. Ainda criança, emigrou com seu pai para La Paz em busca de novas e melhores oportunidades. Em plena juventude, começa a trabalhar como ajudante no estúdio fotográfico dos peruanos irmãos Valdés, e foi ali que aprendeu, de forma autodidata, as técnicas de fotografia da época.

No ano de 1900, Cordero assumiu uma carreira independente e abriu seu próprio estúdio fotográfico, o Estúdio Cordero. Localizado no centro de La Paz, produzia todo tipo de fotografias: “retratos, grupos de família, grupos campestres, colégios, locais ferroviários, interiores de fábricas e igrejas”, como mencionavam os panfletos de propaganda na época.

O Estúdio Cordero foi um dos mais renomeados e requisitados da época, para todo tipo de eventos, e conseguiu atrair diversos setores sociais, sobretudo das classes alta e média. Segundo o seu neto, isso foi possível graças ao caráter do seu avô; tratava-se de um homem jovial, comunicativo, mestiço, que atendia pessoalmente a sua clientela, aproximando-se do cliente e oferecendo uma boa conversa para relaxá-lo, enquanto preparava a foto e encontrava, assim, “o momento oportuno”.

Cheio de iniciativa, instalou-se no estúdio de uma loja de artigos fotográficos, onde ele se anunciava como representante de companhias europeias e americanas. Desta forma, o estúdio não somente tirava belíssimas fotografias, mas também era economicamente muito rentável. É interessante saber que, graças à popularidade conseguida no estúdio, Cordero alcançou a ser “alcalde de barrio” (“prefeito do bairro”) numa das zonas mais populosas e mestiças da cidade.

De sua produção, há uma surpreendente quantidade de fotos que pode-se afirmar que foram feitas sem pedido, motivadas pelo desejo de retratar uma sociedade complexa; no arquivo, encontram-se fotos de mendigos, fotos de tipo postal com personagens indígenas, paisagens e todo tipo de eventos públicos.

Por seu vínculo com o Partido Liberal da época, Julio Cordero também tornou-se fotógrafo de vários governos e da própria polícia boliviana, e conseguiu aposentar-se com a patente de capitão. Manteve, ao mesmo tempo, excelentes relações com militares amigos e se pode ler nos panfletos a forma como se dirigia a eles: “O estabelecimento acha conveniente bajular a distinta e patriótica classe militar com uma baixa dos preços”.

Podemos imaginar um homem que, vindo de baixo, manejava muitas senhas ao mesmo tempo, sabendo com quem devia lidar, e que tinha dentro de si o motor interno de quem começou do zero, a necessidade de espaço e reconhecimento social.
O Archivo Cordero atinge um volume de milhares de peças. É impressionante que além de abarcar todos os gêneros e personagens da fotografia, parece que nenhum aspecto da vida social, cotidiana, política e econômica, passou despercebido pelo olhar do fotógrafo.


Mai, 24 to July,19.2014
CORDERO FILE
Miguel López-Pelegrín

This exhibition aims to bring to light the relevance of Don Julio Cordero’s work in the first half of the 20th century, in La Paz, capital city of the so-unknown and enchanting country of Bolivia. Through this selection of small copies from the time one is able to make first contact with what the future will be, one of the essential references for understanding the development of photography in Latin America. This great photographer's studio is of note both for his aesthetic contributions and documental content.

Perhaps now the time has come to reformulate once and for all the true history of Latin American photography and this would have to depart from an understanding of diversity as the main element and the integration of fringe areas as essential. How is it possible for there to be so many histories of Latin American photography and for all of them to entirely ignore Bolivian photographers? This gap has not come about due to absence, but due to ignorance of the works by photographers who have historically worked in the main Bolivian cities. The history of Latin American photography, which we can see here, is based on a few pillars and does not explore diverse projects of the complex societies that have housed it for the last century and a half.

This exhibition is but a small glimpse of the immense and complex world of images that are still hidden in the “Cordero File” of La Paz, which is now being studied. A door is opened to the history of a beautiful country, rich in human values, a country that is constantly seeking its place in a competitive and devastating world, to which it seems to not belong.

Bolivia, like many other countries that are more included in the third world than us, opens up to a new century with the same endemic problems with which they left the last one, but with the hope of finding a space in which they can live and develop with the dignity that all peoples deserve.

Through these portraits, the firmness and temperateness with which so many pose before Don Julio Cordero’s camera, one can realize a course through a stage of the historic everyday life of this people. Couples of lovers, complete families, schools, weddings, family meetings, country festivals, police documents, military records, but first and foremost, faces that look, in many cases for the first time, at a camera that will show a future for which they will always be the past.

With these few photographic scenes, it is easy to get an idea about Bolivian early 20th century society and observe the contradictions in which it finds itself rooted. Bolivia is a country where two radically different cultures coexist in a contrasting manner: the westernized, from their European inheritance and Christian, capitalist values, and the indigenous multicultural people with their common Pachamana, who like in no other place in the Americas follow the present and struggle not to succumb before the crushing force of the global economy.

This exhibition is dedicated to all those who make their dreams a place in the everyday struggle, and above all, to those who are capable of pushing out horizons in the face of looming walls.


Julio Cordero
Born in Pucaraní, a province in the middle of the Bolivian Plateau, on 17 August 1879. While still a child, he emigrated with his father to the city of La Paz, in search of new and better opportunities.

In his youth he began working as a helper at the photography studio of the Peruvian Valdés brothers, and there he taught himself the photography methods of the time.
In 1900, Cordero became independent and opened his own photography studio: “Estudio Cordero”.

Located in the city centre, it offered all kinds of photographs: “Portraits, family groups, country groups, schools, railways locations, interiors of factories and churches”, as his advertising pamphlets announced at the time.

Cordero managed to attract people from all social classes to his studio, from the high class and the middle class and all kinds of events. The Cordero Studio was one of the most renowned and sought after of the time. According to his grandson, this was achieved due to his grandfather’s character: he was a friendly, communicative, mestizo man who attended to all his clients face to face, getting to know them and chatting to them to relax them while they prepared for the photograph and thus finding "the right time". Full of initiatives, he established his business in the studio of a photography shop, where he heralded himself as the representative of European and American companies. So the studio not only took beautiful pictures, but was also very profitable.

It is interesting to note that thanks to the popularity he achieved in the studio, Cordero actually became “Alcalde de Barrio” (Mayor of the Neighbourhood), in one of the most populous and mestizo zones of the city. Moreover, there is surprising number of photographs that we could say were taken without request, driven by the desire to portray a complex society; the archives contain photos of beggars, postal type photos like indigenous characters, landscapes and all sorts of public events.

Through his connection with the Liberal Party at the time, Julio Cordero also became the official photographer of several governments and of the Bolivian police, and even managed to retire at the rank of Captain. He kept the same excellent relations with his friends from the military, as can be observed in the way he addresses them in his pamphlets: “The establishment has seen it convenient to honour the distinct and patriotic military class by offering a discount on the prices”

We can imagine a man who, coming from below, handled several different situations at the time, knowing with whom to engage, and who had within the inner force of one who had started from scratch, the need for space and social recognition.

The Cordero File has grown to include thousands of pieces. It is amazing that as well as covering every kind of photographic genre and characters, it does not leave any aspect of social, everyday, political and economic life without passing under the photographer's eye.


De 31 de maio a 3 de agosto de 2014

Sérgio Jorge: múltiplas trajetórias
Rubens Fernandes Junior

Desde o início, no Foto Cine Clube de Amparo, em 1952, até hoje, no Jorge’s Estúdio, muitas imagens passaram pelos olhos de Sérgio Jorge, um dos grandes mestres da fotografia brasileira. Claro, nem todas as imagens se viabilizaram fotograficamente – parte delas ficou fixada apenas em sua memória e outra parte se transformou em relevantes documentos iconográficos da história do Brasil.

Impossível conhecer alguns dos principais momentos da história da nossa fotografia e do nosso país sem passar por algumas de suas imagens, como por exemplo, o primeiro Prêmio Esso de Fotojornalismo, a moda de Denner e Clodovil, o milésimo gol de Pelé, a inauguração de Brasília, as primeiras corridas no Autódromo de Interlagos, a demarcação territorial brasileira no Polo Sul, a construção da rodovia Belém-Brasília, o Estúdio Abril de Fotografia, entre muitos outros significativos flagrantes que configuram a trajetória de um dos mais aguerridos profissionais: Sérgio Jorge.

Ele foi atraído pela fotografia sinestesicamente, ou seja, primeiro pelos olhos e, em seguida, pelo olfato e pelo tato. Sim, o cheiro dos químicos do laboratório e o trabalho artesanal de revelação contaminaram suas decisões ao escolher sua profissão. Afinal, naquele momento, a fotografia parecia muito mais dinâmica e divertida que a possibilidade de se tornar um sério advogado como seu pai. 

O primeiro trabalho foi na Casa Fotográfica de Elisário de Castro Negrão, seu mentor, em Amparo, sua cidade natal. Na penumbra do laboratório, não só aprendeu os primeiros segredos da magia fotográfica, mas também foi atravessado por uma energia que modificou seu olhar diante das cenas do cotidiano. Tempos depois, ao chegar em São Paulo, esse olhar alterado, associado ao seu estilo e técnica, começa a adquirir uma sintaxe própria.

A cidade despertava novas ambições e gerava expectativas diversas. Nessa agitação, descobre o pulsar da redação do jornal O Dia – seu primeiro emprego como profissional –, onde dezenas de máquinas de escrever, somadas aos ruídos dos linotipos e das rotativas, estão sintonizadas com o ritmo frenético da efervescente metrópole. Sua atividade como fotógrafo passa a ser pontuada por esse desejo de estar sempre em movimento e de ampliar a visibilidade de seu trabalho como repórter fotográfico. Em poucos meses, sua constante atividade foi notada pelos profissionais dos jornais A Gazeta e A Gazeta Esportiva, para onde se transferiu a convite.

Tornou-se uma espécie de cronista visual do período, desenvolvendo um trabalho marcante e de grande ressonância, seja pela liberdade nos enquadramentos, seja pela sua intensa curiosidade. Passa a ser respeitado pelos fotógrafos da velha guarda da imprensa paulistana e integra uma nova geração que nasce exatamente no final dos anos 1950. Jovem, reconhecido tecnicamente e bastante agitado, começa a preencher seu tempo livre com pautas inventivas para a revista Manchete, onde se torna um requisitado freelancer.

Uma de suas experiências mais incríveis de menino do interior foi quando teve seu cão preso pelo homem da carrocinha, salvo graças à intervenção de seu pai, que conseguiu imediata devolução. Adulto, essa mesma vivência foi reacendida em sua memória e lhe permitiu criar uma narrativa visual tão emocionante que se transformou no primeiro Prêmio Esso de Fotojornalismo, em 1960, categoria inexistente até aquela edição, destinado a consagrar as principais matérias publicadas na mídia impressa do país. Esse é o grande momento de explosão profissional na trajetória de Sérgio Jorge. Essas fotografias foram publicadas em 36 revistas e jornais de todo o mundo. O menino simples e curioso de Amparo torna-se um repórter celebrado internacionalmente. Uma consagração!

Desde então, Sérgio Jorge não parou mais de fotografar: repórter das revistas Manchete e Fatos & Fotos, diretor do Estúdio Abril – onde foi responsável pela formação de inúmeros jovens, hoje profissionais reconhecidos e atuantes no mercado – e renomado fotógrafo publicitário que atende grandes agências e empresas nacionais e multinacionais. Sua trajetória múltipla é sintonizada, técnica e esteticamente, com seu tempo. Seu acervo reúne mais de 60 mil fotografias e documenta um período de quase seis décadas de grandes transformações sociais, políticas e culturais do país.

Sérgio Jorge garante que viveu tudo com muita alegria e emoção. Quando rememora a importância que a imagem tem em sua vida, costuma manter a mesma sinceridade daquele menino que um dia descobriu um novo e mágico mundo no laboratório do velho Negrão, em Amparo: “Entendo que toda fotografia é uma vitória e, como a luz vermelha do laboratório, ela se transformou no sangue que corre em minhas veias”.

A Casa da Imagem reúne, pela primeira vez, cem fotografias de Sérgio Jorge e dedica integralmente seu espaço não só para prestar uma homenagem, mas, principalmente, para dar a exata dimensão de sua importância para a história da fotografia brasileira.


Cronologia

1937 Nasce, em 7 de abril de 1937, em Amparo, estado de São Paulo.

1952 Inicia experiência no Foto Negrão, em Amparo, trabalhando no laboratório e fazendo fotografia social, e participa ativamente do Foto Cine Clube de Amparo.

1955 Janeiro, instala-se na cidade de São Paulo. Inicia seu trabalho em fotojornalismo no extinto jornal popular O Dia, pertencente ao governador Ademar de Barros.

1956 É convidado e contratado pela Fundação Casper Líbero, trabalhando no jornal A Gazeta Esportiva, onde fica até 1960. Nesse período participou da cobertura dos principais eventos esportivos do país, acompanhando clubes de futebol, a trajetória de Pelé, as vitórias do pugilista Eder Jofre, as primeiras corridas em Interlagos, entre outros. Pelo jornal A Gazeta, acompanha fotograficamente a construção de
Brasília e também fotografa, em 21 de abril de 1960, a inauguração da nova capital do país.

1959 Participa da primeira viagem de abertura da Rodovia Belém-Brasília, fotografando para o Jornal A Gazeta.

1960 Em um trabalho como freelancer para a revista Manchete, vence o primeiro Prêmio Esso de Fotojornalismo, o prêmio jornalístico mais prestigioso do país, que, nesse ano, pela primeira vez, também é conferido para a fotografia. A fotografia premiada foi publicada em mais de 36 revistas, como Life, Look, Paris Match, entre outras nacionais e
internacionais. É contratado pela revista Manchete, do grupo Bloch Editores, que também publicava as revistas Fatos & Fotos e Joia, entre outras. Nessa época, as revistas começam a utilizar fotografias em cores em grande escala.

1968 Faz, pela primeira vez, uma exposição individual, Retratos do Brasil, na Galeria Foto Curt, em São Paulo.

1969 Torna-se o primeiro fotógrafo brasileiro a visitar o Continente Antártico, fotografando para a revista Manchete, onde, a partir dessa matéria publicada, o Brasil, em 1970, tomou posse no Continente Antártico. 1969 Inicia, em sociedade com seu irmão José Carlos Jorge, o Jorge’s Estúdio, dedicado à fotografia de publicidade e propaganda. Passa a atender grandes clientes, como Avon, Ford, General Motors, Pirelli, Fotoptica, Tramontina, Brastemp, entre outros.

1970 É contratado pela Editora Abril para trabalhar no novo Estúdio Abril, junto com Francisco Albuquerque. Além disso, elabora um projeto de reformulação da área de fotojornalismo da editora. Fica quatro anos à frente do Estúdio Abril, período em que formou e treinou inúmeros fotógrafos que hoje são destacados profissionais nesta São Paulo.

1972 Exposição individual Imagens do Carnaval, na Galeria do Foto Cine Clube de Amparo, promovida pela prefeitura.

1974 Documenta fotograficamente e faz a capa da revista Veja nº 283, em fevereiro, com o material do incêndio do Edifício Joelma.

1975 Volta a ter dedicação exclusiva ao Jorge’s Estúdio. 1975 Exposição individual Imagens Brasileiras. Também faz palestra na Galeria do Cine Foto Clube de Salvador, Bahia.

1978 Publica ensaio no livro Os seios de Joana, do autor Flávio de Almeida Prado, pela editora Massao Ohno.

1983 Exposição individual 30 Anos de Fotografia, no Museu da Imagem e do Som de São Paulo. Exposição individual Retratos, na Galeria do Cine Foto Clube de Araras, São Paulo.

1990 Exposição individual e palestra aos profissionais com Click Hasselblad, no Espaço Importadora Importécnica, São Paulo.

1993 Exposição individual O Homem e o Barro, na prefeitura de Paulínia, São Paulo.

1994 Participa da exposição coletiva da quarta edição da Coleção Pirelli-Masp, e suas fotografias são incorporadas ao Acervo do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand.

1996 Participa do livro Verde lente, fotógrafos brasileiros e a natureza, com a participação e coordenação de Zé de Boni.

1994 a 2006 Durante estes anos, é convidado a fazer palestras sobre temas diversos relativos à fotografia: “Técnica da boa foto”, “Como montar um estúdio”, “Foto química/analógica”, “Introdução à foto analógica/digital” e, hoje, “A realidade na foto digital”.

2001 Recebe prêmio da Câmara Municipal de São Paulo, o IV Troféu São Paulo Capital Mundial da Gastronomia, categoria Melhor Foto Reportagem, Casa da Fazenda do Morumbi.

2008 Participa da exposição coletiva Fotografia em Revista, promovida pela Editora Abril e Faap, no Museu de Arte Brasileira, curadoria de Rubens Fernandes Junior.

2010 Participa da exposição Os Anos JK: A Era do Novo, a partir dos olhares de Sérgio Jorge e Jean Manzon, no Instituto Caixa Cultural São Paulo, com curadoria de Carlos Eduardo França de Oliveira e Renato Suzuki.

2011 Escolhido entre dez fotógrafos, publica suas fotografias no livro Imagens de São Paulo, publicado pela Editora Décor, São Paulo.

2014 Exposição individual Múltiplas Trajetórias, na Casa da Imagem, Museu da Cidade de São Paulo, Secretaria Municipal de Cultura.

Mai,31 to August,3. 2014
Sérgio Jorge: multiple trajectory
Rubens Fernandes Junior, researcher and curator of photography

Since the beginning, at Foto Cine Clube de Amparo, in 1952, until today, at Jorge’s Estúdio, many images passed through the eyes of Sérgio Jorge, one of the great masters of brazilian photography. Of course, not all of these images were made viable photographically –part of them were merely fixed in his mind while the other part was transformed into relevant iconographic documents of Brazil’s history.

It’s impossible to learn about some of the major historical moments in the history of our photography and of our country without going through some of his images, such as the first Esso Prize in Photojournalism, the fashion of Denner and Clodovil, the thousandth goal of Pelé, the inauguration of Brasília, the first races at the racetrack in Interlagos (São Paulo), the Brazilian territorial demarcation at the South Pole, the construction of the Belém-Brasília highway, the Abril Photography Studio, among many other significant instances that configure the trajectory of one of the toughest professionals out there: Sérgio Jorge.

He was attracted to photography cenesthetically, that is, first through the eyes, then through smell and touch. The smell of the chemicals and the process of developing photos contaminated his decisions in choosing his profession. After all, at that moment, photography seemed much more dynamic and entertaining than the possibility of becoming a serious lawyer like his father. 

His first job was at the Photography House of Elisário de Castro Negrão, his mentor, in Amparo, his birthplace. In the dimness of the laboratory, he not only learned the first secrets of photographic magic, but was also pierced by an energy that modified his perception of everyday scenes. Later, upon arriving in São Paulo, this altered gaze, associated with his technique and style, begins to acquire its own sintax.

The city awakened new ambitions and generated many expectations. In this turmoil, he discovers the pulse of the newspaper office O Dia - his first job as a professional - where dozens of typewriters, added to the noise of the linotypes and rotary presses, were in tune with the hectic pace of the effervescent metropolis. His activity as a photographer happened to be punctuated by this desire to keep moving and increase the visibility of his work as a photojournalist. Within a few months his constant activity was noticed by professionals from the newspapers A Gazeta and A Gazeta Esportiva, where he transferred upon invite.

He became a kind of visual chronicler of the period, developing a remarkable work and of great resonance, be it for the freedom in his frameworks or for his intense curiosity. He starts to be respected by the photographers of the old school of the São Paulo press and integrates a new generation which is born exactly in the late 1950s. A young man, recognized and technically quite busy, begins to fill his free time with inventive guidelines for the Manchete magazine, where he becomes a requested freelancer .

One of his most incredible experiences as a country boy was when he had his dog captured by a man with a wagon and was saved thanks to the help of his father who was able to get the dog back immediately. As an adult, this memory came back to him and allowed him to create such a touching visual narrative that it turned into the first ever Esso Prize in Photojournalism, in 1960, a category which did not exist up until that time and was destined to consecrate the major stories published in the country’s printed media. This is the great moment of explosion in Sérgio Jorge’s professional career. These photographs were published in 36 magazines and newspapers worldwide. The simple and curious boy from Amparo becomes an internationally celebrated reporter. A consecration!

From then on, Sérgio Jorge did not stop photographing: he reported for the magazines Manchete and Fatos & Fotos, directed the Abril Photography Studio –where he was responsible for the formation of many young photographers that are recognized professionals in the market today –and became a renowned advertising photographer that worked for big agencies as well as national and multinational companies. His multiple trajectory is in tune, technically and aesthetically, with his time. His collection gathers more than 60 thousand photographs and documents a period of almost six decades of important social, political and cultural transformations in Brazil.

Sergio Jorge ensures that he lived though all of this with joy and excitement. When recalling the importance that imagery has in his life, he usually keeps the same sincerity of that boy who one day discovered a new and magical world in old Negrao’s lab, in Amparo: "I understand that every photograph is a victory, and as much as the red light of the lab, it became the blood that flows in my veins. "

A Casa da Imagem (House of Image) brings together, for the first time, a hundred photographs of Sergio George and fully devotes its space not only to pay an homage, but mainly to give the exact dimension of his importance to the history of Brazilian photography.


Chronology

1937 He is born in April 7, in the city of Amparo, São Paulo.

1952 Starts his experience in Photo Negrao, in Amparo, working in the lab and doing social photography, also actively participating in the Cine Photo Club of Amparo.

1955, in January settles himself in the city of São Paulo. Starts his work as a photojournalist at the now extinct popular newspaper O Dia (The Day), which belonged to Ademar de Barros, twice elected governor of São Paulo.

1956 He is invited and hired by Cásper Líbero Foundation, working at “A Gazeta Esportiva” (The Sports Gazette newspaper) where he remained until 1960. During this period he participated in the coverage of major sporting events in the country, following football clubs, the career of Pele, the victories of the boxer Eder Jofre, the first race in Interlagos, among others.

1958 Still working for The Gazette newspaper, he covers and photographically registers the construction of Brasilia, and on April 21, 1960, also photographs the inauguration of the new capital of Brazil.

1959 He participates in the first opening journey on Belem-Brasilia Motorway, working as a photographer for the newspaper A Gazeta. As a freelance worker for the Manchete magazine, he wins the first Photojournalist Esso Award -- one of the most prestigious in the country – and on the same year for the first time, he is also granted an award for a photograph. The awarded photograph was published in more than 22 magazines, such as Life, Look, Paris Match, among other national and international magazines.

1960 He is hired by Manchete magazine from Bloch Editors group who publishes Fatos & Fotos (Facts & Photos) and Joia (Jewel) magazines, among others. At that time, magazines started to use coloured photographs in a major scale.

1968 For the first time, he launches an individual exhibition named Retratos do Brasil (Picture of Brazil), at Foto Curt Gallery in Sao Paulo.

1969 He becomes the first Brazilian photographer to visit Antarctica, working for Manchete magazine. After the article is published, Brazil takes over the Antarctic Continent in 1970.

1969 Associated with this brother Jose Carlos Jorge, he opens Jorge’s Studio which is dedicated to photography related to advertising. He starts to serve major clients, such as Avon, Ford, General Motors, Pirelli, Fotoptica, Tramontina, Brastemp, among others.

1970 He is hired by Editora Abril to work at their new Estudio Abril, together with Francisco Albuquerque. Moreover, he sets out a project to reform the publishing company’s photojournalism department. He leads the company for four years, period in which he prepares and trains numerous currently renowned photographers in Sao Paulo.

1972 The individual exhibition Imagens do Carnaval (Carnaval Images) is promoted by the City Hall at Cine Foto Clube Amparo.

1974 Through his photographs, he documents and makes the cover of edition no. 283 of Veja magazine in February, with material collected from the fire of Joelma building.

1975 He goes back to dedicating himself entirely to Jorge’s Estudio. The individual exhibition Imagens Brasileiras (Brazilian Images) is held. He also lectures at Galeria do Cine Foto Clube (Cine Foto Club Gallery) in Salvador, Bahia.

1978 He publishes his photographic essay on Os seios de Joana (Our translation: Joana’s Breasts), book by Flabio de Almeida Prado through Publisher Massao Ohno.

1983 The individual exhibition 30 Anos de Fotografia (30 years of Photography) is held at Museu da Imagem e do Som (Image and Sound Museum) in São Paulo. Individual exhibition Retratos (Pictures) at Galeria do Cine Foto Clube de Araras, in São Paulo.

1990 Individual exhibition and lecture to Hasselblad Click professionals at Espaço Importadora Importécnica, in Sao Paulo.

1993 Individual exhibition of O Homem e o Barro, at Paulinia City Hall in Sao Paulo.

1994 He participates the fourth edition of collective exhibition for Pirelli-Masp Collection and his photographs are incorporated to the collection of Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (Assis Chateaubriand São Paulo Art Museum).
 
1996 He participates in the book Verde lente, fotógrafos brasileiros e a natureza (Our translation: Green lenses, Brazilian photographers and nature) with participation and coordination of Zé de Boni.

1994 to 2006 He is invited to lecture about various themes related to photography: “Técnica da boa foto (Our translation: the technique for a good photograph); “Como montar um estúdio (Our translation: How to start a studio)”; “Foto química/analogical (Our translation: Chemical/analogical photograph); Introdução à foto analógica/digital (Our translation: Introduction to analogical photo) and currently “A realidade na foto digital (Our translation: The reality on digital photograph)”.

2001 He receives the award from the City Hall of São Paulo, the Fourth Trophy of Sao Paulo, the capital of the Gastronomy world, under the category Best News report Photo, Casa da Fazenda do Morumbi (Farm House of Morumbi).

2008 He participates in the collective exhibition Fotografia em Revista (Magazine Photography) promoted by Editora Abril and Faap at Museu de Arte Brasileira (Brazilian Art Museum) curated by Rubens Fernandes Junior.

2010 He participates in the exhibition Os Anos JK: A Era do Novo (Our translation: The years of JK: The novelty era), through the perspective of Sergio Jorge and Jean Manzon, at Instituto Caixa Cultural São Paulo (São Paulo Cultural Art Gallery)

2011 Chosen among 10 photographers, he publishes his photographs in the book Imagens de São Paulo (our translation: Images of Sao Paulo), published by Editora Décor, publisher in Sao Paulo.

2014 Individual exhibition Multiple Trajectory  in Casa da Imagem (Image House) at Secretaria Municipal de Cultura (Municipal Secretariat of Culture) in the city of Sao Paulo.


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Túneis não mostram o final
Exposição individual de Felipe Bertarelli
18 de janeiro a 6 de abril de 2014

Felipe Bertarelli se dedica à organização da tipologia urbana. Nesta espécie de arquivo em construção, o autor indexa imagens produzidas especialmente para os assuntos, registros obtidos em expedições pela cidade, sempre noturnas.

Tal proposta redefine a estratégia de captação da imagem, produzida individualmente e elaborada em função de cada cena. Aqui, o registro requer o planejamento das operações visando à relação com o tema e os múltiplos contextos no qual a cena reincide na cidade. Neste sistema de pensar a fotografia, tão significativo quanto à captura, é o processo de coordenação de ações que estabelecerá a lógica de cada série, ampliando o valor individual para o conjunto da obra.

Numa aproximação com a fotografia científica, podemos associar as ações do fotógrafo à preferência pelas tomadas noturnas e à inerente característica da iluminação artificial em reduzir os planos periféricos, fator que concentra a força atrativa no objeto principal.

Esta exposição mostra uma seleção das séries As Paisagens e Os Túneis, realizadas entre 2011 e 2013. Como em trabalhos anteriores de Bertarelli, deparamo-nos com espaços vazios e inativos, surpreendentemente silenciosos nos quais o uso e função dos lugares encontram-se desprovidos de justificativa, evocando repouso, ou quem sabe, reflexão.

Túneis não mostram o final, título extraído de uma correspondência comentando as saídas a campo do autor, enfatiza o caráter construtivo e de continuidade do trabalho.

Henrique Siqueira


Tunnels don’t show the end
Felipe Bertarelli solo exhibition
January 18 to april 6, 2014

Felipe Bertarelli dedicates himself to the organization of urban typology. In this sort of archive construction, the author indexes images produced especially for the subjects; records obtained on expeditions around town, always at night.

Such proposal redefines the strategy of image capture, produced individually and developed according to each scene. Here, the record requires planning the operations in relation to the subject and the multiple contexts in which the scene recurs in the city. In this way of thinking photography, the process of coordinating the actions that will establish the logic of each series is as significant as the shot, expanding the individual value for the whole work.

In an approximation to scientific photography, it is possible to associate the photographer’s actions to the preference for night shots and to the inherent characteristic of artificial lighting in reducing peripheral plans, a factor which concentrates the attractive force on the main object.

This exhibition shows a selection from the Landscapes and Tunnels series, produced between 2011 and 2013. As in previous works by Bertarelli, we come across surprisingly silent, empty and inactive spaces where the use and function of places are devoid of justification; evoking rest, or perhaps reflection.

Tunnels don’t show the end, title taken from a correspondence commenting on the author’s outings, emphasizes the constructive character and continuity of the work.

Henrique Siqueira



Câmaras de descompressão
Exposição individual de Edu Marin
18 de janeiro a 6 de abril de 2014

Em algum momento, nosso imaginário já foi longe o suficiente para dar conta de tudo o que se passa no quarto barato de um hotel do centro da cidade. Mas é por meio de uma atitude comedida que Edu Marin nos implica nesses espaços: poucas imagens e, em cada uma delas, poucos elementos; poucos efeitos além daqueles que ornamentam esses ambientes e, acima de tudo, nenhum apelo fácil, nenhum drama.

Mesmo vazios, esses quartos são plenos de histórias. Nós os encontramos num intervalo tenso entre as memórias que acumulam e os desejos para os quais permanecem de prontidão. Entre os ruídos já pronunciados e as palavras que negociam o próximo encontro, seu silêncio grita. Entre a energia despendida e a que permanece recalcada, sua imobilidade perturba. Entre os hóspedes que saíram há pouco e aqueles que estão prestes a chegar, esse vazio se mostra carregado de presença.

Vocação de todo quarto, estes também guardam segredos. Mas aqui eles são feitos de intimidades rotativas e se referem a histórias fragmentárias que não pertencem a ninguém. Tais segredos se tornam arquetípicos e é por isso que temos a sensação de conhecer tão bem esses quartos que jamais frequentaríamos.

Há algo de reconciliador nessas imagens quando revelam a intenção de oferecer mais que um espaço utilitário. As luzes, cores, texturas, estampas, revestimentos e ornamentos representam um esforço estético análogo à promessa de amor e felicidade que permeia mesmo os prazeres mais efêmeros.

No mais, o que estranhamos nesses quartos corresponde ao próprio mal-estar do processo civilizatório. Eles são habitados por desejos que também nos constituem mas que, em nome de uma existência social, tratamos como sendo de um outro sempre distante. Esses quartos e tudo o que eles representam estão situados num centro que tratamos como periferia. Isso diz muito sobre o forma como ocupamos a cidade e também sobe o modo tenso como nos construímos como sujeitos.

Ronaldo Entler

Câmaras
Edu Marin solo exhibition
January 18 to april 6, 2014

Our imagination has, at some point, gone far enough to account for what goes on in cheap hotel rooms downtown. But it is in a very subtle way that Edu Marin implicates us in these spaces: few images, each with a few elements; few effects beyond those that adorn these environments and, above all, no easy appeal, no drama.

Although empty, these rooms are full of stories. We find them in a tense interval between memories that accumulate and desires for which they remain on standby. Between the noise already pronounced and the words that negotiate their next meeting, their silence screams. Between expended energy and that which remains repressed, their immobility upsets. Between the guests that came out recently and those who are about to arrive, this void is loaded with presence.

As in all bedrooms, they too hold secrets. But here they are made of rotating intimacies and refer to fragmentary stories that belong to no one. Such secrets become archetypal, which is why even without having occupied them, these rooms feel so familiar to us.

There is something reconciling in these images in their intention to offer more than a utility space. The lights, colors, textures, prints, ornaments and coatings represent an aesthetic effort analogous to the promise of love and happiness that permeates even the most fleeting pleasures.

Furthermore, what puzzles us about these rooms corresponds to the very malaise of the civilizing process. They are inhabited by desires that constitute us but, due to our social existence, are treated as belonging to a distant other. These rooms and what they represent are treated as a peripheral reality, despite being located in the city’s center. This says a lot about the manner in which we occupy the city as well as the tense way we build ourselves as subjects.

Ronaldo Entler





Turista Hotel
Exposição individual de Cristiano Mascaro
18 de janeiro a 6 de abril de 2014

Cristiano Mascaro estabeleceu com São Paulo um vínculo de permanente percepção e registro, praticado nas intermináveis caminhadas de reconhecimento e na decomposição do horizonte da cidade, à primeira vista impenetrável e estéril, atividades das quais sucedem imagens que impressionam pela simplicidade dos elementos que constituem esta urbe.

Turista Hotel, fotografia que deu nome à exposição, mostra um solitário estabelecimento no bairro do Brás, quase oculto pelo viaduto que, juntamente com as obras de expansão do metrô, modificaram a região já degradada, com o encerramento das atividades fabris que desenharam o traçado daquelas ruas no passado. Anunciando sua atividade, o melancólico neon do letreiro ornamenta a fotografia e relembra uma fase da comunicação visual da cidade. Em outras imagens presentes na mostra, a utilização da luminosidade artificial na composição resultará em cenas de beleza e circunstâncias imponderadas.

Soma-se à paisagem um precioso retrato de habitantes, trabalhadores e frequentadores do perímetro central - alguns expostos pela primeira vez -, registrados há cerca de quarenta anos, quando Cristiano Mascaro percorreu o Brás em uma expedição de reconhecimento, decidindo incluir à documentação do território uma amostra da presença humana do local.

As fotografias aqui apresentadas enfatizam a natureza interpretativa das imagens e a visão poética do fotógrafo, uma vertente significativa de sua obra que também é celebrada pela produção mais formal, voltada à arte, arquitetura e o patrimônio.

Henrique Siqueira

Tourist Hotel

Cristiano Mascaro established a bond of constant perception and registration with São Paulo, practiced during endless strolls of recognition and in the breaking-up of the city’s horizon, at first glance impenetrable and sterile, activities which lead to the emergence of images that impress by the simplicity of the elements that make up this city.

Tourist Hotel, photograph after which the exhibition is named, shows a solitary establishment in the neighbourhood of Brás, almost hidden by the overpass which, together with the construction work from the subway expansion, modified an area already degraded by the termination of the manufacturing activities which traced its streets in the past. Announcing its acitivity, the melancholic neon of the sign adorns the photograph and reminds us of a period of visual communication in the city. In other images exhibited here, the use of artificial lighting in the composition result in scenes of beauty and ill-considered circumstances.

Added to the landscape is a portrait of the inhabitants, workers and frequenters of the city center – some exhibited for the first time – registered nearly 40 years ago, when Cristiano Mascaro roamed through Brás in an expedition of recognition, deciding to include images of the residents in the documentation of the area.

The photographs shown here emphasize the interperative nature of the images and the poetic vision of the photographer, a side of his work that is also celebrated by the most formal production, aimed at art, architecture and heritage.

Henrique Siqueira



Perfume de princesa
Instalação de Wagner Malta Tavares
2 de novembro de 2013 a 6 de abril de 2014

Os odores dos outros

A primeira observação sobre Perfume de princesa é bem simples: a estrutura de tubos que serpenteia pela escadaria do Beco do Pinto faz parte do trabalho de Wagner Malta Tavares, tanto quanto os aromas exalados por ela em pontos específicos do caminho. Esculturas como Herói (2010) e Anúbis (2008), nas quais ventiladores são acoplados a tecidos e objetos semelhantes a sarcófagos, legitimam esta afirmação, que aponta para um tema caro ao artista: a integração entre arte e tecnologia. Apesar de Wagner Malta Tavares parecer otimista a respeito das possibilidades estéticas do uso de artefatos tecnológicos, a recorrência do tema e o modo como costuma ser tratado indicam que a questão não está resolvida para ele, precisa ser continuamente levantada e exige explicação.

Uma segunda observação também é simples: em contraste com sua perspectiva futurista, o artista olha para o passado ao pesquisar a história do perfume e considerar a memória do lugar. Apesar disso, Perfume de princesa retoma o vento como forma, o que já havia sido feito nos trabalhos expostos em 2010 pelo Instituto Tomie Ohtake, como observou o crítico Rodrigo Naves. Em lugar dos tecidos esvoaçantes e do vento batendo no rosto dos espectadores, a máquina projetada por Wagner Malta Tavares sopra essências florais ao longo da histórica viela da região central de São Paulo, pontuando o caminho dos passantes com matrizes tradicionais de perfumes como rosa, alfazema e angélica, entre outros. O Beco do Pinto transforma-se em túnel do tempo ao reconstituir a atmosfera olfativa do século XIX, presidida por Domitila de Castro Canto e Melo (1797-1867), que viveu um longo romance com Dom Pedro. A partir de 1834, ela residiu no casarão que passou a ser chamado de Solar da Marquesa de Santos e hoje pertence ao Museu da Cidade.

Uma reflexão um pouco mais ambiciosa pode ser feita a partir das observações acerca dessa experiência olfativa, que, por meio daquela estrutura tecnológica, lança um olhar dividido entre o passado e o futuro. A busca pela cidade ideal e a idealização da paisagem natural (como nos jardins ingleses) estariam ligadas, segundo o antropólogo Alain Corbin, a uma “acentuação da sensibilidade” a partir da segunda metade do século XVIII. O autor caracteriza certas medidas de saúde pública como uma “ofensiva contra a intensidade olfativa do espaço público”. O combate sistemático ao mau cheiro de esgotos, hospitais e prisões descrito por Corbin não se relaciona com uma liberação do uso de cremes, perfumes e outros cosméticos, mas com o seu disciplinamento.

A história do perfume remonta ao Egito antigo (Gombrich comenta utensílios de perfumaria ornados com imagens dos deuses), mas entre os séculos XVIII e XIX substâncias aromáticas usadas tradicionalmente foram reprovadas por cidadãos aterrorizados pelo mundo microscópico revelado por Lavoisier e convencidos de que as virtudes cívicas provêm de um estado natural da humanidade. De acordo com uma ideia puritana de natureza, valorizam-se odores naturais do corpo, e o uso de perfumes recua. Até mesmo banhar-se passa a ser visto como um ato de vaidade potencialmente prejudicial à saúde. Colônias florais substituem os cremes produzidos a partir de substâncias extraídas de animais e passam a integrar um jogo de “códigos imperceptíveis” vinculado ao universo feminino, segundo a associação, que passa a ser contumaz, entre a mulher e a flor. Curiosamente, o revigoramento da nobreza intensificou o uso desses perfumes depurados como elementos de distinção social e dissimulação da sedução amorosa.

Biógrafo recente da Marquesa de Santos, Paulo Rezzutti cita descrições de viajantes admirados com a limpeza da cidade de São Paulo ao final do século XVIII. Poucas décadas depois, separada de Dom Pedro e vivendo no casarão da rua de Nossa Senhora do Carmo, Domitila exigiu a reconstrução do Beco do Pinto, invadido por um vizinho. Segundo Rezzutti, escravos encarregados de descer o Beco para atirar lixo no rio Tamanduateí por vezes o faziam no terreno da marquesa. Embora se aprecie o contato entre as pessoas de diversas gerações e classes sociais por meio dos seus aromas singulares, ou “impressões olfativas”, é impossível distingui-lo do controle social que cada indivíduo exerce sobre os odores dos outros e os seus próprios odores.

A fala de Wagner Malta Tavares que acompanha Perfume de princesa relata uma investigação acerca da Marquesa de Santos e problematiza a distinção entre a história factual e o imaginário. Concubina do imperador e benemérita paulistana, Domitila de Castro Canto e Melo potencializou a imagem da mulher paulista, que, ainda segundo Rezzutti, era tida por bela e independente. Sem pretender remover o fato da teia de significados que o envolve, no trabalho de Wagner Malta Tavares cristalizam-se fantasias, preconceitos, julgamento moral, idolatria: o túmulo de Domitila no Cemitério da Consolação tem sido venerado de diversas maneiras, e o perfume também é atributo dos cadáveres de santos.

José Bento Ferreira


THE ODORS OF OTHERS
Wagner Malta Tavares
November, 2. 2013 to april, 6. 2014


The first observation about Perfume de princesa [Perfume of a Princess] is a very simple one: the structure of tubes that winds along the stairs at Beco do Pinto is as much a part of the work by Wagner Malta Tavares as are the fragrances it exhales at specific points along the path. This finding is substantiated by sculptures such as Herói (2010) and Anúbis (2008) – in which fans are coupled to fabrics and objects resembling sarcophagi – and it points to an enduring theme for this artist: the integration between art and technology. Despite Wagner Malta Tavares’s evident optimism about the possibilities of putting technological devices to aesthetic use, the recurrence of the theme and the way it is treated show that he has not yet resolved this question: it needs to be continuously raised and still demands an explanation.

A second observation is also simple: in contrast with his futurist perspective, the artist looks to the past when researching the history of perfume and considering the memory of the place. Nonetheless, Perfume de princesa recurs to the wind as a form, which was also done in the works shown in 2010 at Instituto Tomie Ohtake, as observed by critic Rodrigo Naves. Instead of fluttering fabrics and the wind buffeting the face of the spectators, the machine designed by Wagner Malta Tavares blows floral fragrances along the historical alley in São Paulo’s downtown district, punctuating the path of the passersby with traditional essences of perfumes, including rose, lavender and angelica. Beco do Pinto is transformed into a time tunnel with the reconstitution of the 19th-century olfactory atmosphere, headed up by Domitila de Castro Canto e Melo (1797–1867), who had a longstanding affair with Dom Pedro. From 1834 onward, she resided in the mansion that came to be called Solar da Marquesa de Santos, and which today belongs to the Museu da Cidade.

A more ambitious reflection could be made based on observations about this olfactory experience, which by means of that technological structure looks to both the past and the future. According to anthropologist Alain Corbin, the search for the ideal city and the idealization of the natural landscape (as in the English gardens) are linked to an “accentuation of the sensibility” from the second half of the 18th century onward. The author characterizes certain public health measures as an “offensive against the olfactory intensities of public space.” The systematic battle against the bad smell of the sewers, hospitals and prisons described by Corbin is not related with a freer use of creams, perfumes and other cosmetics, but rather with discipline in their employment.

The history of perfume goes back to ancient Egypt (Gombrich comments on perfume utensils decorated with images of the gods), but between the 18th and 19th centuries traditionally used aromatic substances were spurned by citizens terrorized by the microscopic world revealed by Lavoisier and convinced that the civic virtues stemmed from a natural state of humanity. In accordance with a Puritan idea of nature, the body’s natural odors were valorized, and the use of perfumes plummeted. Even taking a bath was seen as an act of vanity potentially harmful to one’s health. Floral colognes substituted creams based on animal extracts, and began to take part in a game of “imperceptible codes” linked to the feminine realm, in accordance with a strengthening association between the woman and the flower. Curiously, the reinvigoration of nobility intensified the use of these refined perfumes as elements of social distinction and for the dissemblance of amorous seduction.

A recent biographer of Marquesa de Santos, Paulo Rezzutti, cites descriptions by travelers who were struck by the city of São Paulo’s cleanliness in the late 18th century. A few decades later, separated from Dom Pedro and living in the mansion on Rua Nossa Senhora do Carmo, Domitila demanded the reconstruction of Beco do Pinto, invaded by a neighbor. According to Rezzutti, slaves tasked with going down the alley to throw trash into the Rio Tamanduateí would sometimes throw it in the marchioness’s yard. Although the contact between people of different generations and social classes by means of their singular aromas or “olfactory impressions” is appreciated, it is impossible to distinguish it from the social control that each individual exercises on the odors of others and their own.

By reconstituting possible formulas of perfumes from past eras and effusing them in places of memory (including inside the Solar and around a bathtub that the marchioness never used), Wagner Malta Tavares problematizes the distinction between factual and imaginary history. A mistress of the emperor and an illustrious lady from São Paulo, Domitila de Castro Canto e Melo Lindfors bolstered the image of the woman from São Paulo, who, also according to Rezzutti, was considered beautiful and independent. Without disregarding the web of meanings it is enmeshed in, Wagner Malta Tavares’s work crystallizes fantasies, prejudices, moral judgment, and idolatry: Domitila’s tomb at Consolação Cemetery has been venerated in different ways, and perfume is also an attribute of the cadavers of saints.

José Bento Ferreira




Testemunha ocular, fotografias de Juca Martins
Exposição de Juca Martins
23 de junho a 15 de setembro de 2013

Consagrado como um dos nomes de referência do fotojornalismo nacional, Juca Martins ocupa um lugar de destaque na cobertura do processo de recondução à democracia em São Paulo durante a ditadura, e da crise social que emergiu no país naquele momento, como a questão infantil, minorias, religiosidade, moradia, o colapso ambiental em Cubatão e na encosta da Serra do Mar, e as viagens de registro do garimpo em Serra Pelada. 

A sua produção desse período é conhecida pela agilidade no registro, escolha de situações e precisão de ângulos que valorizam o ser humano no fato jornalístico, capacidades alinhadas a uma corrente do fotojornalismo e que exploram o assunto na sua potencialidade, enfatizando a expressão dos elementos emocionais, sociais e históricos. Esta habilidade pressupõe a interpretação da pauta, do local onde a cena se desenvolve e o planejamento do que o autor deseja extrair e ressaltar na imagem.

Participou da fundação da Agência F4, notória cooperativa de fotógrafos que, no final da década de 1970, sintonizada com o movimento da categoria em outros países, passou a desenvolver pautas autônomas e reivindicar o crédito da autoria na mídia impressa. Atualmente, Martins dedica-se à agência Olhar Imagens e coordena o grupo Fotobrasilis, ambos voltados à produção de imagens sobre o Brasil.

As fotografias aqui expostas descrevem um país em grande agitação e formam um mosaico de episódios que marcaram os paulistanos entre os anos de 1970 e 1980. São registros amplamente divulgados por jornais e revistas dessa época e que, transcorridas duas décadas, foram reunidos pela Casa da Imagem em sua vocação de promover as diversas vertentes da fotografia paulista.

Monica Caldiron



Eyewitness, photographs by Juca Martins

Hailed as one of the most important photojournalists in Brazil, Juca Martins occupies a prominent place in the coverage of the return of democracy in São Paulo during the military dictatorship, and the social crisis which emerged in the country from that moment on, such as the issue of children, minorities, religion, housing, environmental collapse in Cubatão and in the slope of Serra do Mar, and trips to collect images of the Serra Pelada mine.

His production from this period is known for its  agility, his choice of situations and precise angles giving prominence to human beings in the journalistic fact, abilities in tune with one type of photojournalism which explores the power of a theme, emphasizing the expression of emotional, social and historic elements. This ability presupposes the interpretation of a specific agenda, of the place where a scene happens and a planning of what the author wants to extract from and highlight in an image.

Juca Martins was one of the founders of Agência F4, a notorious photographers cooperative which, in the late 1970s, in line with similar movements in other countries, started to develop autonomous agendas and to claim authorship credits in print media. Currently, Martins works for the agency Olhar Imagens and coordinates the group Fotograsilis, both focused on the production of images about Brazilian themes.

The photographs on view here describe a country in great turmoil, forming a mosaic of remarkable events in São Paulo between 1970 and 1980. These are records which were widely reported by newspapers and magazines at the time and which, after two decades, were brought together by Casa da Imagem in its mission to promote different aspects of photography in São Paulo.




Repaisagem
Exposição de Marcelo Zocchio
23 de junho a 15 de setembro

A escuta do lugar

Porque uma cidade
sempre contém outra
dentro de si.

Mário Quintana

Enquanto escrevo este texto, o apartamento do vizinho passa por um processo de “modernização”, termo utilizado atualmente pelos corretores imobiliários como um sinônimo mais glamoroso de “reforma”. O choque de marretas contra as paredes e o trânsito da Avenida Angélica compõem a trilha sonora desta escrita, tornando o som dos dedos no teclado do computador mais um instrumento da grande sinfonia de carros e concreto.

O espírito renovador, acompanhado pelo apagamento do passado, não é novo nesta metrópole. Como grande parte da paisagem paulistana, o local onde se encontra a Casa da Imagem já passou por diversas mudanças. A construção que se vê hoje data de 1880. Antes disso, havia um casarão de taipa que abrigou, entre outras coisas, um hotel chamado Boa Vista, a partir do qual os hóspedes podiam “gozar-se da linda vista da várzea”, referindo-se às margens do Tamanduateí. Desde então, o rio foi retificado e silenciado. A várzea foi transformada em concreto. A boa vista encurtou-se e passou a ser uma cortina de árvores que habitam o pátio da casa, protegendo o olhar e atenuando a brutalidade com que a paisagem foi alterada.

A escuta de Marcelo Zocchio não se dirige ao ronco incessante da cidade voraz. O que o artista ouve é o silêncio de uma ausência, o vácuo deixado por um passado invisível que o faz perfurar o presente. Pesquisando imagens antigas, Zocchio indaga-se sobre o efeito escultórico do tempo em determinados locais da cidade. Utiliza-se das fotos de arquivo como se fossem mapas, onde busca o exato ponto a partir do qual as fotografias foram tiradas e ali reencena o clique original. Tal mirada é o único ponto fixo de toda essa história. É onde o artista finca a ponta seca do compasso e inicia o meticuloso desenho de sobreposição espacial e temporal apresentado em Repaisagem. 

Na imagem que mostra a Avenida 9 de Julho, vista a partir do Viaduto Martinho Prado, percebem-se algumas das escolhas do artista na edição das imagens fundidas. O lado esquerdo da foto prioriza o local em 1940, clicado por Benedito Junqueira Duarte. Ali ainda encontramos a vegetação de um terreno baldio, onde um grupo de crianças joga futebol. No entanto, já é possível notar ao fundo a cidade em construção, que resultaria no espaço apertado visto no lado direito da foto, em 2012, onde predomina um paredão de prédios. É nessa parede que se vê a sombra projetada dos edifícios que estavam no outro lado da rua no momento em que a foto atual foi tirada. Ao fundir as duas imagens, resta a sombra, mas já não se tem mais o corpo que a produziu. Revela-se assim o passado daquela fotografia, e não o do lugar.
 
Tais curtos-circuitos temporais e espaciais minam o senso de direção e, mais profundamente, ativam um estranho sentimento de pertencimento. Estranho porque a arqueologia proposta desencava uma cidade que não deixou traços no presente, e portanto não é familiar. Assim, a noção de pertencimento não se dá em relação a uma identidade estável construída historicamente, como o termo costuma evocar. A familiaridade reside no fluxo constante, na eterna substituição do presente por um vir a ser. Desmorona-se uma ideia apaziguada de lugar, movimento precisamente cartografado pela fina escuta do artista. Tudo o que se vê aqui não é, apenas está.

Jorge Menna Barreto


Because a city
always contains another
within.

Mário Quintana


On Hearing a Place

As I write this, my neighbour's apartment is undergoing a process of “modernization,” a term used currently by estate brokers as a more glamorous synonym for “renovation.” The impact of hammers against the walls and the traffic in Avenida Angélica are the soundtrack of this text, turning the sound of my fingers on the computer keyboard into another instrument of this great symphony of cars and concrete.

The spirit of renewal, together with the erasure of the past, is not something new in the metropolis. Like great part of São Paulo's cityscape, the localization of Casa da Imagem has already undergone several changes. The current building was built in 1880. Before that, there was a rammed-earth mansion which housed, among other things, a hotel called Boa Vista, from where the guests could “enjoy the beautiful view over the floodplain,” referring to the banks of the Tamanduateí river. Since then, the river has been straightened and silenced. The floodplain was turned into concrete. The beautiful view was shortened and became a curtain of trees in the courtyard, protecting the eye and softening the brutality with which the landscape was modified.

Marcelo Zocchio does not pay attention to the incessant and voracious rumble. What he hears is the silence of absence, the void left by an invisible past which makes him pierce through the present. By researching old images, Zocchio reflects about the sculptural effect of time on certain place of the city. He uses archival photographs as if they were maps, looking for the exact point where those pictures were taken and reenacting the original shoot. This view is the only fixed point in this whole process. It is where the artist sticks the dry tip of the compass and starts the meticulous drawing of spatial and temporal superposition shown in Repaisagem.

In the image of Avenida 9 de de Julho, seen from the Martinho Prado viaduct, some of the artist's choices can be perceived in the editing of merged images. The left side of the photograph prioritizes the location in 1940, shot by Benedito Junqueira Duarte. There one can see the vegetation of a vacant lot, where a group of children play football. However, one can already discern, in the background, the city under construction, which resulted in the tightly packed plot on the right, in 2012, with a wall of buildings. On this wall can be seen the shadows of the buildings across the street when the present-day photograph was taken. By fusing these two images, the shadow remains, but the body that produced it is no longer here. Thus, the past of that photograph, and not of that place, is revealed.

Such temporal and spatial short-circuits undermine our sense of direction and – in a deeper way – activate a strange feeling of belonging. Which is strange, because the archeology that Zocchio proposes digs up a city whose traces cannot be found in the present, so it is not familiar. Thus, the idea of belonging does not happen in relation to a stable, historically built identity, as the term usually evokes. Familiarity lies in the constant flow, in the eternal replacement of the present with a chain of transformations. Our peaceful notion of place is destroyed, a movement mapped in detail by the artist's attentive ear. Everything we see is transitory.


Potências de 10
Exposição de Marcelo Moscheta
23 de junho a 15 de setembro de 2013

Baseado no filme-documentário de Ray e Charles Eames Powers of Ten (lançado em 1977), no qual podemos ter uma viagem visual da dimensão dos limites do universo conhecido até o próton constituinte de uma molécula do corpo humano, o projeto Potências de 10 procura ilustrar de forma poética um deslocamento de tal amplitude, lançando mão de artifícios fotográficos como a escala alterada, a imagem invertida de objetos e a introdução de gráficos e números que sugestionam a percepção das imagens, fazendo o conhecimento sensível ser subordinado à objetividade contida na escala apresentada.

A mostra, premiada com o XII Prêmio Funarte Marc Ferrez de Fotografia, é formada por uma publicação de 32 páginas em formato tabloide em que estão apresentadas as imagens do ensaio sobre a relatividade das escalas do universo em frações de 10. Montadas como pranchas de ilustração científica, as imagens são dispostas no impresso de modo a percorrer uma viagem gráfica pelo nosso repertório visual, forçando-nos o ajuste de determinadas situações àquilo que conhecemos, ou não, mas que nos parece estranhamente familiar.

Potências de 10 levanta algumas questões fundamentais para o entendimento da nossa reação frente ao número abundante de imagens e informações que nos invadem de forma tão incisiva, o real conhecimento experimentado pelo contato com essas ofertas visuais, a relação tempo-espaço corporal e a constituição de um repertório imagético norteado por artifícios tecnológicos como ferramentas de navegação e mapas virtuais.

Certamente a fotografia contemporânea encara tais situações numa tentativa de se reinventar e se encaixar numa realidade que caminha rápido e que é uma das grandes protagonistas de nossas mudanças sociais e culturais. A exposição tem a capacidade de pontuar historicamente a ânsia do homem moderno de conhecer seus limites, bem como os alcances do universo em que habitamos.

Marcelo Moscheta



Powers of Ten, the objectivity of images

Based on the documentary-film Powers of Ten (1977), by Ray and Charles Eames, in which we can make a visual journey through the dimensions of the limits of our known universe down to a proton which is part of a molecule of the human body, the project Powers of Ten seeks to illustrate in a poetic way a shift of magnitude, making use of photographic techniques like altered scale, inverted images of objects and the introduction of charts and numbers influencing the way images are perceived, and subordinating perceptible knowledge to the objectivity contained in the scale presented.

This show, which was awarded the 12th Funarte Marc Ferrez photography prize, is formed by a 32-page publication in tabloid format in which are presented images of an essay on the relativity of scales of the universe in fractions of 10. Set up in the form of scientific illustration boards, the images are arranged in the print so as to go get us on a graphic journey though our visual repertoire, forcing us to adjust certain situations to what we know, or not, but which seems to us strangely familiar.

Powers of Ten raises some fundamental questions for understanding our reactions in the face of the numerous images and data flooding us very incisively, real knowledge experienced through the contact with these visual offerings, the relation between time-space and the body and the establishment of a repertoire of images guided by technological devices as navigation tools and virtual maps.

Certainly, contemporary photography faces such situations in an attempt to reinvent itself and to fit a reality which moves fast and is one of the great protagonists of current social and cultural changes. The exhibition is able to historically point out modern man's eagerness to know his own limits, as well as the scope of the universe we inhabit.




Pedra que repete

Instalação de João Loureiro
23 de junho a 15 de setembro de 2013


Não é só que as peças de João Loureiro se parecem com a projeção tridimensional de representações gráficas – o trabalho também quer “bidimensionalizar” o espaço onde se apresenta; torná-lo virtualmente plano, para agir ali como imagem; sobrepor-se ao contexto e animá-lo com volumes que estão o tempo todo em atividade; num ritmo do tipo “enquanto descansa, carrega pedras”; ou seria algo como “enquanto carregam-se as pedras, a economia gira”?; talvez os dois, nem por isso há sinal de progressão; o que a renitência, essa agitação surda, da exposição faz é desconfiar dos valores da moeda – na prática, mordê-la; deslocar sorrateiramente as coisas, de um lado para o outro, de volta, de novo; e jamais abolir o acaso, mantendo o fado, a sorte, de pé, cara e coroa a uma só vez; até que, juntas, gerem uma terceira e uma quarta imagens: figura e fundo, porém, nunca simultâneas, apenas reversíveis, ou uma ou outro, sem chance de um resultado, sem chance de qualquer elemento totalizante; como acontece, aliás, entre os trabalhos e o lugar, relação para a qual não está dada a integração; ao contrário, aqueles, os trabalhos, não se camuflam nem alteram as características físicas deste, o lugar; mais, resistem a aderir ao entorno, mantido como tal, um entorno; descolam-se do beco, da sala da casa, para, com discrição, reivindicar evidência, visibilidade, tanto quanto independência; dá no mesmo dizer que, além de se fazerem presentes, tomam partido; embora concebidas com base em especificidades arquitetônicas, urbanísticas, socioculturais, enfim, na história da região – inclusive nos modos como o passado faz as suas aparições na atual configuração do local –, as peças insistem em afirmar as próprias especificidades; leis internas que regem essa obra há cerca de 20 anos e que se fundamentam em procedimentos de figuração, na escolha de referentes mundanos para uma representação esquemática, descendente do desenho – seja ele técnico, da história em quadrinhos, do desenho animado; por exemplo, daquela materialidade ambígua, aparentemente rígida e que se mostra molenga em determinadas ocasiões –, muitas vezes com aspecto de brinquedo, ou pelo menos com uma visualidade de atração infantil, em construções rigorosas – desde a ideação até o acabamento de aparência industrial – e que oscilam entre as duas e as três dimensões; essa produção tem e deixa claro que, de um lado, as intervenções que realiza e, de outro, a autonomia de seus objetos não são excludentes; de tão artificiosos, os trabalhos operam para desnaturalizar a apreensão do real, do qual, por sua vez, a ficção participa; mais do que imagens em movimento, estão em ação aqui imagens de movimento, de pedras que se movem, de uma moeda em rotação, sem pausa nunca; mas, claro, essas não são pedras nem moeda; tampouco são representações de pedras e moeda; são, isso sim, a projeção tridimensional de representações gráficas de pedras e moeda que assumem o funcionamento de máquinas, de motores acionados por e para exercícios de imaginação; aos giros, em circuitos, num bate-volta; contínuos, sem começo nem fim.

José Augusto Ribeiro


The pieces of João Loureiro not only resemble a three-dimensional projection of graphical representations – his work also wants to “bidimensionalise” the space where it is displayed; to make it virtually flat, to function there as image; to override the context and animate it with volumes that are constantly in activity; in a “resting-while-carrying-stones” manner; or even “while-stones-are-carried,-the-economy-ticks”?; perhaps both, but with no signs of any progression; what the reluctance, the silent restlessness of the exhibition does is distrust currency values – in practice, to bite them; stealthily displace things, from one side to the other, again; never abolishing chance, keeping fate and destiny standing, heads and tails simultaneously; until they generate, together, a third and a fourth images: figure and background,never simultaneous, however, only reversible, one or the other, with no possibility of a result, without any chance of a totalising element; as happens, moreover, between the works and the place, a relation to which integration is not given; on the contrary, the works are neither disguised nor change the physical characteristics of the place; more than that, they resist to adhere to their surroundings, maintained as such, surroundings; they move away from the alley, from the living room, to discretely claim evidence, visibility, as well as independence; it is the same as saying that, in addition to being present, they take sides; although they are conceived based on architectural, urban and socio-cultural specificities, after all, in the history of the region – including the ways in which the past appears in the current configuration of the place –, the works insist in affirming their own specificities; internal laws that governed the work for over 20 years and which are based on figuration procedures, on the choice of mundane references for schematic representation originated from drawing – technical, comic books or animated films; for example, from that ambiguous, seemingly rigid materiality which proves at times soft –, often like a toy, or at least with a visuality of child-like attraction, in rigorous constructions – from ideation to a seemingly industrial finish – oscillating between two and three dimensions; this production has and makes it clear that, on the one hand, the interventions it carries out and, on the other, the autonomy of its objects, are not mutually exclusive; the works are so artful that they operate to denaturalise the apprehension of the real, in which, in turn, fiction participates; more than moving images, here moving images act. Images of moving stones, of a coin spinning with no pause; but, of course, these are not stones or a coin; nor are they representations of stones and a coin; they are rather the three-dimensional projection of graphic representations of stones and a coin which take over the functioning of machines, engines driven by and for an exercise in imagination; in spins, circuits, back and forth, with no beginning or end.



Urbanas, fotografias de German Lorca
15 de novembro de 2012 a 26 de maio de 2013

A excelência da obra de German Lorca o coloca entre os autores que contribuíram significativamente para a história da fotografia paulista. É notável o progressivo apuro técnico e estético, aprimorado a partir de sua atuação em diferentes segmentos – experimentação, reportagens, documentação e publicidade. É igualmente notória à gênese criativa de Lorca, constituída após a experiência com os ativistas do Foto Cine Clube Bandeirante e de sua participação na estruturação do laboratório fotográfico no Museu de Arte de São Paulo, os mais importantes pólos irradiadores do pensamento que articulou a fotografia moderna em São Paulo neste momento.

A breve carreira como contador não resistiu à sedução das primeiras imagens, decidindo-se pelo ofício de fotógrafo em 1948. Nos anos seguintes, seu trabalho autoral foi reconhecido com premiações e participações em exposições e publicações nacionais e internacionais. Em 1954, Lorca inicia as atividades do seu estúdio especializado em fotografias técnicas e publicitárias, atendendo à demanda do mercado em expansão nas décadas posteriores, sem, contudo, jamais abandonar a fotografia autoral e a documentação da cidade.

A grande mobilização em torno do IV centenário de fundação de São Paulo despertou seu interesse em participar das comemorações, produzindo um eloqüente registro do desfile cívico no Parque Anhangabaú e da solenidade de inauguração da Catedral da Sé que reuniu autoridades políticas e religiosas convidadas para o evento. As fotografias de Lorca denotam grande familiaridade com a cidade, um dos temas recorrentes em sua produção e objeto central desta exposição. Em algumas imagens, notamos a sagacidade de sua visão e a capacidade de operar o sistema de enquadramento e recorte para gerar a abstração e estranhamento dos espaços urbanos, observados na fotografia da rua São Vicente de Paula que ilustra a página anterior. Também está exposta uma seleção de registros em grande plano que apontam o crescimento vertical da paisagem no perímetro central de São Paulo, em muitos casos obtidos do topo dos prédios.

Os registros da cidade, executados em plano aberto e parcialmente reunidos nesta exposição, foram captados por Lorca entre os anos 1950-1960. Soma-se à sua preponderante força estética a relevância histórica que estas imagens adquiriram, devido as constantes transformações de São Paulo e à intrínseca propriedade de revelar aspectos urbanos e sociais deste período agora longínquo, a exemplo da geometria das construções operárias das ruas que cercam os galpões no Brás ou dos flagrantes dos cortiços.

Urban scenery, photographs of German Lorca
november 15 to 2012 - may 26, 2013

German’s Lorca breakthrough work places him among those who gave a remarkable contribution to the history of São Paulo photography. The progressive technical and aesthetic perfection developed in different segments – experimentation, reportages, documentation and publicity – is unparalleled. Also notorious is Lorca’s creative genesis, which emerged after his experience with the activities of the Foto Cine Clube Bandeirante and his participation in the structuring of the photographic laboratory of the Museu de Arte de São Paulo-MASP, the most important knowledge-production centers that articulated modern photography in São Paulo at that time.

Lorca’s brief career as an accountant yielded to the seduction of the first images, when he decided to become a photographer, in 1948. In the following years, his works were honored with awards and participations in national and international exhibitions. In 1954, Lorca begins his studio activities specialized in technical and publicity photographs, given the expanding market demand in the following decades, without, however, never abandoning his own creative photography and the city documentation.

The intense mobilization around the four hundred years of the São Paulo city foundation aroused his interest in the celebrations, when he produced eloquent images of the Anhangabaú Park civic parade and of the inauguration of the Catedral da Sé, which gathered political and religious authorities invited to the event. Lorca’s photography denotes great acquaintance with the city, one of the recurrent themes of his production and core subject of this exhibition. In a set of these images we perceive his sagacity and capacity to frame and cut the photographs, which causes a sense of abstraction and uneasiness towards the urban spaces, verified in the photograph of São Vicente de Paula street, which illustrates the previous page. Also in the exhibition is a selection of close-range photographs that register the vertical growth of the central perimeter of São Paulo, often taken from the top of the buildings.

Overall, Lorca registered the growth of the city, particularly in the fifties and sixties, market by his aesthetic strength and the historical relevance acquired in the latest years, due to the intrinsic capacity to reveal urban and social aspects of this period, particularly in the shots of slum tenements or in the geometry of the workers’ buildings on the streets around the sheds of Brás, a low-income neighborhood.



Bloqueio como conexão
Rubens Mano
15 de novembro de 2012 a 26 de maio de 2013

No primeiro semestre de 2012 o artista Rubens Mano presenciou e documentou a ação comandada pela prefeitura que destruiu grande parte das caixas de madeira usadas para o transporte de hortifrutis no Ceasa, em São Paulo. Caixas que, produzidas e vendidas de maneira informal, empilhavam-se de modo instável e vertiginoso nas calçadas próximas ao grande mercado. Surgem assim, desse episódio, interessantes percepções acerca das dinâmicas visíveis e invisíveis presentes na produção do espaço físico e social da metrópole: 1) a crescente especulação imobiliária, que transforma vastas áreas da cidade e empurra os serviços de apoio, ainda artesanais, para a informalidade, isto é, para a ilegalidade; 2) contenedores vazios, as caixas são tanto metáforas da mercadoria circulante quanto módulos estruturais em si, isto é, símbolos de uma racionalidade construtiva que vai também se tornando recessiva nas dinâmicas imateriais da cidade contemporânea.

Apropriando-se poeticamente dessas caixas como ready-mades urbanos, Rubens Mano cria uma grande montanha que obstaculiza a passagem. E se as pilhas originais, tal como vemos nas fotos, se escoravam em espaços estreitos de calçadas contra muros descascados, envolvendo postes e árvores, no Beco do Pinto o artista cria um volume profundo e impenetrável, e autônomo enquanto forma geométrica e cargas portantes. Assim, enquanto o corte no primeiro caso está associado à destruição e remoção das caixas, no segundo ele reaparece como interrupção de um fluxo através das mesmas caixas, em uma espécie de retorno simbólico do reprimido, para falar em termos psicanalíticos. Sendo o trabalho de arte uma ação física real, é como se a dinâmica de transformação de uma parte da cidade ativasse involuntariamente processos em outros locais, reaparecendo então como enigma, e sem deixar de trazer também, nela inscrita, uma componente de violência surda.

Quase no pé do antigo Colégio dos Jesuítas, o Beco do Pinto é uma das vielas íngremes construídas para conectar a colina histórica da cidade à baixada do rio Tamaduateí, onde se situa, significativamente, a primeira Zona Cerealista de São Paulo. Fechado por um portão, o Beco já está hoje interditado ao livre trânsito entre essas áreas, deixando de ser um espaço público. Assim, ao edificar uma rigorosa trama de caixas entre a antiga Casa no 1 da cidade e o Solar da Marquesa de Santos, Rubens Mano conecta discursivamente elos invisíveis da metrópole, ainda que na forma física de uma obstrução. Um bloqueio que também funciona como elemento de conexão.

Guilherme Wisnik, 2012



Blockade as connection
Rubens Mano
november 15 to 2012 - may 26, 2013

In the first half of 2012, artist Rubens Mano witnessed and documented the action taken by São Paulo City Hall to destroy the majority of the wooden boxes used to transport produce in Ceasa (São Paulo’s main fruit and vegetable market). Boxes which, made and sold informally, stand in precarious, disordered piles on the sidewalks around the huge market. What arose from these episodes then were interesting perceptions on the visible and invisible dynamics present in the production of physical and social space in the city:1) the growing property speculation, which transforms vast areas of the city and pushing still artisanal support services towards informality, which is to say towards illegality; 2) empty containers, the boxes are as much a metaphor for the transported merchandise as structural modules in themselves, that is, symbols of a constructive rationality which is also becoming recessive in the nonmaterial dynamics of the contemporary city.

Appropriating these boxes poetically as urban ready-mades, Rubens Mano creates a large mountain that obstructs the way. And if these original piles, as we can see in the photos, lean against peeling walls, encircling posts and trees in the narrow sidewalk space, in Beco do Pinto the artist creates a deep and impenetrable volume, also autonomous both in its geometrical form and its sustaining forces. Thus, while the cut in the first instance is related to the destruction and removal of the boxes, in the second, it reappears as an interruption of the flow of the same boxes, in a kind of symbolic return from a state of repression, to use psychoanalytical terms. As the work of art is a real physical act, it is as if the dynamic of the transformation of a part of the city were involuntarily activating processes in other locations, thus reappearing as an enigma, and not failing to bring also, inscribed in it, a component of inexorable violence.

Running almost up to the Jesuit College, Beco do Pinto is one of the steep laneways constructed to connect the historical city hill to the lowlands of the Tamaduateí River, which is, interestingly, home to the first Zona Cerealista (cereal producing zone) in São Paulo. Closed off by a gate which today impedes free transit between these areas, the Beco is no longer a public space. Thus, on building a rigorous network of boxes between the city’s old House No 1and the former residence known as Solar da Marquesa de Santos, Rubens Mano discursively connects invisible city links, albeit in the physical form of an obstruction. A blockade that also works as an element of connection.

Guilherme Wisnik, 2012

A cidade desaparecida de Militão Augusto de Azevedo
22 de setembro a 9 de dezembro de 2012

Nos primeiros anos de 1860, em São Paulo moravam cerca de 30 mil pessoas em casas de taipa e cobertas com telha batida, alinhadas em ruas desordenadas pelas quais tropas se deslocavam cruzando os largos em direção às estradas. Nesse período, poucas nascentes forneciam água de boa qualidade e a população transitava nas ruas com potes para coleta nas fontes. O tempo fluía brandamente: percorria-se a pé de um extremo ao outro (Piques, Carmo ou Seminário) e a passagem das horas era assinalada pelos sinos. Não eram raros trajes cobrindo os rostos, e as janelas com treliças permitiam a observação discreta da rua. Passeios a lugares distantes, como o Brás ou a confluência dos Rios Tamanduateí e Tietê, duravam o dia todo.

Nesse cenário, por volta de 1862, vindo do Rio de Janeiro, Militão Augusto de Azevedo (1837-1905) estabeleceu-se em São Paulo e passou a trabalhar como assistente do estúdio Carneiro & Smith. Coube ao jovem carioca realizar a primeira documentação fotográfica da paisagem paulista, a mais rica descrição iconográfica produzida nesse período. Em 1875, adquiriu o estúdio que recebeu sucessivamente os nomes de Photographia Acadêmica e Photographia Americana. Neste último estabelecimento havia um caderno de atividades no qual miniaturas dos retratos dos clientes eram coladas ao lado do número da ordem de serviço, instrumento de controle que, no século seguinte, se transformou no mais importante inventário dos tipos sociais de sua época, revelando a diversidade de frequentadores e a composição da sociedade – escravos, comerciantes, estudantes, personalidades. A concorrência entre as casas de fotografia intensificava-se nesse momento, impulsionada pelos alunos da Academia de Direito, ávidos por recordações da fase estudantil. Era frequente a publicação de anúncios no Correio Paulistano oferecendo serviços fotográficos, entre os quais ressaltamos um que ilustra o prestígio do retrato. Assinado por Gaspar Antônio da Silva Guimarães, sócio do estúdio em que Militão trabalhava, o anúncio concedia generoso desconto aos voluntários da Guerra do Paraguai (1864-1870), que desejavam perpetuar sua fisionomia como lembrança aos mais próximos e queridos.

Ao término da Guerra as locomotivas da São Paulo Railway cruzavam as várzeas e a noção de progresso e modernidade ganhou impulso. Nas décadas seguintes, as técnicas construtivas europeias sobrepuseram-se às antigas construções, redesenhando o espaço urbano.

Apesar da intensa participação de Militão como retratista nesse período, o Photographia Americana encerra as atividades em 1887. Percebendo as marcas do tempo, o fotógrafo decide retornar aos pontos registrados na década de 1860, produzindo a sua segunda documentação das ruas. O resultado desse novo ensaio apontou modificações surpreendentes, como nos Largos da Assembleia e do Palácio. Surge nesse ano o Álbum Comparativo de Vistas da Cidade de São Paulo (1862-1887), relacionando as duas documentações, edição que marcou o final do percurso profissional de Militão, já aos 50 anos de idade.

Pouco restou desta cidade, exceto algumas igrejas (São Gonçalo, Convento da Luz), o Obelisco do Piques, o traçado das ruas, a memória dos viajantes e o ensaio fotográfico realizado por Militão Augusto de Azevedo há exatos 150 anos, cujas matrizes em negativo de vidro, reproduzidas por Aurélio Becherini em 1915, encontram-se preservadas no acervo da Casa da Imagem de São Paulo.



The vanished city of Militão Augusto de Azevedo
september 22 - december 9, 2012

In the first years of the 1860s, about 30 thousand people lived in São Paulo in mud houses covered with clay tiles, lined up in meandering streets through which herds of cattle moved, crossing the urban plazas towards the roads. At this time, few springs provided good quality water, and the population walked around the streets with jars to collect water from the fountains. Time passed slowly: people walked from place to place (Piques, Carmo, or Seminário), and the passage of time was marked by bells. It was not rare to see people with veiled faces, and lattice windows enabled the discrete observation of the street. Outings to distant places, such as Brás or the confluence between the rivers Tamanduateí and Tietê, lasted all day.

In this scenario, around 1862, coming from Rio de Janeiro, Militão Augusto de Azevedo (1837-1905) became established in São Paulo and began working as an assistant at the Carneiro & Smith studios. The Carioca young man was commissioned to make the first photographic documentation of the Paulista capital, the richest iconographic description produced at the time. In 1875, he bought the studio, which was successively named Photographia Acadêmica [Academic Photography] and Photographia Americana [American Photography]. In the latter, there was an activity log in which miniatures of the clients’ portraits were glued next to the corresponding service order numbers, a management tool that in the following century would become the most important inventory of the social types of that epoch, revealing the diversity of the studio’s customers and the composition of society – slaves, store owners, students, prominent figures. The competition between photography studios became more intense at that moment, driven by Law School students eager to collect mementos of their student days. Advertisements offering photographic services were often published in the Correio Paulistano [Paulistano Gazette], among which we highlight one that illustrates the prestige of portraits. Signed by Gaspar Antônio da Silva Guimarães, a partner at the studio where Militão worked, the ad offered a generous discount to volunteers of the Paraguayan War (1864-1870) who wished to perpetuate their physiognomy as a souvenir for their loved ones.

When the Paraguayan War ended, the São Paulo Railway locomotives crossed the leas, and the notions of progress and modernity gained momentum. In the following decades, European building techniques replaced the old constructions, redrawing the urban space.

In spite of Militão’s intense participation as a portraitist during this period, the Photographia Americana studio closed in 1887. Noticing the marks of time, the photographer decides to go back to the sites he had registered in the 1860s, producing his second documentation of the streets. The result of this new essay revealed remarkable changes, such as at the Assembleia and Palácio plazas. That year saw the publication of the Álbum Comparativo de São Paulo (1862-1887) [1862-1887 Comparative São Paulo Album], comparing the two essays, a publication that marked the end of Militão’s professional trajectory, at almost 50 years of age.

These street landscapes are witnesses of a vanished city, becoming essential for its imaginary recreation. Their legacy supported researchers of the city’s history in the last century, and now these landscapes are brought back to life through electronic media.

Little remains of this city, except for a few churches (São Gonçalo and the Luz Convent), Piques Obelisk, the outline of the streets, the travelers’ memoirs, and the photographic essay done by Militão Augusto de Azevedo exactly 150 years ago, whose glass negative matrixes, reproduced by Aurélio Becherini in 1915, have been preserved at the Casa da Imagem [Image Institute] collection in São Paulo.






Ao Viajante | Clínica Oculística

Tombo, de Rochelle Costi

22 de setembro a 9 de dezembro de 2012

“Demolição do prédio. Grande liquidação”, anunciam cartazes na fachada do edifício à direta do negativo de vidro na Travessa da Esperança; ao lado, na cidade em plena transformação, dois letreiros chamam a atenção: “Ao viajante” e “Clínica oculística”. Belas pistas para seguir atravessando o território proposto por Rochelle Costi na Casa da Imagem.

Os negativos, fotografias de Aurélio Becherini1, assim como as fichas de B. J. Duarte2, aparecem fotografados dentro da área de estocagem e preservação. Cidade dentro de fichas, dentro de salas, como lugares inesperados vislumbrados na caixa-cápsula prenhe de tantos relatos. Sobreposições de tempos e espaços que encanta pelo ordinário da vida naquilo que ela pode trazer de extraordinário. Levam a uma espécie de suspensão típica de quando revisitamos, surpresos, paisagens esquecidas e, com alegria e certo susto, reconhecemos novas paisagens.

No centro da sala, em certa “desordem”, encontram-se seis arquivos. Ao bordejá-los com atenção, descobrem-se inseridos, de modo improvável, olhos mágicos. O dispositivo ótico amplia e distorce a profundidade da gaveta reinventando sua escala. Transforma equipamentos de fotografia analógica, recolhidos no acervo do museu, em um distante e inesperado panorama animado.

Com objetos que até pouco tempo faziam parte do cotidiano da prática fotográfica, esses velhos, agora novos, artefatos, criteriosamente construídos, sofisticadamente iluminados, surgem como paisagens mágicas: reais e ficcionais. Ocupam o centro da sala de modo aparentemente aleatório, em um estágio de suspensão em que as coisas, fora do lugar, anunciam sua potencial partida ou sua iminente chegada. E tudo a girar, a girar, a girar...

Na fronteira entre memória e esquecimento, na forma engenhosa em que esquecer a literalidade do fato abre caminho para o novo e, ao mesmo tempo, lembrar nos permite não esquecer de nós mesmos, o passado, na obra de Rochelle Costi, parece ter esquecido que passou.


1“Becherini foi um fotógrafo preocupado com tudo aquilo que estava em vias de desaparecer e, ao mesmo tempo, com as novidades que adentram o espaço urbano.” FERNANDES JÚNIOR, Rubens. Aurélio Becherini. São Paulo: Cosac Naify, 2007. Qualquer semelhança com Rochelle Costi não é mera coincidência! O primeiro negativo, Rua Marechal Deodoro, 1910; o segundo, Vale do Anhangabaú, 1912.
2Sobre o laborioso processo de catalogação na antiga seção de iconografia feito por B. J. Duarte, no qual esteve de 1934 a 1964, ver: DUARTE, B. J. Caçador de imagens. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

Marta Bogéa, 2012


To the Traveler | Oculistic Clinic
Rochelle Costi’s

“Demolition of the building. Great sale”, say the posters on the façade of the building at the right of the glass negative in Travessa da Esperança; next to it, amidst the transforming city, two signs call our attention: “To the traveler” and “Oculitic clinic”. Good clues to keep crossing the territory proposed by Rochelle Costi in Casa da Imagem.

The negatives, photographs by Aurélio Becherini1, along with the notes by B. J. Duarte2, appear photographed inside a storage and maintenance area. A city inside notecards, inside rooms, as unexpected places glimpsed in the capsule-box pregnant of so many stories. Juxtapositions of times and spaces that enchants us by the commonplace life found in that which it can bring as extraordinary. They produce a kind of typical suspension we feel when revisiting in awe forgotten landscapes and when, with joy and same perplexity, we recognize new landscapes.

In the middle of the room, in certain disarray, there are six archives. By circulating them with a bit of attention we find eyeholes inserted on them in a random way. The optical dispositive expands and distorts the depth of the drawer, reinventing its scale. It transforms equipment of analogical photographic, taken from the museum’s archive, into a distant and unexpected animated panorama.

With objects that until not long ago were part of the photographic practices, these old, but now new artifacts, zealously built and sophistically lit, appear as magical landscapes: both real and fictional. They occupy the center of the room in an apparently random way, in a state of suspension in which things, once displaced, announce its potential departure or imminent arrival. And everything turns, turns, turns…

On the border between memory and forgetfulness, the ingenious way in which to forget the literality of the fact opens way for the new and, at the same time, to remember allows us not to forget ourselves, the past, in Rochelle Costi’s work, seems to forget its own passing.


1“Becherini was a photographer concerned with all that was about to disappear and, at the same time with the novelties introduced in the urban space” FERNANDES JÚNIOR, Rubens. Aurélio Becherini. São Paulo: Cosac Naify, 2007. Any similarity with Rochelle Costi is not coincidence. The first negative, Rua Marechal Deodoro, 1910; the second Vale do Anhangabaú, 1912.
2About the painstaking cataloguing process in the old iconography sector created by B. J. Duarte, in which he was located from 1934 to 1964, see: DUARTE, B. J. Caçador de imagens. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

Marta Bogéa, 2012




Aristodemo Becherini: entre a cidade e a publicidade

21 de abril a 8 de setembro de 2012

Nascido em 1910, Aristodemo Becherini deu continuidade ao ofício da família, iniciado por seu pai, Aurélio Becherini (1879-1939), primeiro repórter fotográfico da imprensa paulistana e autor de importante documentação da cidade executada nas primeiras duas décadas do século XX. Em parceria com o irmão Henrique, conduziu um estúdio que os posicionaram com pioneirismo na publicidade, substituindo as ilustrações por imagens fotográficas nos anúncios. Na juventude, Aristodemo foi modelo, posando para campanhas desenvolvidas pelo irmão para a agência J. W. Thompson. Também produziu imagens para a indústria petrolífera, ferroviária, rodoviária, papéis e telefonia. Em 1959, após a morte do irmão, transfere o estúdio para a Rua Xavier de Toledo e fotografa com exclusividade para a Indústria General Motors até a aposentadoria.  

Entretanto, apesar do vínculo com a fotografia aplicada, Aristodemo não se afastou das relações mais imediatas da apropriação. Em seu arquivo encontram-se ensaios sobre episódios da história de São Paulo, como as manifestações comunistas; o discurso de Júlio Prestes no Estádio do Pacaembu; a visita do general Eurico Gaspar Dutra; e o funeral do secretário da Segurança Pública Estadual Alfredo Issa Ássaly. O fotógrafo ainda registrou festividades do cotidiano, a exemplo do ano-novo, carnaval, saltos de paraquedismo e competições esportivas no Clube de Regatas Tietê.

De modo mais sistemático, é na fotografia urbana que notamos a cumplicidade do autor com a cidade. Este grupo de imagens, cuja seleção é apresentada na exposição, foi captado com regularidade desde seus 14 anos, convertendo-se na atualidade em um precioso memorial dos espaços públicos de sociabilidade, lazer, consumo, trabalho e deslocamento, observados de diversos planos, inclusive aéreos. Num claro reflexo da fotografia publicitária, utiliza-se dos recursos de enquadramento para pôr em evidência os prédios que deseja ressaltar, num esforço para extraí-los do tecido urbano, tendência também empregada para destacar os anúncios eletrônicos nas fotografias noturnas.

Sob o ponto de vista arquitetônico e urbanístico, e considerando a tríade construtiva da cidade defendida por Benedito Lima de Toledo, estas imagens, realizadas entre 1925-1950, retratam a fase final da segunda edificação de São Paulo, erguida a partir da afluência da riqueza do café e industrialização. O surgimento dos prédios rompe a linearidade do horizonte, impondo ao fotógrafo o distanciamento da câmera para estruturar a composição da cena. Decorre desta operação a redução da escala de seus habitantes nas imagens, levando ao quase desaparecimento de suas fisionomias. Os prédios também introduziram na paisagem da cidade os novos estilos construtivos do modernismo, acentuando o contraste com os casarões, vistos de modo especial nas fotografias da Rua São Bento, Avenida Nove de Julho e Avenida São João. Em consequência do salto populacional desse período (de 500 mil para mais de 2 milhões de habitantes), a verticalização do espaço urbano assinala o surgimento da terceira fase da capital paulista.

A Coleção Aristodemo Becherini foi incorporada ao Acervo Iconográfico da Prefeitura de São Paulo após a morte do fotógrafo, em 1985, doada por sua filha Araceli Becherini. Simultaneamente à exposição, o banco de dados da Casa da Imagem de São Paulo disponibiliza uma seleção de imagens do fotógrafo para pesquisa na Sala de Consulta.

Henrique Siqueira, 2012



Aristodemo Becherini: between publicity and the city
April 21 – september 8, 2012

Born in 1910, Aristodemo Becherini gave continuity to the family business, which was started by his father, Aurélio Becherini (1879-1939), first photographic reporter of São Paulo’s press, and the author of an important documentation of the city in the first decades of the 20th Century. In partnership with his brother Henrique, Aristodemo run a photo studio that placed them among the country’s publicity pioneers, replacing illustrations by photographic images in ads. As a young man, Aristodemo was a model, posing for campaigns developed by his brother for the J. W. Thompson advertising agency. He has also produced images for the oil, railroad, auto, paper and telephony industries. In 1959, after the death of his brother, Aristodemo transfers the studio to Xavier de Toledo St. and photographs exclusively for the General Motors Industries until retirement.

Nevertheless, despite close connection to applied photography, Aristodemo didn’t distance himself from the most immediate relations of appropriation. In his archives one finds essays on episodes of São Paulo’s history, such as the communist manifestations; Júlio Prestes’ speech delivery at Pacaembu Stadium; the visit of General Eurico Gaspar Dutra; and the funeral of the State Secretary of Public Security Alfredo Issa Ássaly. The photographer documented as well popular festivities, such as the New Year’s Eve, Carnival, parachuting shows and sports events at the Clube de Regatas Tietê.

Systematically, it’s is in urban photography that we clearer notice the author’s complicity with the city. The group of selected images shown in this exhibition was captured regularly since the author was 14 years-old, and has been converted today in a precious memorial of the social public spaces for leisure, commerce, work and transportation, observed from different angles, including aerial. In a clear influence of advertising photography, the author employs framing techniques to highlight buildings of his choice, in an effort to extract them from the urban fabric, a tendency also used to highlight electronic ads in nocturnal photographs.

From the architectural and urbanistic point of view, and considering the constructive triad of the city defended by Benedito Lima de Toledo, these images, taken between 1925 and 1950, portray the last phase of the second edification of São Paulo, built with the input of wealth generated by coffee and industrialization. The emergence of buildings breaks the linearity of the horizon, imposing on the photographer the resource of distancing the camera in order to structure the scene’s composition. Such operation results in a reduction of the scale of the inhabitants in the images, which in turn generates the almost disappearance of their physiognomies. The buildings also introduce in the city’s landscape the new building styles of Modernism, stressing the contrast with the mansions, specially seen in the photographs of São Bento St., Nove de Julho Ave. and São João Ave. As a consequence of the high increase of population in this period (from 500 thousand to over 2 million inhabitants), the verticalization of the urban space marks the emergence of São Paulo’s third edification period.

The Aristodemo Becherini collection was incorporated to the Iconographic Archives of São Paulo’s City Hall after the photographer’s death in 1985, donated by his daughter Araceli Becherini. Simultaneously to the exhibition, the database of Casa da Imagem de São Paulo will make available a selection of the photographer’s images for research at its consultation room.

Henrique Siqueira, 2012




A Praça Ramos de Azevedo na fotografia de Carlos Moreira
21 de abril a 8 de setembro de 2012

Destaque entre os nomes de maior prestígio da fotografia urbana de São Paulo, Carlos Moreira é reconhecido pela eloquência da obra construída em sua trajetória profissional. Economista de formação, desde 1964 dedica-se à fotografia, estimulado, como costuma afirmar, pela expectativa de “registrar algo interessante” em suas constantes caminhadas.

É justamente no deslocamento pela cidade que Moreira encontra seu objeto preferido. Sob a ótica do autor, a rua apresenta-se como palco deflagrador de reações entre os agentes urbanos – físicos e humanos –, convertendo-se em local ideal para o registro. De fato, em suas fotografias as cenas de rua adquirem uma rara equação de naturalidade, na qual parece não haver artificialidade entre os elementos da composição.

Vista na totalidade, a sua produção torna-se ainda mais sensível e singular devido à tendência em inserir as pessoas no recorte da cidade, decisão que indica maturidade e envolvimento do fotógrafo, resultando em enquadramentos elegantes e sintéticos, muitas vezes recompensados com o fugidio olhar consensual que legitima as relações do ato fotográfico. Sendo verdadeira a hipótese de que os habitantes das metrópoles perderam a espontaneidade de serem fotografados, imagens como as de Moreira tornam-se cada vez mais raras e custosas.

A exposição A Praça Ramos de Azevedo na fotografia de Carlos Moreira apresenta uma seleção de imagens realizadas desde os anos 1960. Figuram nestas imagens as transformações da praça e seu entorno, como o desaparecimento do Palacete Prates e a construção do prédio que o substituiu, no lado oposto à praça, e a construção dos túneis, que alterou o uso e a função social da região. Sobretudo, as cinco décadas de registro deixam evidentes os diferentes personagens que por ela transitaram, marcados pelo modismo de cada geração.

Henrique Siqueira, 2012

 
Ramos de Azevedo Square in Carlos Moreira’s photographs
April 21 – september 8, 2012

A major name among the most prestigious urban photographers of São Paulo, Carlos Moreira is recognized by the eloquence of the work he accomplished during his professional career. An economist by training, since 1964 Carlos Moreira dedicates himself to the art of photography, encouraged, as he uses to say, by the anticipation of “registering something interesting” during his frequent walks.
 
Precisely, moving through the city Moreira finds his preferred object. From the author’s point of view, the street is seen as a stage that triggers reactions among urban agents – both physical and human – becoming an ideal site for documentation. Indeed, street scenes acquire a rare natural equation in his photographs, which convey no trace of artificiality among the elements of composition.
 
When analyzed as a single unity, Moreira’s production becomes even more insightful and singular due to the artist’s tendency to include people in the city’s enclosure, a choice that indicates the photographer’s maturity and involvement, generating both elegant and concentrated framings, often rewarded with a fleeting consensual glance that legitimates the relations of the photographic act. Assuming as true the hypothesis that the inhabitants of a metropolis have lost the spontaneity of being photographed, images such as those produced by Carlos Moreira become increasingly rare and valuable.
 
The exhibition Ramos de Azevedo Square in Carlos Moreira’s photographs presents a selection of images produced since the 1960’s. Featured in these images are the transformations of the square and its surroundings, such as the disappearance of the Prates Small Palace and the construction of the building that replaced it, on the opposite side of the square, and the construction of the tunnels that altered the use and social function of the whole area. Above all, the five documented decades highlight the different characters that went through the square, marked by the fashion of each generation.

Henrique Siqueira, 2012




Meu chapéu tá la no alto do céu
Quase ao alcance das mãos
21 de abril a 2 de dezembro de 2012

Na mitologia grega, Anteu, filho de Posêidon e Gaia, era um gigante que extraía sua força descomunal do contato com a Terra/Gaia, sua mãe. Tão logo deixasse de tocá-la, via seu vigor reduzir-se. E foi assim, alçando-o do chão, que Hércules o matou. Em muitos dos seus trabalhos, Ana Paula Oliveira realiza um procedimento oposto. A artista costuma usar estacas ou cunhas de madeira para elevar ou sustentar coisas e animais e, desse modo, reforçar sua presença. Podem ser os peixes de Instável (2012), a borracha de Iminente (2009) ou o estrado de Diadema (2003). Pouco importa. A inteligência das obras consiste justamente em pô-los numa situação estranha à sua posição natural e com isso torná-los mais visíveis, potentes e perigosos. E o interessante é que, a cada novo trabalho, Ana Paula consegue chegar a significados diversos, ainda que seus procedimentos não mudem radicalmente.

A atual instalação, Meu chapéu tá no alto do céu, tem algo dos quintais da infância e por isso as jabuticabeiras precisam ser alçadas, com raízes e tudo. A mudança de escala das árvores foi necessária para nos devolver o tamanho que tínhamos no tempo em que um pé de fruta reparava todas as injustiças do mundo. E o Beco do Pinto, bem no centro desta cidade de poucos quintais, foi a alternativa que lhe restou.

Mas por que alçá-las de modo meio rude, usando dormentes já carcomidos pelo tempo, desproporcionais ao peso que sustentam? Acredito que, em parte, essa escolha se explica literalmente: erguidas de maneira algo brutal pelos dormentes, as jabuticabeiras se mostram desterradas. As alegrias da infância não podem ser mais resgatadas. Resta apenas restituir-lhes uma imponência perdida. Distribuídas pelos diversos patamares da ladeira, as árvores parecem cumprir um ritual religioso: pagar a promessa que leva os fiéis a lanhar os joelhos em nome da salvação. E então a leveza da infância se vê transformada na triste religiosidade das cidades do interior.

Mas não é da arte de Ana Paula reclamar das mazelas do mundo. Ao contrário. Seu trabalho fala da possibilidade de revigorar antigos significados, de reconquistar vitalidade para aquilo que o hábito velou. E então as bolsas com água, das quais correm os tubos que irrigam as jabuticabeiras, restituem às velhas rezadeiras uma vitalidade nova. Cedendo à lei da gravidade, a água inverte a direção da ladeira, transforma-a em descida e leveza. E, numa fração de segundo, as jabuticabeiras já ensaiam os passos de uma dança que as torna simultaneamente feiticeiras e dançarinas, as galhadas estendidas para o alto, livres momentaneamente das raízes que as fixam ao chão.

Eu também já tive quintal, e foi nele que realizei minhas poucas façanhas. Com essa obra, Ana Paula Oliveira foi bem mais longe. À doçura generosa da natureza vêm se misturar fantasias que não sabíamos nomear e que pertenciam a uma outra natureza, talvez menos gentil que a das árvores: calores desconhecidos, desejos sem objeto, tardes quentes de preguiça e inquietação. Dançarinas e feiticeiras.

Jabuticabeiras têm algo da Cocanha, o país imaginário da fartura e do ócio. Colados ao tronco, ao alcance da mão, centenas de frutos nos garantem que podemos ter calma, pois há alimento para todos. E então, num passe de mágica, tudo se distancia: árvores, bonança, descanso. Apenas para reluzirem como nunca reluziram antes.*

* Este artigo é dedicado a minha amiga Júlia Abs, que me ensinou a ver a dança.

Rodrigo Naves, 2012



Nearly at Hand’s Reach

april 21 - december 2, 2012

In Greek mythology, Antaeus, the son of Poseidon and Gaia, was a giant who obtained his extraordinary strength from his contact with Earth/Gaia, his mother. Whenever he lost contact with her, his strength waned. And this is how Hercules killed him – by lifting him up from the ground. In many of her works, Ana Paula Oliveira carries out an opposite procedure. The artist often uses wooden stakes or wedges to hold up things and animals, thus reinforcing their presence. Whether it be fish, as in Instável [Unstable] (2012), a mass of rubber, as in Iminente [Imminent] (2009) or a platform, as in Diadema (2003), their precise nature doesn’t matter. The intelligence of her artworks consists in their being placed in a situation that is strange in comparison to their natural position, in this way making them more visible, powerful and dangerous. And it is interesting how with each new work Ana Paula manages to arrive at new meanings, even if her procedures are not radically different.

Her current installation Meu chapéu tá no alto do céu [My Hat Is High in the Sky] involves something of the backyards of childhood, and this is why the jabuticaba trees need to be raised up, roots and all. The change in scale of the trees was necessary to return us to the size we had at the time when the fruit tree could repair all the injustices of the world. And the Beco do Pinto, right downtown in this city with few backyards, was the alternative available to her.

But why raise them up in a somewhat crude way, using stout wooden beams already partly eaten away by time, disproportional to the weight they support? I believe that this choice is partly explained literally: held up in a somewhat brutal way by the wooden beams, the jabuticaba trees are shown to be uprooted. The joys of childhood can no longer be recovered. One can only restore a lost grandness to them. Distributed among the various levels of the slope, the trees seem to fulfill a religious ritual: paying the promise that leads the faithful to bruise their knees in the name of salvation. And therefore the lightness of childhood is transformed into the sad religiosity of smaller cities in Brazil’s interior.

But Ana Paula’s art does not complain about the world’s afflictions. On the contrary. Her work speaks of the possibility of reinvigorating old meanings, of recapturing vitality for that which habit has concealed. And therefore the bags of water, from which tubes extend to irrigate the jabuticaba trees, restore new vitality to the old faith healers. Yielding to the law of gravity, the water inverts the direction of the slope, transforming it into descent and lightness. And, in a fraction of a second the jabuticaba trees already take the first steps of a dance that makes them simultaneously sorceresses and dancers, their branches extended upward, momentarily free from the roots that hold them to the ground.

I also once had a backyard, and it was there that I achieved my first exploits. With this work, Ana Paula Oliveira went much further. Here, the generous sweetness of nature is blended with fantasies we do not know how to name, and which belong to another nature, perhaps more gentle than that of the trees: unknown warmths, desires without an object, hot afternoons of laziness and uneasiness. Dancers and sorceresses.

Jabuticaba trees have something to do with Cockaigne, the imaginary country of abundance and leisure. Stuck to the trunk, at hand’s reach, hundreds of fruits ensure us that we can remain calm, because there is food for everyone. And then, magically, everything moves into the distance: trees, tranquility, rest. Only to shine like they have never shown before.*

* This article is dedicated to my friend Júlia Abs, who taught me how to see dance.

Rodrigo naves, 2012






Guilherme Gaensly, fotógrafo cosmopolita
19 de novembro de 2011 a 8 de abril de 2012

A exposição Gaensly, fotógrafo cosmopolita apresenta fotografias realizadas por Guilherme Gaensly (1843–1928), entre o início dos anos 1900 e meados da década de 1920. As fotografias foram selecionadas a partir do acervo da Casa da Imagem, da Secretaria Municipal da Cultura, e representa os documentos visuais mais expressivos e significativos da cidade de São Paulo do período.

A Casa da Imagem é uma iniciativa pioneira da cidade de São Paulo. Para celebrar sua inauguração, escolhemos as fotografias de Guilherme Gaensly, sem sombra de dúvida o profissional que melhor soube observar e sintetizar na imagem a radical transformação urbana ocorrida nos primeiros anos do século XX. Ele não se preocupou em documentar obras, mas cravou seu olhar no coração da cidade para produzir um conjunto eloquente de fotografias, cuja principal preocupação era evidenciar uma nova dinâmica instaurada pela modernidade. Para isso, elegeu como seu principal foco os edifícios públicos, os parques e as praças redesenhadas, os novos bairros, os palacetes, o requinte dos novos estabelecimentos comerciais e os trilhos dos bondes recém-chegados ao espaço urbano.

Gaensly é um mestre em fotografias urbanas, pois sua produção, impecável em termos de enquadramento e composição, é superior e diferenciada em relação ao que se produzia no país naquele momento. Nossa intenção ao selecionar estas fotografias, aqui agrupadas em blocos temáticos, é estimular o espectador a vislumbrar e se envolver com a história da cidade. Ao mesmo tempo, dar subsídios para valorizar e compreender a importância do café e do trabalhador imigrante no desenvolvimento do processo econômico. Nossa intenção é provocar um choque perceptivo no visitante, que, ao se defrontar com imagens do passado, nesta casa centenária, poderá reforçar sua identidade, reconhecer-se no presente e ampliar seus laços afetivos com a cidade.

A exposição permite conhecer o trabalho de Guilherme Gaensly, o fotógrafo cosmopolita, dedicado e ativo que mais aproximou sua atividade profissional das exigências do ideário republicano de progresso social e material. Versátil e empreendedor, ele produziu uma visão da metrópole emergente com elegância, buscando interpretá-la como um espaço urbano harmonioso e vibrante. Ao mesmo tempo, permite tornar público um acervo fotográfico que raramente teve oportunidade de ser exibido. A Casa da Imagem é o espaço ideal para conhecer e analisar a evolução sociocultural urbana e arquitetônica de São Paulo. E o documento fotográfico é a materialidade de uma memória que deve ser difundida com a finalidade de agregar novos valores e criar novos vínculos com a história da cidade.

Rubens Fernandes Junior, 2012


Gaensly, cosmopolitan photographer
november 19 - april 8, 2012

The exhibition Gaensly, fotógrafo cosmopolita (Gaensly, cosmopolitan photographer) presents photographs taken by Guilherme Gaensly (1843 – 1928), between the start of the 1900s and the mid-1920s. The photographs were selected from the collection of the Municipal Department of Culture’s Casa da Imagem, and are amongst the most expressive and important visual documents of the city of São Paulo from that era.

The Casa da Imagem is a pioneering initiative by the city of São Paulo. To celebrate its inauguration, we have chosen the photographs of Guilherme Gaensly, without a shadow of a doubt, the photographer who best knew how to observe and summarize in an image the radical urban transformation which took place during the first years of the 20th century. He didn’t over concern himself with documenting works projects, but riveted his eyes on the heart of the city to produce an eloquent set of photographs, the principal concern of which was to demonstrate a new dynamic founded in modernity.

To do so, he chose as his main focuses public buildings, the redesigned parks and squares, the new districts, the mansions, the refinement of the new commercial establishments and the tramlines that had recently arrived on the urban landscape.
Gaensly is a master of urban photography, as his production, impeccable in terms of framing and composition, is far superior and differentiated in relation to that which was being produced in Brazil at that time. Our intention in selecting these photographs, grouped here according to theme, is to encourage the viewer to glimpse and involve themselves in the city’s history. At the same time, there is information providing a better understanding of the importance of coffee and the immigrant worker in the development of the economic process. Our intention is to give the visitor a shock of perception, which, in coming face to face with images from the past, at this centenarian house, may strengthen their identity, recognize themselves in the present and expand their emotional ties with the city.

The exhibition allows for an understanding of the work of Guilherme Gaensly, the dedicated and active photographer who brought his professional activities closest to the demands of the Republican ideal of social and material progress. Versatile and enterprising, he produced an elegant vision of the emerging city, seeking to interpret it as a harmonious and vibrant urban space. The exhibition allows the public to see a collection of photographs which rarely have the opportunity of being displayed. The Casa da Imagem is the ideal space to see and analyze the socio-cultural, urban and architectonic evolution of São Paulo. The photographic document is the materialization of a memory which should be spread so as to bring about new values and create new ties with the city’s history.

Rubens Fernandes Junior, 2012







NO AR
19 de novembro de 2011 a 8 de abril de 2012

Não raro, suas instalações não se furtam a criar, mediante imagens produzidas com extrema inteligência e delicadeza visual, uma sensação de instabilidade e impermanência dos seres e das coisas sem que isso se torne um motivo de angústia. Ao contrário, acredito que o trabalho de Laura Vinci nos aponte sobretudo para a capacidade (sem excluir os limites) de regeneração. E aqui penso em obras emblemáticas em sua trajetória recente, como a ampulheta simbólica realizada para a terceira edição da mostra Arte/Cidade (1997), Estados (2002), Warm White (2004), Máquina do Mundo (2005), Ainda Viva (2007) e, mais recentemente, No Ar (2010). Em todas elas, a artista opera a partir da manipulação de elementos naturais como a água, o vapor, o gelo, a areia, o vidro ou o mármore, a fim de sugerir a capacidade natural de transformação.

Mas notamos que se há nesses trabalhos explicitação de um dado fundamental para a compreensão das mudanças no interior do mundo natural, a saber, a energia como o elo entre as partes, e que está metaforicamente presente nos diversos momentos ou estados presentes nas instalações, o fato de enquanto “formas artísticas” dependerem de uma ação que em última instância é artificial (pois foi fabricada, como bem nos lembra a artista quando aproxima a natureza ao universo do laboratório e das manipulações científicas deixando à mostra motores, máquinas, fios de cobre, resistências, etc.) indica o quanto esse processo de regeneração não é, por si só, evidente. Ou seja, no nosso mundo, ele também está sujeito a uma infinidade de variáveis e forças em permanente tensão.

Neste sentido, a poderosa relação que a artista estabelece entre homem e natureza é, muitas vezes, apontada como uma atualização da experiência do sublime. Ou seja, os trabalhos de Laura Vinci remeteriam a uma certa potência desconhecida para além do mundo visual, cujo reconhecimento nos causa uma sensação de estranhamento, admiração e finitude. Contudo, acredito que, ao explicitar tão tenazmente os momentos de continuidade e descontinuidade entre os processos, a artista executa ao mesmo tempo, e por causa disso, também uma reversão deste sentimento, diríamos quase um desencantamento dessa mesma realidade.

Na presente instalação, este momento de “despertar” se daria precisamente na paralisação da máquina que produz o vapor que sai do solo e toma corpo a partir da combinação entre a forma do espaço pelo qual se expande (a escadaria do Beco do Pinto) e as condições propriamente físicas (vento, chuva, luminosidade, etc.) às quais está submetido. Por um instante, na verdade precisos 3 minutos, nossa visão é surpreendida e perturbada por esse ar úmido que sai magicamente do solo, como uma bruma que vem direto do passado e materializa metaforicamente a singularidade do conjunto arquitetônico. O som, por sua vez, nos lembra da existência de um rio que teria, em algum momento da história desse lugar, feito parte de sua paisagem natural. Mas em 20 segundos, que parecem na verdade durar muito mais, Vinci introduz uma importante cesura que, como uma espécie de distanciamento crítico, nos faz voltar ao espaço cotidiano que habitamos, como se a passagem para um além do mundo da aparência também se revelasse, em última instância, como pura ilusão.

Taisa Palhares,2011


‘NO AR’ (ON AIR)
november 19 to 2011 - april 8, 2012

In her first intervention in a public space in the city of São Paulo, the artist Laura Vinci returns to a number of the central themes of her previous work, in which the sculptural thinking is marked by questions around the ephemeral character of time and of space, of movement as the essential nucleus of matter, and of the body as the basis of an understanding which is constantly active and in dialogue with its space. Faced with her installations, we are often very subtly confronted with a series of polarities on widely accepted ideas or concepts, the result of which is the unsettling of our certainties and, at the same time, an expansion of our world view.

Arriving at images through great intelligence and visual delicacy, it is not uncommon for her installations to refuse to shy away from the creation of a sensation of instability and impermanence in the beings and objects, yet without this becoming a cause for distress. On the contrary, I believe that Laura Vinci’s work opens us, above all, to the capacity (without dismissing the limits) of regeneration. Here I am thinking of demonstrative pieces in her recent work, such as the symbolic hourglass created for the third edition of the art exhibition, Arte/Cidade (1997), Estados (2002), Warm White (2004), Máquina do Mundo (2005), Ainda Viva (2007) and, more recently, No Ar (2010). In all of these, the artist’s starting point is the manipulation of natural elements such as water, steam, ice, sand, glass or marble, with the aim of suggesting the natural capacity for transformation.

But we can see that, if in these works there is an explanation of basic information for the understanding of internal changes to the natural world, namely energy as the link between the parts, and that it is metaphorically present in the various moments or states present in the installations, the fact that as “artistic forms” they depend upon an action which is ultimately artificial (since it was manufactured, as the artist indeed reminds us when she brings nature together with the world of the laboratory and scientific manipulation, showing motors, machines, copper wires, resistors, etc.) demonstrating just how much this process of regeneration is not, in itself, evident. O, to put it another way, in our world, this process is also subject to an infinite number of variables and forces that are under permanent strain.

In this way, the powerful relationship which the artist establishes between man and nature is often cited as a modern version of the sublime experience. In other words, the work of Laura Vinci refers to a certain unrecognized potential for something beyond the seen world, and the perception of it pulls a sense of estrangement, admiration and finiteness from within us. I believe, however, that in clarifying the moments of continuity and discontinuity between the processes in such a tenacious manner, the artist is performing – at the same time and because of it - a reversal of this feeling. We could say that it is almost a disenchantment with this same reality.

In the present installation, this moment of “awakening” is provided precisely in the halting of the machine which produces the steam which escapes from the ground and takes shape through the combination of the form of the space into which it expands (the steps of the Beco do Pinto) and the physical conditions (wind, rain, light,, etc.) to which it is subject. For a moment, or more precisely for three minutes, our eyes are surprised and disturbed by this steam which rises magically from the ground, like a mist from the past which metaphorically forms the singularity of the architecture. The sound, meanwhile, reminds us of the existence of a river which, at some time in the history of the area, would have formed part of the natural landscape. But after 20 seconds, which in fact appears to last much longer, Vinci introduces an important break which, as a form of critical distancing, takes us back to the everyday space we inhabit, as if the journey beyond the visible world ultimately also reveals itself to be pure illusion.

Taisa Palhares,2011